contra-capa: O inominável é o terceiro volume de uma trilogia escrita entre 1946 e 1949, integrada por Molloy (já publicado pela Nova Fronteira) e Malone Morre. Aqui, o papa da estética do absurdo nos conta a história de Mahood, um ser sem nome que é puro discurso, uma cabeça numa cadeira, uma bolha falante. Os personagens de Beckett nunca estão seguros de nada e vivem numa perpétua oscilação entre o máximo e o mínimo, num paradoxo perene. Samuel Beckett, nascido em Dublin em 1906, criador magnífico tanto em inglês quanto em francês, recebeu em 1969 o Prêmio Nobel de Literatura. aba(s): O INOMINÁVEL Um ser, talvez um homem, está sentado sem poder mover-se, sem saber direito onde se encontra, como é o ambiente à sua volta, cercado ocasionalmente por pessoas que não pode ver perfeitamente, com as quais não se pode comunicar, sem saber sequer se tem um corpo. Sua única atividade, que o mantém vivo, consciente, é pensar. Mais do que o ato de pensar, o pensamento em estado puro, essência desse ser inominável, sua própria vida, manifesta-se no extenso monólogo interior que forma este livro, ponto culminante de um grande processo de desintegração e perda através do qual os personagens de Beckett ficam reduzidos ao discurso aparentemente desconexo de uma consciência separada do mundo exterior e até mesmo do próprio corpo. Essa estranha forma abstrata de existir cria uma “realidade” que se assemelha a um pesadelo abarcando passado e futuro, uma manifestação fluida de algo que se poderia considerar como pré-consciente. Todo personagem central de Samuel Beckett está em perpétuo conflito com os objetos e os seres que o rodeiam, já que só ele tem realidade, embora lhe falte identidade. Dar a essa projeção caótica de um ser que só se realiza através do pensamento uma forma de novela, que pressupõe um mínimo de estrutura e ordem, conseguir criar uma “ação” onde nada aparentemente acontece, tem sido o feito repetido por Beckett tanto em suas novelas como em seu teatro. E em O INOMINÁVEL essa circunstância é levada ao extremo, criando assim um livro que além de funcionar alegórica ou simbolicamente em vários planos (a busca de identidade do homem, a reflexão do romancista sobre o seu ofício, etc.) constitui também o exemplo mais perfeito do fenômeno literário que é Samuel Beckett. Embora parte da grande trilogia iniciada com MOLLOY e continuada com MALONE MORRE, O INOMINÁVEL pode ser lido como uma narrativa completa em si mesma, totalmente independente. Capa: Victor Burton SAMUEL BECKETT O INOMINÁVEL ROMANCE Tradução de Waltersir Dutra EDITORA NOVA FRONTEIRA Título original: L’INNOMMABLE © 1953, by Les Editions de MINUIT Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A. Rua Bambina, 25 - CEP 22251 - Botafogo - Tel: 286-7822 Endereço telegráfico: NEOFRONT - Telex: 34695 ENFS BR Rio de Janeiro, RJ Revisão tipográfica: ALVARO TAVARES, WALTER DUARTE, IZIDORO RANGEL CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Beckett, Samuel, 1906-B356i O inominável / Samuel Beckett; tradução de Waltensir Dutra — Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1989. ISBN 85.209.0140-9 Tradução de : L’innommable. 