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O papel das mulheres na pesca artesanal marinha PDF

13 Pages·2017·0.93 MB·English
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O papel das mulheres na pesca artesanal marinha: estudo de uma comunidade pesqueira no município de Rio das Ostras, RJ, Brasil Fonseca, Marília; Alves, Fátima; Macedo, Márcio Chagas; Azeiteiro, Autor(es): Ulisses M. Imprensa da Universidade de Coimbra; Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos; Centro de Investigação Marinha e Ambiental; Publicado por: Universidade do Yale do ltajaí; Universidade Federal do Rio Grande do Norte URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/39565 persistente: Accessed : 14-Feb-2023 01:09:58 A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. 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Mais recentemente, o interesse em torno da compreensão do papel dos pescadores, suas percepções e racionalidades na relação com os recursos natu- rais e serviços de ecossistema tem vindo a ser integrado nas agendas científicas. Neste contexto, o lugar e o papel das mulheres na pesca e na preservação ambiental são relativamente invisíveis. Este trabalho procura contribuir para essa visibilidade no âmbito da atividade pesqueira artesanal marinha, tomando como campo de análise uma comunidade de Rio das Ostras (Rio de Janeiro, Brasil). Neste estudo procuramos conhecer a comunidade de pescadores artesanais de Rio de Ostras, caracterizar a di- visão do trabalho local, mas, sobretudo compreender as percepções que homens e mulheres desta comunidade têm sobre a re- lação entre essas e a pesca artesanal e como este vínculo é reconhecido e valorizado. A pesquisa foi realizada utilizando méto- dos de abordagem qualitativa, cujo referencial metodológico está pautado na Teoria Fundamentada nos Dados e nos princípios do Diagnóstico Rápido Participativo. Coletaram-se os dados primários por meio da observação, entrevistas e ferramentas parti- cipativas, em amostragens tipo bola de neve e teórica. Os dados foram codificados, categorizados e triangulados. A análise nos permite concluir que, o papel delas na comunidade pesqueira de Rio das Ostras, abrange a efetuação de múltiplas atividades, motivadas pela divisão sexual do trabalho. Apesar da extensa jornada diária dedicada aos trabalhos produtivo e reprodutivo, tal atuação é reconhecida como “ajuda”, ainda que contribua significativamente para o orçamento e gestão familiar. Tal @ Corresponding author to whom correspondence should be addressed a Universidade Aberta, Departamento de Ciências e Tecnologia, Palácio da Ceia, Rua da Escola Politécnica, 141 – 147. 1269-001 Lisboa, Portugal. e-mail: [email protected]. b Universidade Aberta, Departamento de Ciências Sociais e de Gestão, Palácio Ceia, Rua da Escola Politécnica, 141 – 147. 1269-001 Lisboa, Portugal; e-mail: [email protected] c Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, Universidade Aberta e Centro de Ecologia Funcional, Universidade de Coimbra. d Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório de Biologia e Tecnologia Pesqueira. R. Prof. Rodolpho Paulo Rocco, s/n., Centro de Ciências da Saúde, Bloco A, subsolo: e-mail: [email protected] e Universidade Aberta, Departamento de Ciências e Tecnologia, Palácio Ceia, Rua da Escola Politécnica, 141 – 147. 1269-001 Lisboa, Por- tugal. e-mail: [email protected] f Centro de Ecologia Funcional, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal. * Submission:12 MAR 2015; Peer review: 15 APR 2015; Revised: 29 JUL 2015; Accepted: 29 SEP 2015; Available on-line: 19 OCT 2015 This article contains supporting information online at http://www.aprh.pt/rgci/pdf/rgci-593_Fonseca_Supporting-Information.pdf Fonseca et al. (2016) perspectiva enfraquece a visibilidade das mulheres perante a comunidade local, bem como a valorização dos seus papeis sociais quer ao nível da preservação ambiental e sustentabilidade, quer na mudança social e cultural local. Palavras Chave: Atividade pesqueira artesanal, Gênero, Percepções, Invisibilidade. ABSTRACT The Women Role of the Marine Artisanal Fishery: A Study of a Fishery Community of the City of Rio das Ostras, RJ, Brazil Fisheries, particularly artisanal, have been subject of growing interest in the scientific community. More recently, the interest about the role of fishermen, their perceptions and rationalities in relation to natural resources and ecosystem services have been integrated into the scientific agendas. In this context, the place and the role of women in fisheries and environmental preservation are relatively invisible. This study aims to contribute to this visibility at the level of marine artisanal fisheries in the small community of Rio das Ostras (Rio de Janeiro, Brazil). ). This study intends to know the artisanal fishermen com- munity of Rio das Ostras, characterizing the division of local labour as much as to understand the perceptions that men and women of this community have on the relationship between women and small-scale fishing and how this context is valued and recognized. The research was conducted using qualitative methods, based on the Grounded Theory and the principles of Par- ticipatory Rapid Assessment. Primary