UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA O mundo universal: alimentação e aproximações culturais no Novo Mundo ao longo do século XVI Rubens Leonardo Panegassi São Paulo 2008 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL O mundo universal: alimentação e aproximações culturais no Novo Mundo ao longo do século XVI Rubens Leonardo Panegassi Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Profª Drª Laura de Mello e Souza São Paulo 2008 2 “Graças aos meus gostos grosseiros, sinto-me suficientemente descarado para julgar-me mais feliz do que outro qualquer, antes do mais porque estou convencido de que os meus gostos me fazem suscetível de mais prazer” (Giacomo Casanova, História da minha vida) 3 Resumo: Esta investigação é dedicada ao tema da alimentação e procura abordá-lo em perspectiva cultural. Detida principalmente na dinâmica dos contatos culturais que resultaram do processo de colonização da América pelas nações ibéricas, a pesquisa tem como foco, principalmente, fontes e outros registros de caráter “etnográfico”, tais como cartas e crônicas escritas no decorrer do século XVI que, de algum modo, registraram a “cultura alimentar” nativa dos povos americanos. Tendo em vista a possibilidade de considerar a alimentação como importante elemento na constituição do sistema de vida nos mais diversos grupos sociais – principalmente no âmbito das práticas cotidianas e dos valores culturais –, o que se procura apresentar nesta dissertação é o modo como os elementos simbólicos ligados aos alimentos emergem como instrumento mediador na construção de igualdades e diferenças culturais que, em última instância, permitem ao europeu presente no Novo Mundo, incorporar, intelectualmente, sua experiência no continente americano. Palavras chave: alimentação – cultura – Época Moderna – Novo Mundo – colonização Abstract: Considering that food can be a constituint element in the life system of several different social groups mainly in what concerns every day life and cultural values. We try here to deal with the way symbolic issues mediate cultural differences and similarities. We try to show that these constructions eventually allow the Europeans to intellectualy incorporate their New World experiences. e-mail: [email protected] 4 Agradecimentos Primeiramente, gostaria de expressar minha profunda gratidão à Profª Laura de Mello e Souza, que tem acompanhado minha trajetória acadêmica com generoso interesse e respeito desde a Iniciação Científica. Sua afável atenção tem sido, para mim, um permanente estímulo à pesquisa e ao conhecimento. Agradeço também à Profª Marina de Mello e Souza que gentilmente me acolheu e orientou durante o primeiro ano deste mestrado. Ao Projeto Temático Dimensões do Império português: investigação sobre as estruturas e dinâmicas do Antigo Sistema Colonial (FAPESP – Cátedra Jaime Cortesão), sou grato pelo ambiente sempre agradável e estimulante dos seminários dos núcleos temáticos, em especial os do Núcleo de Cultura e Sociedade, coordenado pelas professoras Ana Paula Torres Megiani e Leila Mezan Algranti, a quem deixo meus agradecimentos. Ao Grupo de Estudos Fernand Braudel, coordenado pelo Prof. Lincoln Ferreira Secco e pela historiadora Marisa Midore Deaecto manifesto, aqui, meus agradecimentos. A leitura sistemática dos trabalhos desse grande historiador tem sido fundamental para minha formação. Agradeço também ao Prof. Pedro Puntoni e a todos os colegas que participaram do grupo de estudos do livro As Vésperas do Leviathan. Essa experiência foi de grande valia para mim, uma vez que me colocou a par de um debate tão atual quanto motivador. No Departamento de História da Universidade de São Paulo, sou grato aos meus mestres que, de algum modo, também têm se dedicado ao tema da alimentação: os professores Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, Adone Agnolin e Henrique Carneiro. Minha experiência em Congressos e Simpósios de História foi, também, muito importante para o desenvolvimento deste estudo, principalmente por meio de discussões e dicas bibliográficas. Agradeço, portanto, ao Prof. Antonio Edmilson Martins Rodrigues, à Profª Christiane Figueiredo Pagano de Mello, à Profª Kalina Vanderlei Paiva da Silva, a Maciel Henrique Silva, ao Prof. Marco Antonio Neves Soares e à Profª Sylvia Ewel Lenz. 5 São inúmeros os colegas do programa de pós-graduação da USP com quem pude compartilhar os caminhos desta pesquisa. Entre eles, deixo aqui minha gratidão a Aldair Carlos Rodrigues, Alexandre Câmera Varella, Antonio