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o moderno príncipe PDF

15 Pages·2007·0.39 MB·Portuguese
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TTTTT &&&&& MMMMM EEEEESSSSSTTTTTUUUUUDDDDDOOOOOSSSSS PPPPPOOOOOLLLLLÍÍÍÍÍTTTTTIIIIICCCCCOOOOOSSSSS : O MODERNO PRÍNCIPE UMA RELEITURA MAQUIAVELIANA DO PODER CONTEMPORÂNEO PAULO ROBERTO DE ALMEIDA ste ensaio consiste numa releitura linear do — e tanto quanto possível vinculada conceitualmente ao — clássico de Maquiavel, O Príncipe. Trata-se de uma tentativa de aplicar as categorias analíticas e a metodologia utilizada pelo pensador florentino às mesmas realidades por ele tratadas: as diversas formas de conquistar e de manter o poder especificamente político e as técnicas empregadas para tal finalidade, com a diferença essencial de que estaremos falando das formações políticas da contemporaneidade, não das cidades-Estado do Renascimento. O objeto em si não é diferente daquele analisado no mais famoso tratado maquiaveliano de política, mas os instrumentos e os contextos econômicos, sociais e culturais nos quais se movimentam os “modernos príncipes” são obviamente diferentes – não, talvez, moralmente superiores –, mas operacionalmente distintos daquele universo de traições na ponta da espada no qual se movia o diplomata e conselheiro Niccolò. Para assegurar uma comparabilidade e uma ponte conceitual com o pensador florentino, estilo e estrutura dos primeiros capítulos de sua obra mais conhecida foram mantidos o mais próximo possível do original (lida em várias edições, sobretudo italianas e francesas). Os temas e inclusive os títulos são idênticos aos do conhecido texto maquiaveliano, mas o discurso e a lógica argumentativa aqui seguidos diferem, obviamente, do original de quase cinco séculos atrás. TEMAS & MATIZES (cid:153) Nº 05 (cid:153) PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004 1 PAULO ROBERTO DE ALMEIDA Este exercício de intellectual bridge-building revolucionários ao poder, transformando pode ser considerado como uma tentativa de sociedades por si estruturalmente antiliberais – aplicar Maquiavel à política moderna, não geralmente devido à fragilidade da sociedade obstante alguns constrangimentos “morais” que civil – em ditaduras abertas, em estados um exercício deste tipo pode apresentar para totalitários. algum candidato a moderno conselheiro do A prática começou com Lênin, que liderou príncipe: afinal de contas, poder absoluto, traição não uma revolução, mas um simples golpe e eliminação física de adversários já “passaram militar: a tomada do Palácio de Inverno foi um de moda”, ainda que as técnicas de manipulação putsch, não um “assalto ao céu” pelo proletariado política continuem sempre na berlinda. Em todo russo. Mussolini aprendeu com Lênin, e realizou, caso, O Príncipe continua uma obra aberta e em 1922, uma marcha sobre Roma que levou diversos tipos de leitura são possíveis a partir de depois ao stato totale. Hitler tentou seguir seu suas recomendações de “política prática” para exemplo em 1923, mas falhou miseravelmente e uso dos candidatos a senhores do “principado” passou algum tempo na cadeia, quando (que, analogamente, pode representar qualquer concebeu um sistema de propaganda viciosa e república ou reino moderno, dotado de limites de milícias armadas que facilitou sua ascensão constitucionais). Maquiavel continua moderno, ao poder dez anos depois. Enquanto isso, ainda que não da forma como pretendem seus Portugal salazarista inaugurava o gênero na muitos leitores e exegetas contemporâneos. península ibérica, seguido alguns anos depois pela Espanha franquista, ao mesmo tempo em que Getúlio Vargas também instalava o seu “Estado Novo” no Brasil. Os políticos, e mesmo os cidadãos comuns, dos poucos sistemas liberais então existentes, DOS TIPOS DE PRINCIPADOS consideravam que a democracia não era um regime adequado para beduínos ou camponeses Todos os estados modernos, que têm ou ignorantes, mas ainda assim procuraram, em pretendem ter autoridade sobre os homens, são alguns casos, inculcar alguns rudimentos de democracias ou simulacros de democracia. As democracia nos sistemas por eles dominados. Foi verdadeiras democracias são ainda em número assim que a Índia colonial aprendeu o rule of restrito, mas sua presença e sua importância no law e algumas regras de representação política mundo atual estão aumentando, ainda que que depois seriam seguidas pelo país tornado progressivamente. A maior parte dos demais