data were collected through observation, interviews and participatory tools, and the sample was built using snowball and theoretical technics. The data were coded, categorized and triangulated. The analysis allows us to conclude that the role of women in the fishing community of Rio das Ostras, covers the implementation of multiple activities, based on sexual division of labor. Despite the extensive daily journey devoted to productive and reproductive work, such actions are recognized merely as a "help", although it significantly contributes to the family budget. This perspective undermines the visibility of women before the local community as well as the appreciation of their social role, as much as in the environmental preservation and sustainability as well as in the social and cultural changes in the local community. Keywords: Artisanal Fisheries, Gender, Perceptions, Invisibility 1. Introdução a emersão da nomeação “mulher pescadora” (Goes, 2008: 127) enquanto “resultado das relações sociais em No Brasil, alguns acontecimentos fomentaram o cadas- que as pessoas estabelecem trocas umas com as outras, tramento e o recrutamento dos homens à pesca ao longo bem como, se constitui em ação social” e está associada da história, configurando-se como determinantes para a aos “costumes, práticas e acontecimentos” (Goes, 2008: invisibilidade das mulheres no contexto da pesca arte- 25). sanal nacional. Entre 1840 e 1930, o Ministério da Ma- rinha esteve à frente de tudo que fosse relacionado com Nesta pesquisa, optamos por considerar as definições a atividade pesqueira no Brasil, inclusive com relação estabelecidas pela Política Nacional de Desenvolvimen- aos profissionais desse setor. Após a criação das Capi- to Sustentável da Aquicultura e da Pesca, estabelecida tanias dos Portos e Costas e Distritos de Pesca (1846) o por meio da Lei n° 11.959/2009 (DOU, 2009), onde cadastramento dos pescadores tinha, sobretudo, o obje- pescador profissional é “a pessoa física, brasileira ou tivo de defesa de território. O programa da missão do estrangeira residente no País que, licenciada pelo órgão cruzador José Bonifácio de organizar as Colônias de público competente, exerce a pesca com fins comerci- Pesca, realizada de 1919 a 1923, apresenta a necessida- ais, atendidos os critérios estabelecidos em legislação de de uma robusta defesa naval a baixo custo, sendo o específica” (Art. 2°). Destaca-se que ao adotarmos a desenvolvimento da indústria pesqueira uma estratégia atividade pesqueira artesanal, em consonância com o para organizá-la (Villar, 1945). De acordo com Goes que reza a lei em seu Artigo 4°, incluímos outros aspec- (2008), até 1930, ainda que convocados para a indústria tos da pesca (como conservação e comercialização), os pesqueira, os homens foram recrutados para reserva de trabalhos de confecção e de reparos de apetrechos de guerra e, até à década de 1950, somente os homens po- pesca e também o processamento do produto da pesca diam se cadastrar como pescadores. Neste contexto, de artesanal. Por outro lado, verifica-se que a referida lei 1919 a 1930, “as mulheres não correspondiam ao perfil não inclui a expressão “mulher pescadora” ou faz dis- profissional apto para a constituição da reserva naval e, tinção de gênero em seu conteúdo. Assim, é exigido da por sua vez, também se tornam incapazes de ir além da mulher pescadora o mesmo reconhecimento e legitimi- costa, em alto-mar, para realizar a pesca de caráter in- dade em documentos, à semelhança do que é existente dustrial” (Goes, 2008: 52). para os pescadores homens (DOU, 2009; MPA, s/d a). Há evidências de participação das mulheres na pesca Estudos recentes sobre a relação entre as mulheres e a desde o período colonial. Entretanto, foi o cenário de- atividade pesqueira realizados em comunidades de pes- senhado a partir de meados de 1980 até à década de ca artesanal em diversos estados brasileiros, como em 1990 (com ênfase nos grupos marginalizados da socie- Alagoas (Goes, 2008); Santa Catarina (Beck, 1991); dade; valorização das atividades produtivas de pequeno Rio Grande do Norte (Maia & Neto, 2012; Woortmann, porte e realizadas no âmbito familiar) que proporcionou 1991); Pará (Anderson, 2007; Maneschy, 1995; Rocha, 232 Journal of Integrated Coastal Zone Management / Revista de Gestão Costeira Integrada, 16(2):231-241 (2016) 2011); Bahia (Walter et al., 2012) e comunidades pes- vistos apenas como ajuda ou até mesmo obrigação queiras litorâneas das regiões Norte e Nordeste do Bra- (Walter et al., 2012; Goes, 2008). sil. Maneschy et al. (2012) foram consultados com o Entre os argumentos mais populares para explicar esta intuito de melhor conhecer como essa relação entre a desigual distribuição do trabalho e das profissões estão mulher e a atividade pesqueira se dá em outras locali- explicações biológicas, sociológicas e culturais. Entre- dades do país. tanto, Kergoat (2009: 67) esclarece que “as condições Os estudos evidenciam que há uma jornada dupla de em que vivem homens e mulheres não são produtos de trabalho executada pelas mulheres das comunidades um destino biológico, mas são antes de tudo constru- pesqueiras, pois conciliam atividades reprodutivas e ções sociais”. Neste sentido, homens