Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Mestrado de História de Arte Moderna O Mecenato da Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) Dissertação para a obtenção do grau de Mestre sob a orientação do Prof. Doutor Rafael Moreira Candidata: Carla Alferes Pinto Lisboa, 1996 1 ÍNDICE Lista de abreviaturas e siglas 4 Introdução — A «imagem» da Infanta na historiografia: o estado da questão 7 Parte I — Dados Biográficos Capítulo 1 — Dona Maria, Infanta de Portugal 15 Capítulo 2 — A «Sempre-Noiva»: política matrimonial e diplomacia paralela 34 Capítulo 3 — A Sereníssima Infanta Dona Maria: a sua casa e fortuna 59 Parte II — O mecenato Capítulo 4 — «A Suprema glória»: o Desenho e a Pintura 73 Capítulo 5 — O mecenato arquitectónico e a lógica das fundações 87 Capítulo 6 — «Principis museolo»: a Escultura e a reinvenção das relíquias 108 Capítulo 7 — «Le soleil n’est pas plus brillant»: as Artes sumptuárias 120 2 Capítulo 8 — O mecenato literário 139 Capítulo 9 — O testamento, o «título das tenças» e o “mecenato póstumo” 161 Capítulo final — As impossibilidades do mecenato da Infanta Dona Maria 169 Fontes e Bibliografia 173 Anexo Documental Anexo Gráfico 3 Lista de abreviaturas e siglas # — cruzados artº — artigo c. — cerca de cap. — capítulo cód. — códice cx. — caixa doc. — documento ed. — edição fasc. — fascículo fº \ ffº — fólio (s) inv. — inventário Lº — Livro nº — número p. \ pp. —página (s) p/b — preto e branco res. — reservados s/d — sem data séc. — século sep. — separata vol. — volume cit. — citado 4 ANTT — Arquivo Nacional da Torre do Tombo BA — Biblioteca da Ajuda BNL — Biblioteca Nacional de Lisboa BNP — Biblioteca Nacional de Paris BPE — Biblioteca Pública de Évora MB — Museu Britânico MNAA — Museu Nacional de Arte Antiga 5 Parte I — Dados biográficos 6 Introdução — A "imagem" da Infanta na historiografia: o estado da questão 7 A decisão de fazer da Infanta D. Maria e da sua acção mecenática tema desta dissertação de mestrado começou a esboçar-se depois da realização de um trabalho para a cadeira anual em História da Arte Moderna sobre a Igreja de Nossa Senhora da Luz (no ano lectivo de 1991/1992). O complexo urbanístico da Luz — com a Igreja, Convento e Hospital — era, sem dúvida, o pólo mecenático mais conhecido da Infanta, apesar de nunca ter sido alvo de trabalhos monográficos. Foi a realização desses, sob o prisma arquitectónico, que nos suscitou um genuíno interesse pela personalidade da Infanta D. Maria, incrivelmente descurada pela historiografia nacional. A intenção que presidiu à análise desta personagem passava, inicialmente, por uma procura exaustiva de fontes — uma vez que existia pouca documentação identificada e analisada sobre a vida e acção da Infanta — que permitisse fundamentar ideias que, de alguma forma, reflectissem os últimos contributos da historiografia nacional e internacional, designadamente nos domínios da biografia, da historiografia sobre as mulheres e sobre o mecenato1. Todavia, apercebemos-nos rapidamente que a imagem da Infanta se encontrava envolta numa névoa de mistério e falsa piedade que nos conduziu a uma inevitável releitura da produção historiográfica tradicional e moderna. Esta capa quase mítica que envolve a figura de D. Maria começou a ser construída poucos anos depois da sua morte. Julgamos que a personalidade da Infanta foi sujeita a um apagamento propositado: pela sociedade contrareformista — que não podia aceitar uma mulher de acção enérgica e ambições próprias, criando o mito de uma falsa modéstia e da sua extrema beatitude —, e pelas circunstâncias políticas do novo governo filipino, cuja necessidade de legitimação passava pelo esquecimento forçado de uma personagem tão marcante da família de Avis. 1 Sobre estes temas têm sido publicados vários trabalhos nos últimos anos. Destacamos os seguintes: AAVV, 1978 — Culture et pouvoir au temps de l' Humanisme et de la Renaissance: Actes du Congrès Marguerite de Savoie. Genebra: Slatkine; Weightman, Christine, 1993 — Margaret of York: Duchess of Burgundy 1446- 1503. 