1. Romance irlandês. I. Dutra, Waltensir, 1926-. II. Titulo CDD - 828.99153 89-0118 CDU - 820(418.3)-3 ****** Digitalização, formatação e correção: Chuncho (LAVRo) ****** Onde agora? Quando agora? Quem agora? Sem me perguntar isso. Dizer eu. Sem o pensar. Chamar isso de perguntas, hipóteses. Ir adiante, chamar isso de ir, chamar isso de adiante. Pode ser que um dia, primeiro passo, vá, eu tenha simplesmente ficado, no qual, em vez de sair, segundo um velho hábito, passar o dia e a noite tão longe quanto possível de casa, não era longe. Pode ter começado assim. Eu não me farei mais perguntas. A gente pensa que vai só descansar, para agir melhor depois, ou sem outra intenção, e eis que em muito pouco tempo estamos na impossibilidade de jamais fazer alguma coisa. Pouco importa como isso aconteceu. Isso, dizer isso, sem saber o quê. Talvez eu tenha apenas confirmado um velho estado de coisas. Mas não fiz nada. Pareço estar falando, mas não sou eu, de mim, não é de mim. Algumas generalizações, para começar. Como fazer, como vou fazer, que devo fazer, na situação em que estou, como proceder? Por pura aporia ou então por afirmações e negações invalidadas à medida que surgem, ou mais cedo ou mais tarde. Isso de um modo geral. Deve haver outros caminhos indiretos. Se não, seria para se desesperar de tudo. Mas é para se desesperar de tudo. Notar, antes de ir mais longe, mais adiante, que digo aporia sem saber o que isso quer dizer. Podemos ser eféticos de outra maneira que não seja à nossa revelia? Não sei. Os sim e os não, isso é outra coisa, eles me voltarão à medida que eu progredirei, e a maneira de cagar em cima, cedo ou tarde, como um pássaro, sem esquecer um único. Diz-se isso. O fato parece ser, se é que nesta situação em que estou se pode falar de fatos-, não somente que vou ter de falar de coisas de que não posso falar, mas também, o que é ainda mais interessante, que eu, o que é ainda mais interessante, que eu, não sei mais, isso não importa. No entanto sou obrigado a falar. Não me calarei nunca. Nunca. Não estarei só, os primeiros tempos. Eu o estou, sem dúvida. Só. Diz-se depressa. É preciso dizê-lo depressa. E como saber, numa escuridão dessas? Vou ter companhia. Para começar. Alguns fantoches. Eu os suprimirei depois. Se puder. E os objetos, qual deve ser a atitude para com os objetos? Em primeiro lugar, será necessária? Que pergunta. Mas eu não me escondo que eles são previsíveis. O melhor é nada decidir sobre isso, antes. Se um objeto surgir, por qualquer razão, levá-lo em conta. Onde há gente, como se diz, há coisas. Quer isso dizer que, admitindo as primeiras, é necessário admitir as segundas? É o que resta saber. O que é preciso evitar, não sei por quê, é o espírito do sistema. Pessoas com coisas, pessoas sem coisas, coisas sem pessoas, pouco importa, eu espero poder varrer tudo isso em pouco tempo. Não vejo como. O mais simples seria não começar. Mas sou obrigado a começar. Quer dizer que sou obrigado a continuar. Acabarei talvez por estar muito cercado, numa confusão. Idas e vindas incessantes, atmosfera de bazar. Estou tranquilo, vamos. Malone está aí. De sua vivacidade mortal restam poucos traços. Ele passa à minha frente a intervalos sem dúvida regulares, a não ser que seja eu quem passa à sua frente. Não, de uma vez por todas, eu não me mexo. Ele passa, imóvel. Mas não se trata muito de Malone, de quem não há mais nada a esperar. Pessoalmente não tenho a intenção de aborrecer-me. Ao vê-lo, a ele, é que me perguntei se projetamos uma sombra. Impossível saber. Ele passa junto de mim, a alguns centímetros, lentamente, sempre no mesmo sentido. Acredito que seja ele. Esse chapéu sem abas me parece conclusivo. Ele apóia o maxilar nas duas mãos. Passa sem me dirigir a palavra. Talvez não me veja. Um dia desses vou interpelá- lo, eu direi, não sei, encontrarei, na hora. Não há dias aqui, mas eu uso a fórmula. Eu o vejo da cabeça até a cintura. Ele acaba na cintura, para mim. O busto está erguido. Mas ignoro se está de pé ou de joelhos. Talvez esteja sentado. Vejo-o de perfil. Por vezes me digo, Não será antes Molloy? Talvez seja Molloy, com o chapéu de Malone. Mas é mais razoável supor que seja Malone, com o seu próprio chapéu. Ora, eis