independente. A Inglaterra imperial fez estados são apenas tentativas de democracia, ou provavelmente mais pelo progresso ulterior da então formas variadas de ditadura, algumas Índia do que Ghandi com todos os seus disfarçadas, outras de maneira aberta. ensinamentos pacifistas, que finalmente Houve um tempo, até meados do século serviram muito pouco na construção da Índia passado mais ou menos, em que as democracias moderna: a despeito de todos os seus problemas conformavam um grupo extremamente reduzido de divisão da sociedade em castas, a Índia de países, quase todos no hemisfério norte, permanece uma grande democracia. A maior praticamente submergido num mar de parte dos demais países da África e da Ásia, no autoritarismos (quando não de totalitarismos entanto, não teve tanta sorte assim e a abertos). Impulsos autoritários, em países vivendo inexistência de estruturas políticas crises econômicas ou políticas prolongadas, representativas, ao serem liberados do “jugo podiam transformar-se em golpes ou assaltos colonial”, mergulhou-os numa sucessão de lutas TEMAS & MATIZES (cid:153) Nº 05 (cid:153) PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004 2 : O MODERNO PRÍNCIPE UMA RELEITURA MAQUIAVELIANA DO PODER CONTEMPORÂNEO intertribais e raciais que conduziram à falência industrializado. Considerando-se que a dos novos Estados. democracia encontra-se já consolidada no País, Na América Latina, a evolução foi diferente, caberia talvez participar dos esforços pela mas nem por isso mais feliz: a maior parte dos conversão de outros Estados ao novo credo países, independente a partir do início do século liberal: ademais da censura ao sistema de “guerra XIX, descambou para o caudilhismo anárquico, preventiva”, que realmente provoca mais passando a conhecer a instabilidade como regra; instabilidade do que paz, quem sabe uma vigorosa alguns novos Estados tentaram o sistema das campanha pela “democracia preventiva” não monarquias “ilustradas”, mas nem por isso eram permitiria evitar maiores sofrimentos a tantos menos oligárquicos ou plutocráticos. Já no povos ainda hoje oprimidos por déspotas iníquos século XX, a fragilidade ou mesmo a raridade de ou caudilhos que se perpetuam no poder a várias um verdadeiro sistema representativo na décadas? Eis aí um programa que pode experiência política brasileira levou um famoso transformar os principados modernos em brasilianista – Thomas Skidmore – a intitular o sistemas políticos democráticos, amantes da paz seu primeiro livro sobre o Brasil moderno de e dos direitos humanos e comprometidos Politics in Brazil, 1930-1964: an experiment in unicamente com o bem-estar de seus povos. democracy, ou seja, uma tentativa de democracia, O príncipe moderno não pode ser mais um pois lhe pareceu que tínhamos tido apenas alguns senhor da guerra, mas sim um servo da paz e um breves interregnos liberais num continuum defensor da democracia plena, sem adjetivos! autoritário. Pois em que pese ostentar hoje um regime democrático aparentemente estável, o Brasil teve simulacros de democracia durante muito tempo, seja ao tempo da monarquia ilustrada, que fazia DOS PRINCIPADOS HEREDITÁRIOS de conta que reproduzia o parlamentarismo inglês, mas sustentava o mais tenebroso Não falarei aqui das repúblicas escravismo, seja durante as cinco ou seis democráticas, porque elas já foram, e são, objeto repúblicas que se seguiram, várias tuteladas dos muitos manuais de ciência política de autoria pelos militares, cingidas na representação de estudiosos dos países avançados, livros que política e excludentes do ponto de vista social. possuem, aliás, um grau de modelização formal Pela fortuna ou pela virtude, o Brasil atual muito superior às modestas notas de cunho alcançou uma democracia que pode ser chamada impressionístico que vou traçando neste ensaio de plena, tendo conhecido uma transição política sobre as artes da política para uso dos cidadãos exemplar nas eleições de 2002, pois que pela de países novos, nos quais a República ainda está primeira vez se assistiu à passagem do poder em construção. Os cidadãos destes países estão político do sistema de “cabresto” das elites pouco afeitos a uma administração do tipo “ilustradas” para as mãos de um legítimo racional-legal, normalmente encontrável representante do povo. naquelas formações políticas mais antigas, de O príncipe contemporâneo que passou a onde vêem os estudiosos acima referidos, que governar o Brasil deverá encontrar dentro de si, parecem