e mulheres for- produtivas. No entanto, a produção científica sobre o mam “dois grupos sociais engajados em uma relação tema com foco nas mulheres da pesca é sinalizada por específica: as relações sociais de sexo”. O conceito de Motta-Maués (1999) e Fassarella (2008) como escassa e gênero formulado por Joan Scott em 1990 foi adotado destaca-se a invisibilidade a que sistematicamente são nesta pesquisa por defender uma visão mais ampla, que relegadas. Este fato despertou a vontade e a necessidade articula a natureza das inter-relações entre sujeito indi- de evidenciar o lugar que as mulheres ocupam, seus pa- vidual e organização social. (Scott, 1995). Embora o péis e funções nas atividades da pesca artesanal desta conceito de gênero desenvlvido por Scott (1995: 86) comunidade em Rio das Ostras, composta por 3 pesca- tenha duas partes e diversas subpartes, “o núcleo essen- doras e 55 pescadores artesanais inscritos no Registro cial da definição baseia-se na conexão integral entre Geral de Pesca, segundo os dados oficiais fornecidos duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo pelo Ministério da Pesca e Aquicultura em 14 de no- das relações sociais, baseado nas diferenças percebidas vembro de 2014 (MPA, s/d b). entre os sexos, o gênero é uma forma primeira de signi- Neste estudo, optamos por interpretar “trabalho produ- ficar as relações de poder”. tivo” a partir do conceito utilizado por Karl Marx onde, Estudos pretéritos sugerem que a divisão sexual do tra- sob o ponto de vista do capital, consiste em todo traba- balho prevalece na atividade pesqueira e determina, ca- lho que produz algo e que é capaz de gerar um produto racteriza e diferencia as atividades desempenhadas pe- determinado e a mais-valia. Em outras palavras, é defi- las mulheres das que são executadas pelos homens, bem nido por uma relação social de trabalho, delineada his- como fazem o mesmo no que se refere às suas suas res- toricamente por um modo de organização social, onde ponsabilidades. Para Beck (1991), ao usar a expressão tanto as relações de produção como a satisfação das ne- “pertence à mulher” para as atividades realizadas pelas cessidades e os seus valores de uso são estabelecidos” mulheres da comunidade no litoral de Santa Catarina é (Cotrim, 2009: 24). Dentre as atividades produtivas de- reforçada a oposição trabalho X não trabalho, indicando sempenhadas pelas mulheres em comunidades pesquei- a divisão sexual neste âmbito. Em comunidades das re- ras, destacam-se: a confecção e reparo de redes de pes- giões norte e nordeste do Brasil, “o fato de terem de ca, a captura, o beneficiamento e a comercialização do compatibilizar os vários encargos domésticos e a gera- pescado (Motta-Maués, 1999; Fassarella, 2008; Goes, ção de renda, enfrentando o peso das concepções relati- 2008; Maia & Neto, 2012; e Maneschy et al., 2012). vas aos papéis de gênero, concorrem para reforçar tanto Já as atividades reprodutivas caracterizam-se pelas tare- o baixo valor monetário dos trabalhos “femininos” no setor pesqueiro, quanto sua pouca visibilidade” (Ma- fas domésticas que incluem o cuidado com o lar e com neschy et al., 2012: 717). a família. De acordo com a U.N. Women (2015), o tra- balho doméstico e o de cuidado (não remunerados) con- No Distrito de Icoaraci, município de Belém (Pará), tribuem, diretamente, tanto para o desenvolvimento e- Anderson (2007) verificou que “quando ocorre a parti- conômico como para o bem-estar humano, pois favore- cipação da mulher em atividades produtivas, elas assu- cem o desenvolvimento das pessoas no espaço produti- mem o caráter de complementares às tarefas masculi- vo. Assim como em outras comunidades pesqueiras ar- nas”, cuja “ajuda” se dá tanto em ganho de dinheiro tesanais do Brasil, observou-se em Rio das Ostras que como em economia de gastos. Para a autora, as ocupa- as mulheres dedicam, diariamente, um significativo ções femininas aparecem como invisíveis, especialmen- tempo na execução dessas tarefas. te no setor pesqueiro, pois essa perspectiva “se apoia Embora tanto os homens como as mulheres participem nas reflexões de gênero que concebem ao homem a res- nas atividades produtivas da pesca, o trabalho por elas ponsabilidade de arcar com as despesas do grupo do- desenvolvido ainda não é valorizado como tal. Ainda que méstico”. a atividade das mulheres represente um incremento na Contudo, nem sempre esse papel de suporte é valorizado, renda familiar, o maior valor é atribuído aos trabalhos o que acaba por contribuir para a reprodução do papel executados pelos homens e, geralmente, os que são de- social da mulher como simples executora de ações sempenhados pelas mulheres na atividade pesqueira são “complementares”, reforçando a manutenção do mode- 23 3 Fonseca et al. (2016) lo já estabelecido (Maneschy, 2000; Fassarella, 2008; o componente do método que prevê “a realização da Garcia et al., 2007; Goes, 2008; Hirata & Kergoat, revisão bibliográfica após o desenvolvimento de uma 2007). análise independente” (Charmaz, 2009: 19). Porém, Diante deste contexto, em Rio das Ostras, qual seria o consideramos que é impossível levantar informações papel das mulheres e a sua relevância em meio a uma em campo sem que tenha conceitos pré-estabelecidos, atividade