aí o primeiro objeto, o chapéu de Malone. Não lhe vejo outras roupas. Quanto a Molloy, talvez não esteja aqui. Poderia estar sem o meu conhecimento? O lugar é sem dúvida vasto. Fracas luzes parecem indicar por momentos uma espécie de distância. Na verdade, creio que estão todos aqui, a partir de Murphy pelo menos, creio que estamos todos aqui, mas até o momento só vi Malone. Outra hipótese: estiveram aqui, mas já não estão mais. Vou examiná-la, ao meu jeito. Haverá outros fundos, mais abaixo? Aos quais se chegue por aqui? Estúpida obsessão da profundeza. Haverá outros lugares previstos para nós, dos quais este onde estou, com Malone, é apenas a entrada? E eu que acreditava ter acabado com os estágios. Não, não, sei que estamos todos aqui para sempre, desde sempre. Não me farei mais perguntas. Não se tratará antes do lugar onde acabamos por nos dissipar? Virá o dia em que Malone não passará mais à minha frente? Virá o dia em que Malone não passará diante de onde eu estive? Virá o dia em que um outro passará diante do lugar onde estive? Não tenho opinião. Se eu não fosse insensível, sua barba me daria pena. Ela cai em duas mechas de comprimento desigual, dos dois lados do queixo. Terá havido um tempo em que eu também girava assim? Não, estive sempre sentado neste mesmo lugar, com as mãos nos joelhos, olhando para a frente como um grão-duque num viveiro de pássaros. As lágrimas deslizam pelas minhas faces sem que eu sinta necessidade de piscar os olhos. O que me faz chorar assim? De quando em quando. Não há nada aqui que me possa entristecer. Talvez seja o cérebro liquidificado. A felicidade passada, em todo caso, me fugiu totalmente da memória, se é que ali esteve alguma vez. Se executo outras funções naturais, é à minha revelia. Nada me perturba, nunca. Apesar disso, estou inquieto. Nada muda aqui desde que estou aqui, mas não me atrevo a concluir que não venha a mudar nunca. Vejamos um pouco aonde levam essas considerações. Estou, desde que estou, aqui minhas aparições alhures foram feitas por terceiros. Durante todo esse tempo tudo se passou na maior calma, na ordem mais perfeita, exceto algumas manifestações cujo sentido me escapa. Não, não é que seu sentido me escape, pois o meu também me escapa igualmente. Tudo aqui, não, não o direi, não podendo. Não devo minha existência a ninguém, essas luzes não são as que clareiam ou queimam. Não indo para parte alguma, não vindo de parte alguma, Malone passa. De onde me vêm essas noções de ancestrais, de casas onde a luz é acesa quando anoitece, e tantas outras? Busquei por toda parte. E todas essas perguntas que me faço. Não é com espírito de curiosidade. Não me posso calar. Não tenho necessidade de saber nada a meu respeito. Aqui tudo é claro. Não, tudo não é claro. Mas é necessário que o discurso se faça. Inventam-se então obscuridades. É a retórica. O que têm elas de tão estranho, então, essas luzes às quais não peço que signifiquem alguma coisa, quase de deslocado? É a sua irregularidade, sua instabilidade, seu brilho por vezes forte, por vezes fraco, mas não ultrapassando nunca a potência de uma ou duas velas? Malone, ele, aparece e desaparece com uma exatidão mecânica, sempre à mesma distância de mim, com a mesma velocidade, no mesmo sentido, na mesma atitude. Mas o jogo de luzes é realmente imprevisível. Será preciso dizer que a um olho menos prevenido que o meu elas provavelmente passariam despercebidas. Mas, mesmo ao meu, não escapam por momentos? Elas são talvez permanentes e fixas, percebidas por mim de maneira vacilante e intermitente. Espero ter oportunidade de voltar a essa questão. Mas direi, desde
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