ser, elas, mais sofisticadas, ou e junto aos quadros de seu movimento político, presumivelmente menos dadas às paixões dos qualidades e competências que os habilitem a homens – e bem mais submetidas a regras bem governar um povo dotado de identidade impessoais – e quase sem espaço para que os própria, organizado numa sociedade complexa e príncipes satisfaçam suas conveniências vivendo num sistema econômico pessoais. TEMAS & MATIZES (cid:153) Nº 05 (cid:153) PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004 3 PAULO ROBERTO DE ALMEIDA Voltarei minha atenção, portanto, sobretudo províncias, ao libertá-las, em outras épocas, de para as formações políticas de países ainda bugres ferozes e de piratas da costa, e de um ou insuficientemente institucionalizados, outro castelhano mais atrevido. As heranças delinearei os princípios usualmente adotados como que foram abolidas naturalmente, sem pelas lideranças políticas nesses países e, quase resistência física das velhas famílias, finalmente, discutirei como elas são, e como vencidas no final pelo poder do dinheiro, pelo deveriam, ser mantidas. Digo, pois, que para a dos casamentos de conveniência e, pouco a preservação de algumas velhas províncias pouco, pelo exercício democrático do voto não hereditárias e afeiçoadas à linhagem de seu censitário. príncipe – e elas ainda existem, em pleno século Felizmente para algumas velhas linhagens, 21 –, as dificuldades são assaz menores do que o princípio que elas julgam normal dos naquelas poucas províncias que receberam o principados hereditários foi preservado em sangue novo dos imigrantes, pois nas primeiras territórios mantidos à margem desses fluxos de é bastante comum não se preterir os costumes populações estrangeiras, províncias de velha dos antepassados e, depois, contemporizar com economia tradicional, com o populacho apegado os acontecimentos fortuitos, de tal forma que, se à terra e inclinado ao conforto dos seus senhores. alguns daqueles príncipes de velha estirpe – Estes continuaram a mandar nessas províncias alguns nem tão velha ou nobre assim – for dotado como nos tempos dos capitães (e depois dos de ordinária capacidade (o que inclui, por vezes, coronéis da guarda), infensos ao que parecia ser mandar matar os inimigos) sempre se manterá os efeitos políticos de alguns tênues ventos de no poder, a menos que uma extraordinária e modernização que vinham dos cavalarianos do excessiva força – geralmente do governo central sul, com suas idéias positivistas contrárias à boa – dele venha a privá-lo; e, uma vez dele religião e à ordem tradicional. Esses desafiantes destituído, ainda que temível seja o usurpador, também tinham religião, e igualmente gostavam pode voltar a conquistá-lo, pois que sempre da ordem, mas eles diziam preferir que a religião encontrará aliados para a sua causa em algum não se envolvesse com as coisas da república e clã da corte imperial. que essa ordem fosse emanada da lei, não do Nas segundas, aquelas novas províncias, ao baraço e cutelo dos senhores. contrário, esses imigrantes de sangue novo Pois a despeito de tudo isso, de revoluções chegaram sem pagar o devido respeito às políticas e de avanços econômicos, alguns velhos tradições das linhagens estabelecidas, sem redutos, a exemplo dos daqueles irredutíveis sequer honrar os poderes constituídos, e alguns gauleses, resistiam ainda e sempre à extinção mesmo ostentavam tendência anarquista, das linhagens políticas e à abolição dos quando não coisa pior, degenerada e principados hereditários. Em terras de riquezas desrespeitosa das hierarquias e comandos. Vários ancestrais, algumas delas grandes províncias, se tornaram arrivistas e chegaram a destronar – outras menores, mas em todo caso produtoras de é verdade que sem muito sangue vertido – velhas açúcar e de mel, como nos relatos bíblicos, e famílias quatrocentonas que estavam na terra cheias de palmeiras onde canta o sabiá, os desde tempos imemoriais, cultivando suas glebas príncipes naturais desses lugares mantiveram a e exportando honestamente o fruto de tanto ferro e a fogo o seu domínio, com algumas trabalho e suor dos locais. Pois aqui, ainda que concessões à modernidade, é verdade. Alguns se esforçassem os príncipes, com todas as armas até se cercaram de redes de rádio e televisão, e os barões assinalados, eles foram muitas vezes criaram os seus próprios jornais, adotaram desalojados do poder sem o devido respeito pelo métodos modernos de administração – com muito que tinham