tradicionalmente reconhecida como masculi- visto que “todo ser humano carrega consigo suas expe- na? Que atividades elas realizam? O seu papel é reco- riências de vida e sua própria interpretação da realida- nhecido e valorizado? Até que ponto a situação vivida de” (Hopfer & Maciel-Lima, 2008: 20). em Rio das Ostras reflete a conjuntura constatada em Neste sentido, adotamos estratégias que preconizam o outras localidades do Brasil? Para responder a essas levantamento de informações em campo e prevêem, a perguntas, este estudo pretendeu lançar e evidenciar partir dessas observações, o desenvolvimento de teori- uma visão sobre a comunidade de pesca artesanal de as, nos exigindo, logo à partida, um quadro teórico mais Rio das Ostras, enfocando a relação que existe entre as flexível e aberto à diversidade e riqueza de informações mulheres e suas diversas atuações na atividade pesquei- que surgissem no campo (Hopfer & Maciel-Lima, ra, sob a perspectiva dos atores entrevistados. 2008; Charmaz, 2009). O DRP surgiu no final da década de 80 e desenvolveu- se muito ligado à educação popular (Chambers, 1994). Consiste em um processo participativo de aprendiza- gem que valoriza a diversidade social de forma a reco- nhecer e caracterizar as configurações possibilitadas pelas racionalidades leigas (Alves, 2010; Chambers, 1994; Chambers & Guijt, 1995; Verdejo, 2006). Cabe destacar que um dos princípios básicos do diagnóstico participativo foi utilizado: a triangulação (Chambers & Guijt, 1995; Drumond, 2002; Verdejo, 2006). 2.2. Amostra Para a amostra não probabilística (Carmo & Ferreira, 2008) foi utilizado um critério onde os entrevistados tivessem parte ou a totalidade da sua renda familiar proveniente da atividade pesqueira, visando representar Figura 1: Mapa de localização da área de estudo: em branco a comunidade estudada. A amostra foi escolhida com o o Brasil, em preto o estado do Rio de Janeiro, em cinza o objetivo de desenvolvimento teórico e não tendo como município de Rio das Ostras e no detalhe em cinza escuro, base a representatividade estatística. Os tipos de amos- as áreas onde os dados primários foram levantados. tras adotados foram: amostragem em bola de neve e Figure 1: Map of the studied area: Brazil in white, Rio de amostragem teórica (Carmo & Ferreira, 2008; Dantas et Janeiro State in black, Rio das Ostras city in gray and in al., 2009). dark gray the areas where the primary data were col- lected. Obtivemos um total de 44 abordagens realizadas e dis- tribuídas de forma equilibrada entre homens e mulhe- 2. Metodologia res: 48% mulheres (21) e 52% homens (23). Além dos pescadores, entrevistaram-se também: carpinteiro naval, 2.1. Eixos metodológicos mecânico naval e seu aprendiz, atravessador, redeiro, A abordagem qualitativa que orientou este estudo, dos comerciante, ex-pescadores e ex-beneficiador, possibili- pontos de vista teórico e metodológico, foi realizada tando ampliar o olhar de homens e de mulheres sobre a sob a ótica indutiva e a descrição dos acontecimentos comunidade e contemplar diferentes perspectivas. Por observados e registrados pelo investigador foi acrescida meio de seus representantes, as seguintes instituições da reflexão condicionada pelo seu conhecimento e ex- foram abordadas: Secretaria Municipal do Ambiente, periência (Neves, 1996; Charmaz, 2009; Sousa & Bap- Sustentabilidade, Agricultura e Pesca – SEMAP (Coor- tista, 2012). O trabalho de observação, análise e teori- denação de Pesca e Aquicultura), Secretaria Municipal zação, assentou, de modo geral, na Grounded Theory, de Saúde (projeto “Saúde do Pescador”) e Colônia de ou Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), e no Diag- Pescadores Z-22. nóstico Rápido Participativo (DRP). 2.3. Seleção de temas A TFD, publicada em 1967 por Glaser e Strauss, convi- da o pesquisador a adotar estratégias do método de for- A fim de orientar as discussões e manter o foco nas ma flexível (Charmaz, 2009). Destaca-se que utilizamos questões que se pretendeu abordar, foi selecionado um 234 Journal of Integrated Coastal Zone Management / Revista de Gestão Costeira Integrada, 16(2):231-241 (2016) conjunto de temas para ser utilizado durante a condução Chambers & Guijt (1995) e Verdejo (2006), para identi- das entrevistas e as demais ferramentas participativas ficar aspectos específicos de gênero, facilitar a colabo- utilizadas no levantamento de dados primários. Adotou- ração de homens e mulheres, de letrados e iletrados, e se a oportunidade de flexibilizar o roteiro de acordo reconhecer e valorizar os conhecimentos comunitários. com a realidade percebida (Charmaz, 2009; Verdejo, Por esses motivos, optou-se por incluir a utilização das 2006). A versão final do roteiro de temas está organiza- ferramentas de diagnóstico participativo no levantamen- da em dois tópicos: “caracterização geral da comunida- to de dados primários, somando-a aos métodos de ob- de pesqueira marinha de Rio das Ostras” e “gênero”. O servação e de entrevista, previstos no referencial meto- primeiro compreende os seguintes subtópicos: atores, dológico da TFD (Charmaz, 2009). artes e dinâmica da pesca, entidades ligadas à pesca, Durante os dez dias de levantamento de dados primá- conflitos e