Jaschke Machado, Bruno Feitler, Gustavo Accioli Lopes, Gustavo Henrique Tuna, Joana Monteleone, Juliana Fujimoto, Luciana Gandelman, Luis Filipe Silvério de Lima, Luiz Lima Vailati, Márcia Moisés Ribeiro, Marco Cabral, Maria Aparecida de Menezes Borrego, Rosana Andréa Gonçalves, Rui Luiz Rodrigues, Sérgio Alcides Pereira do Amaral e Sidney Pires. Sou grato aos meus pais, Rubens Panegassi e Maria do Carmo R. Panegassi, que sempre me apoiaram de modo incondicional. Agradeço também às minhas irmãs Iara, Valéria e Loeci, todas elas contribuíram efetivamente para a realização deste estudo. Agradeço ainda à minha companheira e amiga Marcia Regina Jaschke Machado que sempre esteve ao meu lado e soube me apoiar em todos os momentos. Por fim, agradeço à FAPESP pela bolsa concedida e que permitiu dedicar-me exclusivamente ao desenvolvimento desta dissertação de mestrado. 6 Sumário Introdução 8 Capítulo I: Da presença adventícia na América 18 Alimentação e cultura 18 Os gêneros nativos 30 Os alimentos estrangeiros 47 Capítulo II: A Época Moderna e o estreitamento dos circuitos de comunicação: da relação com o meio 54 Atribuições irresolutas 54 O pão e o vinho da terra 66 Dieta e temperamento 88 Capítulo III: Das relações humanas: aproximações no limiar das distâncias 100 Habilidades ausentes 100 A vida sob a “Lei Natural” 111 Entre o vício e a virtude 121 Conclusão 132 Fontes 135 Referências Bibliográficas 136 7 Introdução Em sua Histoire de l’alimentation végétale depuis la pré-histoire jusqu’ à nos jours, o botânico polonês A. Maurizio sugere que os hábitos alimentares tornam-se menos rígidos e mais aptos a adequarem-se a alimentos inusuais em situações cuja escassez de gêneros torna-se imperativa. Segundo o autor, em casos de extrema necessidade, sobrevém a opção por plantas alimentares outrora inutilizadas como fonte de subsistência, mas que, eventualmente podem ser reabilitadas: estas plantas são denominadas “briseurs de famine”. Entretanto, a essas preciosidades vegetais jamais se atribui status similar ao dos vegetais já consagrados após a normalização do abastecimento tradicional. 1 Note-se que a problemática abordada pelo botânico converge, principalmente, para a dimensão da cultura material, ainda que não deixe de tangenciar o imaginário social ao sugerir que tais gêneros jamais são alçados ao mesmo status dos alimentos cotidianos. Não há dúvidas de que o problema abordado por Maurizio impulsionou definitivamente esta investigação. No entanto, a tentativa de redimensionar a questão assentada em uma concepção de cultura material para o círculo das representações coletivas deu um rumo bastante diverso à pesquisa: se num primeiro momento, este estudo pretendia apreender os critérios acionados na valorização de alguns gêneros alimentares em detrimento de outros, no contexto da colonização da América portuguesa no decorrer do século XVI, no âmbito de uma evidente situação onde os alimentos habitualmente consumidos não se encontravam disponíveis – e que pode ser compreendida, portanto, como uma situação de “escassez cultural” de alimentos –, em um segundo momento, o intento foi de perceber o modo como a alimentação mediou a incorporação intelectual de um universo natural e moral absolutamente distinto, que a experiência do ocidente cristão na América paulatinamente revelava. 1 Ver MAURIZIO, A. Histoire de l’alimentation végétale depuis la pré-histoire jusqu’ à nos jours. Paris: Payot, 1932. Ver o capítulo IV, “Le ramassage chez les primitifs actuels”, sobretudo p. 38 e seguintes. 8 Como a alimentação mediou a incorporação intelectual do Novo Mundo por aqueles cristãos estrangeiros que o descreveram? Em linhas gerais, é esse questionamento que permeia esta dissertação. Embora essa questão possa parecer uma corrupção inverossímil do problema original, ela resultou de um processo relativamente coerente e pôde ser elaborado, basicamente, a partir de dois eixos: o primeiro deles remete a uma concepção bastante generosa desse campo de estudos que é a alimentação. O segundo é o entrecruzamento desse objeto a outros temas contextuais, circunscritos ao período estudado. Sobre a definição da alimentação como objeto de estudo no âmbito da História, vale recolocar uma questão oportunamente elaborada pelos historiadores Ulpiano T. Bezerra de Meneses e Henrique Carneiro em texto, já clássico, dedicado ao tema: “ao se falar de alimentação, de que se está falando, qual, precisamente, o objeto desse interesse, desses registros, crônicas e estudos?” 