feito em favor dessas algum “por fora” preservado – para poder se TEMAS & MATIZES (cid:153) Nº 05 (cid:153) PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004 4 : O MODERNO PRÍNCIPE UMA RELEITURA MAQUIAVELIANA DO PODER CONTEMPORÂNEO contrapor àqueles arrivistas de baixa extração novas técnicas de comunicação (das quais eles que ousavam contestar o seu poder absoluto. Em tinham o virtual monopólio em seus feudos quase alguns casos a luta foi dura, renhida, quase privados). Assim é que os príncipes que tenho em sanguinária, mas aliados do imperador mente conseguiram manter o seu domínio, souberam valorizar o benefício da velha ordem – administrando e controlando com todo cuidado e a vantagem de currais eleitorais quase intactos qualquer proposta de mudança, de molde a – para as suas próprias expectativas de poder. diminuir suas ofensas e aumentar suas Mesmo a nova ordem da revolução soube vantagens. reconhecer que o importante para a velha lógica do poder era dispor de aliados fiéis e solícitos sempre quando isso fosse necessário, não ficar negociando o tempo todo com ideólogos que pretendiam reformar tudo o tempo todo. Os senhores da velha linhagem ensinaram, aliás, aos novos clãs do poder central – e estes aprenderam rapidamente – que o domínio puro não tem ideologia, nem coloração política; ele só é poder, e com isso se basta. Estava feita a nova aliança de interesses, que ia se renovando a cada sobressalto político do castelo imperial, O que basicamente distingue as novas desde que a situação das províncias de velha províncias das antigas, estas geralmente de tipo estirpe permanecesse rigorosamente como era, hereditário, é a existência da chamada sociedade desde os tempos do escambo e da língua geral. civil, original ou não. Onde a sociedade civil se Delfins se sucediam aos hierarcas, nepotes aos constituiu, com autonomia de recursos em príncipes sem descendência direta, em alguns relação ao poder central, ficou difícil aos casos até mesmo representantes dos gineceus príncipes da velha linhagem manter seu domínio ocuparam o lugar dos varões menos afeitos a essas indisputado e, portanto, assegurar a lutas eternas pelo prestígio e a glória ligados ao permanência dos nepotes e herdeiros, como se poder. Nesses principados hereditários o que se se tratasse de uma herança pessoal. Houve casos, constituiu, desde a noite dos tempos até os dias também, de velhas províncias que já dispunham que correm, não foi tanto a ordem estabelecida de sociedades civis organizadas, algumas até quanto a desordem controlada, ou então o mandando presidentes para o conselho do despotismo puro, esclarecido ou não. império, que regrediram ao ponto de acomodar De alguma forma essas hierarquias os interesses de novas linhagens, que se fizeram hereditárias se faziam amar – ou temer, conforme hereditárias por meio e graça do poder imperial, o caso – pelos plebeus e burgueses, sem que quando este se encontrou centralizado por força precisassem recorrer à força e ao arbítrio toda vez de disputas políticas na própria sociedade civil. que alguém inventava que era chegada a hora Na maior parte dos casos, porém, as mais de testar o domínio pelos métodos que tinham importantes linhagens se formaram na posse da inventado depois da Revolução Francesa. Não terra e nas prebendas do Estado, com feudos sem havia motivo para esses príncipes hereditários se brasões que se consolidaram em novas oporem à expressão das urnas, tanto porque eles oligarquias e daí em principados. Temos, pois, ocultavam seus desbragados vícios e conseguiam nessas províncias, alguns exemplos de se fazer bem querer, à custa, é verdade, de permanência e de resistência, ou seja, príncipes alguma benemerência e de doses maciças das valorosos que não cedem ao assalto dos arrivistas TEMAS & MATIZES (cid:153) Nº 05 (cid:153) PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004 5 PAULO ROBERTO DE ALMEIDA e que continuam a ser a liderança natural dessas ou dos votos – não impedir, alguns príncipes de terras com leis mas também com tradição e um certo valor continuarão exercendo seus hierarquia (e uma não pode viver sem a outra). talentos para maior glória e riqueza de velhas Nos principados hereditários o peso da sociedade famílias distinguidas pelos brasões dos civil tende a ser diminuído, e neles o velho ancestrais. princípio da hereditariedade nem sempre significa a filiação consangüínea, pois pode também querer dizer o vínculo partidário e o conluio de interesses. Se