expectativas em relação à pesca. Já o tópico rios foram 17 as aplicações de ferramentas participati- “gênero” é composto por: percepção do homem face ao vas. Cabe dizer que as aplicações variaram entre uma e papel da mulher e a percepção desta face ao seu próprio três horas de duração, contando com a participação de papel na atividade pesqueira local. uma a quatro pessoas. Nesta pesquisa, nove ferramentas participativas foram selecionadas ordenadamente ao 2.4. Dados Primários roteiro de temas, a saber (ver Supporting Information I): Os dados primários foram coletados, principalmente, na entrevista semiestruturada, calendário sazonal, matriz Boca da Barra, bairro tradicionalmente ocupado por de atividades, matriz de pesca, rotina diária, matriz de pescadores e suas famílias. O levantamento em campo uso do tempo, diagrama de percepção, fluxograma de foi executado em novembro de 2013, maio, agosto e comercialização e partilha de renda (Geilfus, 1997; setembro de 2014, somando dez dias de atividades junto Drumond, 2002; Faria & Neto, 2006; Verdejo, 2006). aos comunitários. 2.6. Análise dos dados A coleta de dados foi realizada através de entrevistas semiestruturadas, da observação e por meio da aplica- Os dados foram analisados concomitantemente ao le- ção de ferramentas participativas (Geilfus, 1997; Dru- vantamento de informações, tendo sido implementadas mond, 2002; Faria & Neto, 2006; Verdejo, 2006; Hop- as oito etapas para o Desenvolvimento da Teoria (Araú- fer & Maciel-Lima, 2008; Dantas et al., 2009). jo & Estramiana, 2011; Hopfer & Maciel-Lima, 2008: 18), a saber: Na primeira abordagem, esclareceram-se os entrevista- dos sobre o papel do pesquisador, o procedimento, o i) Anotar as idéias e impressões durante o levanta- objetivo e as limitações do diagnóstico, adotando os mento de dados e efetuar uma pré-analise após a pressupostos de que a apresentação à comunidade influi coleta de cada dado; fortemente em todo o processo (Drumond, 2002; Kawu- ii) Realizar a revisão da literatura em estágios poste- lich, 2005; Verdejo, 2006). riores à coleta de dados em campo; O roteiro de temas contribuiu para que a entrevista se iii) Codificar os dados para definir as variáveis em ca- configurasse como uma conversa orientada e para o tegorias e suas propriedades; planejamento prévio de perguntas “abertas” (Charmaz, iv) Criar categorias a partir de comparações sistemáti- 2009). As anotações de campo foram efetuadas de for- cas entre similaridades e diferenças encontradas ma a evitar a identificação dos participantes, conside- nos dados; rando a responsabilidade ética de preservar o anonimato v) Delimitar a teoria emergente a partir das categorias daqueles que forneceram as informações (Kawulich, principais; 2005). Já as ferramentas participativas foram aplicadas vi) Buscar paralelos em outros estudos; conforme as diretrizes de Chambers & Guijt (1995); Geilfus (1997); Drumond (2002); Verdejo (2006) e Fa- vii) Escrever sobre a teoria que emergiu a partir da se- ria & Neto (2006). leção das categorias; e viii) Validar as idéias da teoria. 2.5. Ferramentas Participativas 2.7. Codificação As ferramentas participativas, técnicas facilitadoras do diálogo, são diagramas visuais com grande capacidade A codificação consiste na primeira parte analítica da adaptativa, de boa aceitação e que favorecem a interpre- pesquisa por meio da TFD, pois exige uma parada para tação coletiva da realidade, na medida em que criam um questionar de forma analítica os dados coletados foco de atenção e motivam a participação (Chambers & (Charmaz, 2009). De acordo com Charmaz (2009: 69), Guijt, 1995; Verdejo, 2006; Faria & Neto, 2006). A es- “codificar significa categorizar segmentos de dados tratégia de estabelecer o diálogo a partir da utilização de com uma denominação concisa que, simultaneamente, ferramentas participativas contribuiu, de acordo com resume e representa cada parte dos dados”. 23 5 Fonseca et al. (2016) Considerada como “fundamental para aumentar a vali- 3.1. O papel das mulheres na atividade de pesca ar- dade e a veracidade dos dados” (Hopfer & Maciel- tesanal marinha de Rio das Ostras Lima, 2008: 18), a codificação (inicial, focalizada e se- Há 50 anos, em Rio das Ostras, as mulheres participa- letiva) foi feita até à sua saturação teórica (Araújo & vam da atividade de pesca artesanal pescando (com Estramiana, 2011), considerando as premissas e orien- seus maridos), remendando redes (do pai, irmão ou ma- tações de Charmaz (2009) e Pinto (2012). Cabe esclare- rido), limpando e salgando (escalando) o pescado, tare- cer que a saturação teórica ocorre quando “a coleta de fas aprendidas através do convívio familiar que ditava dados novos não mais desperta novos insights teóricos, qual o papel da mulher na família que exercia a ativida- nem revela propriedades novas dessas categorias teóri- de pesqueira. Enquanto os homens saíam para pescar cas centrais” (Charmaz, 2009: 157), ou seja, quando há (espaço público), as mulheres ficavam em terra (espaço a sensação de que “novas amostragens não sejam mais privado) exercendo outros tipos de tarefas, incluindo as capazes de acrescentar propriedades às categorias” (A- domésticas. raújo & Estramiana, 2011: 384). Ainda hoje, o papel das