2 Como resposta ao questionamento os autores notam uma “grande oscilação de sentido” em relação à definição do assunto. Contudo, indicam diferentes focos para abordá-lo e sublinham que a natureza de tal objeto muda de acordo com o enfoque que lhe é dispensado. 3 De fato, um objeto se constrói em função da perspectiva com que é abordado. Ele se constitui, portanto, como resposta a um questionamento. Com efeito, há cinco enfoques predominantes entre os estudos dedicados à alimentação: o biológico, o econômico, o social, o cultural e o filosófico. 4 Dentre eles, este estudo procurou dispensar atenção particular ao enfoque cultural, principalmente à medida que é a partir dele que se pode observar as significações sociais associadas à alimentação: é possível compreender a obtenção, o preparo e o consumo dos alimentos como espaços de articulação de sentidos e valores socioculturais. 5 Considere-se, portanto, que um dos eixos norteadores da problemática contida nesta dissertação foi a tentativa de conceber a alimentação em perspectiva cultural. Entretanto, 2 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de e CARNEIRO, Henrique. “A História da Alimentação: balizas historiográficas”. In: Anais do Museu Paulista – História e cultura material. São Paulo: USP, V. 5 – jan/dez. 1997. p. 10. 3 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de e CARNEIRO, Henrique. Op. cit. Conferir a p. 11. 4 Conferir Idem, Op. cit. p. 11 – 18. Por sua vez, Silvana P. de Oliveira e Annie Thébaud-Mony apresentam quatro perspectivas de análise do tema da alimentação: a perspectiva econômica; a perspectiva nutricional; a perspectiva social; e por fim, a perspectiva cultural (OLIVEIRA, Silvana P. de. e THÉBAUD-MONY, Annie. “Estudo do consumo alimentar: em busca de uma abordagem multidisciplinar”. Rev. Saúde Pública. São Paulo: USP, 31(2), 1997, p.201). 5 Ver MENESES, Ulpiano T. Bezerra de e CARNEIRO, Henrique. Op. cit. 9 essa tarefa esteve associada a um segundo eixo, que dá profundidade histórica ao primeiro, uma vez que pode ser compreendido como um dos fenômenos que marcaram o início da Época Moderna: o “descobrimento” do continente americano. Desse modo, a partir da sobreposição desses dois eixos, a questão da alimentação ganha relevo quando considerada no interior da dinâmica dos “processos culturais” acionados na situação de contato entre os estrangeiros que marcavam sua presença na América, a natureza que os cercava, e os habitantes nativos da terra. O que se coloca, portanto, é um problema macroscópico e efetivamente binário: por um lado o estrangeiro cristão e, por outro, o nativo gentio e seu mundo. Sem dúvidas, entre esses dois extremos há uma variação gradativa que pulveriza cada um desses grupos em fragmentos de variáveis diversas, com problemas específicos. No entanto, operar nessas extremidades significa, de algum modo, recuperar uma sugestão bastante significativa para o historiador que pretende se debruçar sobre o tema da alimentação: o conceito de civilização. Sobretudo por meio da noção de “plantas de civilização”. Segundo Fernand Braudel, o advento dos cereais cultivados no período neolítico impôs à humanidade os alimentos vegetais como gêneros de base. Com isso, a cultura especializada desses gêneros incidiu em uma ou em outra planta em detrimento das demais. Estas opções alimentares constituíram-se como plantas “que organizaram a vida material e por vezes a vida psíquica dos homens com grande profundidade, ao ponto de se tornarem estruturas quase irreversíveis”: 6 são as “plantas de civilização”, entre as quais Braudel situa o trigo, o arroz e o milho. Nessa perspectiva, enquanto o arroz foi a opção alimentar das grandes civilizações do extremo oriente e o milho predominou nas civilizações pré-colombianas, a civilização européia optou pelo trigo. No que tange ao papel do trigo na Europa, é certo que ele jamais esteve sozinho: a espelta, a cevada, o milhete, a aveia e o centeio o acompanharam, ainda que, na condição de supletivos, tal como ensina Braudel. 7 Não obstante o trigo esteja longe de exercer hegemonia efetiva, é dele, preferivelmente, que se faz o pão. Este sim, considerado o alimento por excelência na Europa cristã: é preciso levar em conta que no horizonte do cristianismo o pão significa, por metonímia, alimento. 6 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII. As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. Trad. Telma Costa. Lisboa: Ed. Teorema. p. 84. 7 BRAUDEL, Fernand. Op. cit. p. 85 e seguintes. 10
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