esse tipo de principado consegue se armar de sistemas burocráticos de controle, de aparência e funcionamento DOS PRINCIPADOS MISTOS modernos, então o domínio dos príncipes tende ao absolutismo, pois a “gaiola de ferro” assume Mas é nos principados novos que residem ares de administração “racional”. as principais dificuldades políticas para uma boa Se me perguntarem o que penso administração da coisa pública. Dentre os novos particularmente disso tudo, diria que, como principados, nos interessamos sobretudo por cidadão adepto da primazia da sociedade civil, aqueles que forneceram material empírico a abomino o desembaraço desses príncipes que não vários teóricos das ditaduras e dos modelos de costumam prestar contas de seus atos, mas transição para as democracias, pois eles são os também reconheço, como estudioso das coisas protótipos de regimes mistos (isto é, compostos) da República, que não é fácil mudar velhos que queremos discutir neste ensaio. hábitos e diminuir a afeição do povo comum pelas Comparados às velhas monarquias suas lideranças “naturais”. O ideal é que fossem européias, dotadas em sua maior parte de todas as províncias, novas e velhas, regidas pela parlamentos que deitam raízes nos tempos mesma lei impessoal que resultou da assembléia medievais, os países do continente ocidental de cidadãos em praça pública. Mas nem sempre descoberto pelo genovês Cristoforo Colombo o exercício do poder pode, ou consegue, ganharam sua autonomia política, em média, há contentar-se com essas limitações incômodas e cerca de dois séculos apenas, e neles são ainda intrínsecas ao processo democrático, usualmente mais recentes, com exceção da grande república delongado, ruidoso, quase caótico, para dizer o do norte do hemisfério, os arranjos governativos mínimo. baseados na liberdade partidária e numa Dizia um desses velhos conservadores representação parlamentar verdadeiramente liberais – sim, este era as duas coisas ao mesmo popular. Em face da secular (ainda que tempo – que a democracia era o pior de todos os periclitante) monarquia inglesa, cujos princípios regimes, à exceção de todos os demais. Acho que constitucionais foram forjados ainda antes dos isso ainda é verdade, mas nada impede que os invasores bretões, esses países apresentam uma principados hereditários consigam adaptar-se às experiência constitucional relativamente regras do jogo e perpetuar-se no poder pela confusa, feita da superposição ou eliminação de astúcia e por algumas concessões formais ao jogo várias cartas magnas, geralmente o resultado de da maioria, isto é, por um simulacro de tempos turbulentos e de aventuras caudilhescas. democracia. Desde os tempos da Antigüidade Não se deve, contudo, olvidar que algumas que isso se dá e o mundo não parece perto de dessas jovens repúblicas são bem mais antigas, acabar com essas práticas que são mais comuns enquanto Estados constituídos, do que muitos – mesmo em novas províncias – do que se pensa. países europeus, ainda que estes possam ostentar Enquanto o povo quiser, e se a força – das armas processos de formação nacional que remontam, TEMAS & MATIZES (cid:153) Nº 05 (cid:153) PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004 6 : O MODERNO PRÍNCIPE UMA RELEITURA MAQUIAVELIANA DO PODER CONTEMPORÂNEO em certos casos, à mais remota antigüidade. depois a compor o Zollverein e a Germânia Tomemos, por exemplo, o caso da Itália, a nação contemporânea. que forjou, como uma das primeiras flores do E o que dizer da ancienne France, formada Lácio, as bases do estado de direito e dos regimes nos tempos de Carlos Magno e dos Capetos — contratuais civis, que assistiu depois ao nada a ver, aqui, com o “demo’” que não tem, a nascimento do moderno capitalismo e dos despeito do que se crê, nenhuma interferência sistemas bancários e monetários, que deu ao nas coisas da política—, a França de tão gloriosas mundo o modelo da cidade-estado tradições absolutistas e de ainda mais gloriosas autogovernada, como eram as Repúblicas de revoluções, e que no entanto passou por tantos Veneza, de Gênova e, junto com elas, os muitos regimes quanto ela produz de variedades de principados que proveram, precisamente, a queijo? Pois ela conheceu muitas dinastias e fundamentação empírica para o surgimento da pelo menos cinco repúblicas, sem contar alguns moderna teoria política e os mecanismos práticos caudilhos de nomes por demais conhecidos para para a consolidação da arte de governar sem o serem aqui repetidos, bastando