2ª ed. Stroud: Alan Sutton; King, Margaret L., 1991 — A Mulher Renascentista in "O Homem Renascentista" (dir. Eugenio Garin). Lisboa: Editorial Presença, pp. 193-227 (L'Uomo del Rinascimento, 1988, Roma-Bari: Laterza & Figli Spa.; King, Margaret L., 1993 — Mujeres renacentistas: La búsqueda de un espacio. Madrid: Alianza Editorial (The Woman of the Renaissance, 1991, Roma-Bari: Laterza & Figli Spa.); Haskell, Francis, 1984 — Patronos y pintores: arte y sociedad en la Italia barroca. Madrid: Cátedra (Patrons and painters, 1980, Yale University); Trevor-Roper, Hugh, 1991 — Patronage and ideology at four Habsburg courts 1517-1633. 2ª ed. Londres: Thames and Hudson; Kempers, Bram, 1994 — Painting, Power and Patronage: The rise of the Professional Artist in Renaissance Italy. 2ª ed. Londres: Penguin (Kunst, macht en mecenaat, 1987); Strong, Roy, 1995 — Art and Power: Renaissance Festivals 1450-1650. 4ª ed. Suffolk: The Boydell Press. 8 As suas relações familiares sugeriam uma actuação pouco discreta no palco europeu. D. Maria era, de facto, vista como uma Habsburgo2 — ainda que dentro dos limites da conveniência de cada proposta casamenteira — e a sua presença, essencialmente devida à sua fortuna, foi continuamente disputada por três coroas: a portuguesa, a francesa e a castelhana. D. Maria nasceu e formou-se sob a égide renovadora e esperançada da devotio moderna e nem o início e conclusão dos trabalhos de Trento — e as pesadas consequências que produziu na religião e sociedade portuguesas — fizeram alterar substancialmente a sua postura3. Pelo contrário, julgamos que a Infanta usou uma sólida oposição aos exageros contra-reformistas como arma política contra o seu irmão Cardeal D. Henrique, que tão bem os personificava. Esta resistência de cariz religioso passava pela necessidade de D. Maria se afirmar politicamente diferente, mesmo antagónica, de seu irmão, como bem demonstra no programa arquitectónico e iconográfico da Igreja de Nossa Senhora da Luz, que adiante veremos4. A religiosidade não estava ausente do quotidiano da Infanta, como não estava, aliás, de qualquer outra personagem do século XVI europeu. A Igreja e as cerimónias religiosas marcavam a sua presença e importância em inúmeros e distintos acontecimentos públicos e privados, acentuando o seu papel de paladina da moral mas, também, de legitimadora política que os princípes usavam conforme as necessidades. Por outro lado, os anos de Quinhentos assistiram a diferentes posturas sobre a forma de encarar a religião, que encontram posições extremadas entre os momentos pré e contra reformistas. Foi em Damião de Góis e João de Barros que encontrámos as primeiras palavras elogiosas dirigidas à Infanta. Damião de Góis, enquanto cronista oficial de seu pai, limita-se 2 Veja-se o exemplo de Francisco I que, ao propôr a paz a Carlos V através de casamentos, menciona apenas a filha do Imperador e a Infanta portuguesa: "encarregado o dito embaixador de insinuar ao Imperador o quanto cumpria, para estreitar mais a amizade que entre elles reinava, o vincularem-se por via de casamentos; [...], se com sua filha, se com sua sobrinha a Infanta, de Portugal." BNP, Cód. 8 577, p. 204 cit. in Santarém, 1842-1860, vol. 3, p. 275. 