mulheres na comunidade de Especificamente em relação ao papel das mulheres e à pesca de Rio das Ostras ocorre com essa mesma dinâ- percepção da comunidade pesqueira de Rio das Ostras mica de aprendizado e de conciliação das atividades sobre esse papel, as categorias resultantes da categori- produtivas e reprodutivas. Porém, parte dessas mulheres zação inicial foram: área de estudo, papel das mulheres, busca exercer ocupações remuneradas que não estejam representatividade, divisão sexual do trabalho, trabalho relacionadas com a pesca, viabilizando uma renda mais produtivo, trabalho reprodutivo, multiplicidade de ati- estável do que a resultante da atividade pesqueira e des- vidades, ajuda, invisibilidade/visibilidade, condições de tinada a suprir as necessidades da família. trabalho e percepção dos homens e das mulheres. As mulheres de Rio das Ostras que se mantêm na ativi- A codificação seletiva consistiu na tarefa de “elaborar a dade pesqueira atuam como catadoras de mexilhão, na categoria essencial, em torno da qual as outras categori- confecção e conserto de redes de pesca, beneficiamento, as desenvolvidas possam ser agrupadas e pelas quais comercialização e captura, onde participam das seguin- são integradas” (Gasque, 2007 citado por Pinto, 2012: tes modalidades de pesca: rede de fundo, arrasto de por- 6). A partir dessa categoria, foi formulada a teoria e- tas e currico, sendo a primeira a considerada como a mergente (Hopfer & Maciel-Lima, 2008). mais significativa pelos entrevistados. Ao utilizarem esses apetrechos de pesca, são capturados principalmen- 2.8. Teoria emergente te: pescada, goete, corvina, castanha, cação anjo, cama- A categoria (ou fenômeno) central explica as diferenças rão sete barbas, camarão VG, cavala e bicuda. Já as ati- e semelhanças identificadas nas experiências e sintetiza vidades de carpintaria naval e mecânica de motores a a história construída a partir dos dados obtidos (Pinto, diesel, bem como a extração de ostras e as pescas reali- 2012). Em outras palavras, são elas que delimitam a te- zadas com rede caída, linha e engodo não contam com a oria emergente, fundamentada nos dados (Hopfer & participação de mulheres da comunidade local. Maciel-Lima, 2008). Considerou-se a vida social como Ao fazerem uso de expressões como “trabalho de ho- um processo e também, que a teoria emergente é provi- mem” e “trabalho de mulher”, parte dos entrevistados sória e restringida pelo tempo (Gasque, 2007; Charmaz, revelou a influência da divisão sexual do trabalho, evi- 2009). denciando a condição diferente de ser homem e de ser Nesta pesquisa, adotou-se a multiplicidade de tarefas mulher no âmbito da comunidade pesqueira local. realizadas pelas mulheres como a categoria principal, Quanto às atividades produtivas, as seguintes tarefas pois, na perspectiva do pesquisador, é a partir dela que são executadas tanto por homens como por mulheres e, todas as demais puderam ser agrupadas, relacionadas e no caso dos casais, a partir da cooperação entre ambos: integradas (Hopfer & Maciel-Lima, 2008; Charmaz, catar mexilhão; remendar, soltar e puxar as redes de 2009). emalhe; e lavar, limpar e comercializar os peixes. Os dados primários levantados em Rio das Ostras revela- 3. Resultados ram que quando as mulheres exercem atividade pes- Conforme preconiza a metodologia qualitativa utiliza- queira, executam as mesmas tarefas que os homens e a da, os resultados foram alcançados por meio do cruza- responsabilidade é igualmente compartilhada por ambos mento das diversas informações levantadas com a apli- (ver Supporting Information III). cação das ferramentas participativas até à sua saturação Porém, as atividades efetuadas pelas mulheres em terra teórica reconhecida por meio da codificação. Dessa (beneficiamento, comercialização, reparo de rede ou uma forma, não é correto afirmar que determinada ferramen- atividade produtiva não relacionada à pesca) são execu- ta produziu tal resultado, e sim o conjunto delas junto à tadas de forma intercalada com as que estão relaciona- análise dos relatos obtidos. das com a gestão do lar, isentando o homem dessas 236 Journal of Integrated Coastal Zone Management / Revista de Gestão Costeira Integrada, 16(2):231-241 (2016) preocupações rotineiras. Neste sentido, obteve-se, a par- Já a Colônia de Pescadores Z-22, a entidade representa- tir do levantamento de dados primários, que cabe exclu- tiva da pesca, tem sua diretoria composta exclusiva- sivamente às mulheres a responsabilidade por realizar mente por homens e conta com pouca ou nenhuma par- as tarefas relacionadas à atividade reprodutivas, sendo ticipação das mulheres nas suas ações. que há pouca ou nenhuma colaboração dos homens na execução dessas tarefas domésticas (ver Supporting In- 4. Discussão formation III). Em Rio das Ostras há transmissão geracional dos co- Ainda que as mulheres realizem uma dupla jornada de nhecimentos relacionados com a pesca no ambiente fa- trabalho, conciliando atividades reprodutivas e produti- miliar, onde as filhas aprendem com as suas mães qual vas, na perspectiva dos homens e das mulheres entrevis- é o papel da mulher no âmbito da família que exerce tados, as atividades exercidas pelas mulheres da comu- atividade pesqueira