dizer que um era apoio das igrejas constituídas. Ora, a Itália, como corso e o outro metido a desafiar americanos. Nação, é muito mais jovem do que várias dessas Por aí se vê que antigüidade histórica nem repúblicas latino-americanas, tendo se sempre é sinal de principado velho, podendo, ao constituído em reino unificado apenas depois de contrário, apresentar algum impedimento 1870, meio século depois que um reino similar estrutural para sua modernização política, e de existisse no maior país da América do Sul, no fato alguns dos mais poderosos principados de caso o Brasil. Sua República, da mesma forma, nossos tempos são ainda mais recentes, em sua só surgiu mais de meio século depois que o presente forma constitucional, do que as jovens mesmo Brasil tinha abolido sua anacrônica forma nações das Américas. Não pretendo falar aqui dos monárquica de governo, quando o moderno jovens estados africanos e de alguns principados estado italiano ainda trocava as fraldas das da Ásia, surgidos da descolonização européia primeiras experiências de aggiornamento político, operada na segunda metade do século 20, pois nessa época de valores burgueses conhecida eles têm uma história política muito diversificada como trasformismo. (e por vezes sangrentamente fratricida) para Da mesma forma a Alemanha moderna, que constituírem modelos de qualquer tipo de regime alguns historiadores nacionalistas querem ver suscetível de atender aos requerimentos desta como o resultado linear das antigas tradições do análise dos principados modernos de Sacro Império Romano, só surge, realmente, a constituição mista. Mas pretendo abordar o caso partir de 1871, tendo sido depois retalhada, das democracias contemporâneas, em especial amputada e reconstruída no seguimento da o das frágeis democracias latino-americanas, Segunda Guerra de Trinta Anos que a opôs, entre para demonstrar como e por que esses 1914 e 1945, a várias outras nações européias, principados podem ser mistos e ainda assim assim como aos dois grandes impérios do século preservar (ou não) o essencial da governabilidade 20, o russo e o americano, que dividiram o mundo política, que constitui o traço mais conspícuo dos (e a própria Alemanha) durante a maior parte da sistemas constitucionais contem-porâneos. segunda metade desse século, no período Alguns conselheiros dos príncipes conhecido como Guerra Fria. Pois o Brasil modernos podem pensar que países instáveis também é mais velho do que qualquer dessas como os principados latino-americanos são Alemanhas, e já mantinha relações diplomáticas, mistos, isto é, heterogêneos, significando com isso desde o início do século 19, com vários dos que, por um lado, eles ainda são principados e das cidades-estado que vieram subdesenvolvidos econômica e politicamente, e TEMAS & MATIZES (cid:153) Nº 05 (cid:153) PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004 7 PAULO ROBERTO DE ALMEIDA que, por outro lado algumas vezes copiados sem pensar de outros apenas as demo- povos. O Brasil, por exemplo, teve uma cracias capitalistas constituição monárquica vigente por quase avançadas são setenta anos, com uma única emenda homogêneas e uni- constitucional, o que lhe garantiu uma formes em seus estabilidade única em face de turbulentos regimes políticos e vizinhos republicanos que estavam sempre a formas de governar. trocar de senhores e de constituições, alguns Quão errados estão principados mais de uma vez ao ano, como esses ideólogos, pois ocorreu com aquele que leva o nome de El que se há um traço Libertador. Pois bem, bastou que a nova república que caracteriza os brasileira adotasse um modelo constitucional estados do capi- baseado no da grande república setentrional — talismo avançado, isto inclusive copiando-lhe o nome de Estados é, os regimes de Unidos — para que o seu novo regime misto mercado e as demo- ficasse ainda mais misto com a adoção, quase cracias burguesas, é precisamente sua que de modo contínuo, de emendas diversidade política nas formas de regime e nos constitucionais, quando não de cartas sistemas constitucionais. inteiramente refeitas por algum senhor mais dado De certa forma, todos os principados a essas reformas completas do comando político modernos são mistos, no sentido em que suas desse grande principado. estruturas políticas resultam de uma complexa Alguns tentaram explicar essa história político-social que coloca em confronto instabilidade constitucional pela ausência de forças sociais sempre únicas e