3 "Nada na vida destas duas damas [Blesilla e Flamínia, personagens do Colloquium de Luísa Sigeia, escrito em 1552] nos indica que rezem, que frequentem a missa e os sacramentos. É evidente que o não fazem. As suas obrigações religiosas exteriorizam-se em algumas boas obras e no temor a Deus e não é claro na leitura que as boas obras decorram de um princípio religioso e não apenas da solidariedade humana. Não são certamente necessárias para a Salvação." Alves, 1990, p. 73. 4 Discordamos, portanto, da ideia de Carolina Michaëlis de Vasconcelos que encontrou na atitude religiosa da Infanta uma alteração nitída: teria sido introduzida nos estudos humanistas, mas com a evolução social e religiosa que Portugal viveu teria passado a um registo de vida mais recolhida e piedosa. Vasconcelos, 1983, p. 85, n. 118. O facto de D. Maria ter instituído conventos e um hospital, reflecte mais as atitudes do pai e da tia D. Leonor, que uma piedade exacerbada. Por outro lado, como iremos mostrar no capítulo 2, a princesa tentou ser rainha até à sua morte. 9 a referir a imensa fortuna de D. Maria. Barros — no seu extenso Panegírico de 80 capítulos — fornece-nos importantes dados para a compreensão e formação da personalidade de D. Maria, dizendo-nos que o profundo estudo da língua latina que a Infanta praticou se deveu à necessidade de ler os Doutores da Igreja e as Sagradas Escrituras5. Existe, sem dúvida, um exagero da parte de João de Barros nestas afirmações. A sua ideia seria a de enaltecer a inteligência e estudo de D. Maria mais que o fervor religioso e, de qualquer forma, este texto foi escrito para comemorar o facto da Infanta se tornar Senhora de Viseu, cidade da qual Barros era natural. O elogio de João de Barros surge-nos precocemente, revelando as preocupações humanistas que eram também as suas, mas historiando sem material, sem o devido distanciamento temporal necessário a uma análise mais objectiva. Esta falta de objectividade agrava-se no período filipino, do qual datam os relatos seguintes: Pedro Mariz nos seus Dialogos de vária história (1594), Duarte Nunes de Leão na sua Descrição do Reino de Portugal (1610) ou Frei Luís dos Anjos no seu Jardim de Portugal (1626). Mencionam uma remota imagem de virtude, riqueza e erudição, que sendo verdadeira, adquire contornos de exaltação piedosa. Frei Miguel Pacheco iniciou uma nova etapa na produção historiográfica sobre a figura da Infanta, com propósitos políticos opostos — ou seja, a legitimação da nova dinastia de Bragança — mas que vai acentuar a ideia de redução do papel da mulher às virtudes feminis6. Em 1675 foi dada à estampa, postumamente, a muito sui generis obra de Pacheco. Na Vida de la Serenissima Infanta Doña Maria — uma das primeiras biografias escritas sobre personagens portuguesas e seguramente precoce no que diz respeito a mulheres — foi feito um relato bastante pormenorizado dos passos da vida da protagonista, acompanhada por comentários e referências constantes a textos clássicos, nomeadamente citações da Bíblia e de autores cristãos e romanos. Para além das citações e exageros de teor religioso — que conferem ao texto um carácter de apologética hagiográfica — Pacheco teve acesso a algumas fontes7 que interpretou de forma a "criar" a lenda da desventurosa vida da Infanta, sempre preterida pelo irmão. Mas afinal, e pondo de parte as suas considerações contra-reformistas, os dados crus 5 Barros, 1946, parágrafos 19 e 24. 6 Manuel de Faria e Sousa (1674), no seu Epitome de las histórias portuguesas lembrara já a cultura e erudição de D. Maria. 7 "Tengo en mi poder cartas originales, todas de su letra, en estremo bien formada" Pacheco, 1675, p. 88 10
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