artesanal, assim como identificado nidade pesqueira artesanal de Rio das Ostras são consi- por Garcia et al. (2007) em Rio Grande (RS). Os auto- deradas como uma ajuda, uma obrigação ou um apoio res afirmam que “as práticas artesanais são aprendidas e não representam, pelo menos subjetivamente, o sus- no convívio familiar e no contato direto com a natureza tento da família. e são utilizadas por pescadores e suas famílias para a Os maridos das pescadoras que atuam na captura decla- subsistência” (Garcia et al., 2007: 97). Neste mesmo raram que reconhecem a importância da parceria. Além sentido, Rosário (2010: 13) enfatiza que “o papel femi- de sentir orgulho, há certa tristeza por suas esposas vi- nino é de extrema importância no que se refere à manu- venciarem as dificuldades inerentes à atividade pesquei- tenção da tradição, já que é ela a educadora e socializa- ra. As mulheres entrevistadas (comerciantes, beneficia- dora maior nas sociedades pesqueiras”. doras, redeiras e pescadoras que atuam na captura) tam- Há procura e aceitação em realizar atividades remune- bém alegaram que reconhecem a sua importância para a radas em outras áreas profissionais por parte das mulhe- pesca artesanal. Além disso, consideram-se corajosas e res que compõem a comunidade pesqueira de Rio das guerreiras, por darem conta de uma atividade conside- Ostras. A atuação delas em outros tipos de atividades rada árdua, sacrificante, perigosa e, sobretudo, masculi- produtivas, de forma a diversificar as fontes de renda da na. Já as comerciantes reconhecem a importância do seu família, reflete uma tendência identificada na região papel, principalmente devido ao envolvimento na ges- costeira do Pará, por Maneschy et al. (2012) e no litoral tão das peixarias, mas também não se sentem valoriza- de Santa Catarina, por Beck (1991). Esses autores refe- das pelos homens da comunidade. rem-se ao crescente engajamento das mulheres em ati- vidades de outros setores, como indústria, turismo e Ao serem questionadas sobre como percebem o olhar prestação de serviços gerais, contribuindo para uma re- dos homens da comunidade em relação ao papel que definição dos papéis de homens e de mulheres no que elas desempenham, mulheres entrevistadas responderam se refere ao processo de produção tradicional, que con- que isso varia de homem para homem, sendo que se sidera a família enquanto unidade de produção. sentem mais valorizadas pelos pescadores jovens, que manifestam um sentimento de cuidado, de respeito e de Por outro lado, quando é a mulher que remenda a rede, admiração. Complementam relatando que, de modo ge- beneficia o pescado ou sai para pescar junto do marido, ral, crêem que os homens sabem que as mulheres parti- não há gastos com esses serviços e, portanto, gera uma cipam nas atividades e se mostram conscientes da im- economia no orçamento familiar, cuja acumulação de portância que têm para a pesca e para a gestão do lar, capital configura-se em uma característica da pesca ar- mas, na prática, não se sentem reconhecidas ou valori- tesanal (Maneschy, 1995). zadas pela comunidade (ver Supporting Information IV). Assim, como foi identificado em Rio das Ostras, uma A invisibilidade sentida pelas mulheres da comunidade série de estudos realizados em comunidades pesqueiras de pesca artesanal de Rio das Ostras também se mani- brasileiras revela a participação das mulheres nas ativi- festa no campo político e afirma-se tanto no âmbito da dades de confecção e reparo de redes, beneficiamento, prefeitura municipal, por meio da coordenação de pesca comercialização e captura de pescado. Neste sentido, e aquicultura (SEMAP), como na representação de clas- destacam-se, entre outros: Fassarella (2008), Rio Gran- se, pela Colônia de Pescadores Z-22. A coordenação de de (Rio Grande do Sul); Goes (2008), Bairros de Ipioca pesca e aquicultura (SEMAP) não reconhece a existên- e do Trapiche da Barra, Maceió (Alagoas); Maia & Ne- cia de pescadoras “que vão para o mar”, mas, por outro to (2012), comunidade de São Cristóvão (Areia Branca, lado, afirma considerar como pescadoras as que limpam Rio Grande do Norte) e Maneschy et al. (2012), comu- peixes para pequenos pescadores. Ao ser indagado so- nidades pesqueiras litorâneas das regiões Norte e Nor- bre futuros projetos para a pesca, o coordenador entre- deste do Brasil. vistado não citou qualquer ação voltada especificamen- A divisão de tarefas entre homens e mulheres da comu- te para as mulheres da comunidade a fim de beneficiá- nidade pesqueira de Rio das Ostras, evidenciam a pouca las. ou nenhuma participação dos homens nas atividades 23 7 Fonseca et al. (2016) reprodutivas, exceto as referentes ao cuidado dos seus configuram-se como uma ajuda, uma obrigação ou um familiares. Tal configuração assemelha-se ao “modelo apoio. Tal configuração não se manifesta na comunida- de conciliação”, onde, segundo Hirata & Kergoat de de Segredinho (Copanema, Pará), onde “as mulheres (2007: 604), “cabe quase que exclusivamente às mulhe- pescam e são responsáveis diretas por todo processo, res conciliar vida familiar e vida profissional”. Dessa constroem os instrumentos, separam e pegam as iscas, forma, a UN Women (2015) ressalta que essa carga de organizam seus petrechos e vão efetivar a pesca sem trabalho é distribuída de forma desigual e acaba por so- dividir essas atividades com os homens” (Leitão, brecarregar as mulheres. 