originais do ponto uma revolução econômica autêntica, uma que de vista histórico. E eles não são mistos apenas supostamente seria burguesa como se apenas os por instabilidade conjuntural ou por conflitos burgueses pudessem implementar um tipo de políticos momentâneos, eles são mistos regime político moderno, compatível com o estrutural-mente, no sentido em que os homens, regime de mercados e com as liberdades civis. na sua eterna insatisfação com o estado de coisas Um teórico liberal, da escola econômica de presente, sempre pretendem aperfeiçoar alguma Chicago, Milton coisa deixada pelas gerações precedentes, daí Friedman, acredita por esses edifícios complexos e por vezes exemplo que o capi- assimétricos que se vêm nas repúblicas velhas talismo é uma como nas novas quando um viajante mais arguto condição necessária, resolve examinar de perto suas construções ainda que não constitucionais. suficiente, das Os homens mudam de senhores, e esses liberdades políticas, novos líderes conseguem por vezes impor mas isso não nos diz reformas constitucionais, mas o fato é que, no nada sobre o caráter mais das vezes, é o lento acumular de pequenas heterogêneo desses mudanças im-perceptíveis que constituem um mes-mos principados regime “novo” (e portanto misto) para um capitalistas que ele determinado principado, e esses novos esquemas pensa apontar como de mando devem sua existência tanto a antigas únicos exemplos de tradições como a novos modelos de governança, d e m o c r a c i a s TEMAS & MATIZES (cid:153) Nº 05 (cid:153) PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004 8 : O MODERNO PRÍNCIPE UMA RELEITURA MAQUIAVELIANA DO PODER CONTEMPORÂNEO modernas. Outros teóricos da dependência desenvolvimento em direção das formações estrutural dos principados latino-americanos, sociais do capitalismo periférico, o que é que acreditam que eles nunca conheceram o paradoxalmente negado por esses conselheiros. equivalente funcional das revoluções burguesas O fato de se pensar a modernização dos principados setentrionais, afirmaram que não capitalista em termos de tendências haveria, no sul, espaço histórico para a repetição convergentes de organização e de evolução da das evoluções democráticas dos capitalismos de economia, da sociedade e do Estado em todos os “velhos” principados como os da Inglaterra, da principados modernos implica a aceitação de um França, dos Estados Unidos, da Alemanha ou do modelo considerado “ideal” de desenvolvimento Japão, acreditando esses conselheiros que essas histórico e sua elevação ulterior à categoria de sociedades “centrais e hegemônicas” teriam “paradigma” para a abordagem analítica dos casos apresentado as mesmas tendências de particulares, que seriam talvez, aos olhos desses organização e de evolução da economia, da ideólogos, os dos principados latino-americanos. sociedade e do Estado. Pode-se até admitir que, do ponto de vista Ora, essa crença é surpreendente, tanto do de um conselheiro do príncipe, o discurso ponto de vista da sociologia histórica como do ideológico parta da noção de tipos característicos comparatismo político, como uma análise de desenvolvimento social, mas não seria lícito perfunctória sobre esses ao príncipe esclarecido principados poderia revelar. pensar que a realidade do Seria preciso observar, antes de desenvolvimento histórico e mais nada, que o discurso social é feita de tipos desse tipo de conselheiro de característicos, isto é, certos príncipes meridionais uniformes. Os desempenhos atribui, ao processo de econômicos e sociais mais modernização capitalista uma evidentes do processo de força de transformação da modernização capitalista não sociedade de muito superior a são redutíveis a suas reais possibilidades denominadores comuns intrínsecas, passando por cima senão a um nível muito das tradições culturais, do elevado de generalização, que tecido social e político de cada são basicamente estes aqui: sociedade, do ambiente mercantilização progressiva internacional na longa das atividades agrárias, duração — isto é, o das relações entre esses dissociação dos produtores diretos dos meios de principados antes mesmo da afirmação completa produção, constituição de um mercado livre de dos capitalismos nacionais — ou de outros fatores trabalho, diferenciação funcional por classes, contingentes ou ocasionais. racionalização das atividades de gestão etc. No Tal crença ideológica significaria aceitar plano das formações políticas, o processo como pressuposto a uniformização das estruturas compreende a formação de um aparato sociais, econômicas e políticas das formações que burocrático do Estado moderno, a superação da atravessaram uma modalidade bem sucedida de apropriação prebendalista ou patrimonial das modernização capitalista, o que atividades de gestão desse mesmo Estado, a necessariamente implicaria aceitar, igualmente, ampliação das franquias políticas e a a possibilidade, ou até mesmo a probabilidade, racionalização das estruturas de representação, de uma projeção dessas tendências de a incorporação dos aparelhos partidários nos TEMAS & MATIZES (cid:153) Nº 05 (cid:153) PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004 9 PAULO ROBERTO DE ALMEIDA mecanismos de cooptação e de representação apenas os dois primeiros tipos de principados, típicos de regimes modernos e assim por diante. isto é, anglo-saxões, chegaram, talvez quase que Não obstante esses traços comuns, e ‘naturalmente’, à democracia ‘burguesa’, ao passo portanto uniformes, esses principados que os demais tiveram de passar, durante capitalistas resultam em tipos distintos, isto é períodos mais ou menos longos ou recorrentes, mistos, de organização política e social. Suas por experiências autoritárias, bonapartistas ou tendências de organização são extremamente abertamente ditatoriais de governança política. diversificadas e únicas em cada um dos Como se pode ver, o fato de que esses principados tomados individualmente. As principados modernos apareçam hoje como estruturas e relações de classes — senhores, “uniformemente” democráticos, não elude o burgueses livres, membros do clero, arraia miúda elemento estrutural de que eles são, na verdade, etc. — assim que os sistemas de poder e os tipos mistos, no passado e atualmente, tendo passado de autoridade dos príncipes diferem por uma longa história de revoluções políticas e enormemente nesses principados e não são sociais para consolidar, não um modelo único, assimiláveis entre si senão em relação a um mas regimes diversos de governança política que mesmo quadro de referência global tomado em permanecem o que eles sempre foram: sua generalidade: economia de mercado (isto é, principados mistos. capitalismo avançado) e democracia formal (isto é, burguesa). De fato, qualquer conselheiro do príncipe trabalhando em perspectiva comparada sobre os sistemas econômicos, sociais e políticos desses principados modernos saberia ultrapassar a aparente uniformidade das estruturas e das tendências de desenvolvimento para identificar os traços distintivos na evolução de cada um deles: tradição liberal, consenso social, tendências latentes ao self-government e papel restrito do Estado central nas experiências Outra não será a experiência dos britânica e americana; polarizações sociais e principados latino-americanos, dos mais políticas, capitalismo ‘difícil’ e Estado turbulentos — como são, ainda hoje, aqueles que centralizado no caso francês; tradição elitista e mais se identificam com os libertadores da pátria burocrática, capitalismo concentrado, Estado — aos aparentemente estabilizados, como a dominador na versão alemã; sociedade antiga monarquia dos Braganças que se hierarquizada, capitalismo altamente organizado encontra na sua sétima ou oitava república (os e Estado “instrumental” na experiência japonesa, conselheiros do príncipe perderam a conta, tal o e assim por diante. número de substituições e revisões Essas conformações ‘mistas’ desses constitucionais). Eles também se acomodarão, principados “clássicos” da história recente do no momento oportuno, com uma forma mista de capitalismo e da sociedade burguesa moderna, governança política, que será marcada, ao mesmo considerados não tanto enquanto idealizações tempo, pela estabilidade e pela flexibilidade de sociológicas de algum conselheiro do príncipe, regimes governativos e administrativos. Afinal de mas enquanto realidades históricas sempre contas, essa é a situação concreta da maior parte específicas e originais, podem ajudar algum dos principados modernos, como algumas conselheiro mais realista a concluir porque evidências poderão demonstrar. TEMAS & MATIZES (cid:153) Nº 05 (cid:153) PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004 10

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Arthashastra, ele dava instruções precisas ao príncipe que desejasse . podia assaltar o poder e a partir daí exercer o seu comando brutal sobre os
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