2013: 65). Nesta comunidade, “é perceptível o envol- A conciliação de atividades produtivas e reprodutivas vimento e a execução da pesca pelas mulheres sem, por parte das mulheres da comunidade pesqueira de Rio contudo, possuir um caráter complementar” (Rocha, 2011: 65). das Ostras também se alinha com a realidade nacional conforme evidenciado pela Pesquisa Nacional por Porém, de forma semelhante à comunidade pesqueira Amostra de Domicílios – PNAD, realizada em 2014. de Rio das Ostras, em Ipioca (Maceió, Alagoas) “as Entre os seus resultados, a pesquisa identificou que mulheres são consideradas como ajudantes de seus ma- 88% das mulheres ocupadas (16 anos de idade ou mais) ridos” (Goes, 2008: 105). Neste mesmo sentido, os rela- realizavam afazeres domésticos, enquanto que a porcen- tos das três gerações de duas famílias de pescadores ar- tagem para os homens foi de 46% (IBGE, 2014). tesanais de Rio Grande (Rio Grande do Sul) que foram Ao cruzar as informações sobre o uso do tempo das mu- entrevistadas durante o estudo de Garcia et al. (2007: lheres da comunidade pesqueira de Rio das Ostras, com 112) apontaram “que o papel da mulher na atividade os dados do IBGE (2014) e de Bruschini (2006) ressalta pesqueira, na maioria das vezes, é de ajudar o homem que, em todos os casos, a jornada semanal dedicada às (marido ou pai)”, papel esse que é aprendido desde a atividades reprodutivas pelas mulheres que capturam infância. Entende-se que o fato de haver uma reprodu- pescado em Rio das Ostras supera as médias da popula- ção transgeracional do papel a ser exercido pelas mu- ção total brasileira, tanto dos homens, como das mulhe- lheres na comunidade pesqueira, onde as mesmas são res. Tais informações evidenciam uma sobrecarga de vistas e se reconhecem enquanto “auxiliares” dos ho- trabalho gerada pela dupla jornada consumada pelas mens pescadores, acaba por contribuir para a perspecti- mulheres brasileiras e, em intensidade, por aquelas que va de que “a atividade da mulher “em terra” está subju- vivem em Rio das Ostras, que pescam com rede de gada à atividade da pesca “no mar”, eminentemente emalhe, rede de fundo, currico e/ou catam mexilhão. masculina” (Garcia et al., 2007). Em relação a essa última atividade, Maia & Neto (2012) Contudo, nem sempre esse papel de suporte é valoriza- identificaram que as catadoras de marisco da comuni- do, o que acaba por contribuir para a reprodução do pa- dade de São Cristóvão, em Areia Branca (Rio Grande pel social da mulher como simples executora de ativi- do Norte), dedicam aproximadamente seis horas e meia dades “complementares”, reforçando a manutenção do por dia, à realização de atividades reprodutivas, e dez modelo já estabelecido (Maneschy, 2000; Fassarella, horas e meia às atividades produtivas. Já em Rio das 2008; Garcia et al., 2007; Goes, 2008; Hirata & Kergo- Ostras, são dedicadas 15 horas diárias para catar mexi- at, 2007). Ao reconhecerem o seu trabalho como uma lhão e quatro horas e meia às atividades reprodutivas. ajuda, elas reproduzem o não reconhecimento do traba- Tal evidencia a sobrecarga resultante da dupla jornada lho feminino na pesca (Silva, 2012), ainda que este seja efetuada pelas mulheres de ambas as localidades. (ver tão importante quanto o dos homens (Maneschy, 2000). Supporting Information II). Para Beck (1991), ao usar a expressão “pertence à mu- A realização de múltiplas tarefas no âmbito das ativida- lher” para as atividades executadas pelas mulheres da des produtivas e reprodutivas por parte das mulheres de comunidade no litoral de Santa Catarina, é reforçada a comunidades pesqueiras artesanais foi detectada em ou- oposição trabalho X não trabalho, indicando a divisão tras localidades brasileiras, como, por exemplo, no lito- sexual do trabalho. De acordo com Hirata & Kergoat ral de Santa Catarina, Beck (1991); comunidade de São (2007: 600), “a divisão sexual do trabalho é a forma de Cristóvão (Areia Branca, Rio Grande do Norte), Maia divisão do trabalho social decorrente das relações soci- & Neto (2012); comunidade Segredinho (Copanema, ais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritá- Pará), Rocha (2011); Distrito de Icoaraci (Belém, Pará), rio para a sobrevivência da relação social entre os se- Anderson (2007) e em municípios da Bahia (Walter et xos”. Como características, é ressaltada “a designação al., 2012). prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulhe- As entrevistas realizadas, tanto com homens, como com res à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropria- mulheres da comunidade pesqueira de Rio das Ostras ção pelos homens das funções com maior valor social sinalizaram uma percepção de que as tarefas (produti- adicionado (políticos, religiosos, militares etc.)” (Hirata vas ou reprodutivas) executadas pelas mulheres & Kergoat, 2007: 599). 238

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The Women Role of the Marine Artisanal Fishery: A Study of a Fishery Community of the City invisibilidade das mulheres no contexto da pesca arte-.
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