\ FREDRIK BARTH 1 [organização: Tomke Lask ColeçãokjihOgfyepdocgb1aZ'aYpXboWsVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA Direção:Antonio Carlos deSouza Lima I. Processos eescolhas: estudos desociologia política Elisa Pereira Reis o gur u) O inicia dor 2.O guru, oiniciador eoutras variações antropológicas Frtdrik Barth [organizarão: Tomk, LaskP1ONMLKJIHGFEDCBA e outras variações antropológicas 3.Criatividade social, subjetividade coletiva A !;~]f.,<f+iJ eamodernidade brasileira contemporânea l/;.-, v [os!Maurício Domingues UNIDADE ..L J...t; I /.:z..r:tJ~J. NA CHAMADA 501,''-=+' "(t-I"f G? <.:\,;.:.\ " ..•". .'.'''l..,. "r,y T V __ .__ ~EX ;~~~1K'8~ DO C~ ~2. PRECO ~ 170 - l: Tradução DATA O l-l'-I'I 6 q ~ t John Cunha Comeiford «., :11 "101107""l~403" 1 r.IE 301.28282g /,,- ~~fp c· ( c. lJi\liCAlP ~~~SiJ.;!-!rClçl.!~ .•. Copyrighc Cl 2000. Fredrik Barrh Sumário kjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA TrtHiUfio Jobn Cunba Comerjord IMutrc t Oouloundo pelo PPGAS/Muscu N~.:ionJIJ R,yistio ütnic« Apresentação - Tomke Lask 7 Antonio Csrlo: deSouza Lima Projeto Cr4fieo l prtp.,llfio .Os grupos étnicos e suas fronteiras 25 Contra Capa A identidade pathan e sua manutenção 69 Processos étnicos na fronteira entre os Pathan e os Baluchi 95PONMLKJIHGFEDCBA BARTH. FredrikA J O guru. o iniciador eoutras variações antropolôgicas. - Fredrik Buth. A análise da cultura nas sociedades complexas 107 TraduçãodeJohnCunhaComerford. Riode[aneiro: Contra C'P' Livrari•. 2000. O guru e o iniciador: transações de conhecimento e [lj'pographos n"2] - 2H p.: 1+ • 21 cm. moldagem da cultura no sudeste da Ásia e na Melanésia 141 Por um maior naturalismo na conceptualização das sociedades 167 Inclui Bibliografia. ISBN 85-86011-35-5 Metodologias comparativas na análise dos dados antropológicos 187 Entrevista 201 Referências bibliográficas 229 Posfãcio - Marco Martiniello 239 2000 Todos os direitos desta edição reservados à Contra Capa Livraria Ltda, <[email protected]> Rua Barata Ribeiro. 370 - Loja 325 22040-000 - Rio de Janeiro - RJ Te! (55 21) 236-1999 Fax (55 21) 256-0526 \ Apresentação zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA Existem boas razões para publicar uma antologia de textos do an- tropólogo norueguês Fredrik Barth. Em primeiro lugar, alguns as- pectos de sua obra são muito difundidos no ensino de pós-gradu- ação em antropologia no Brasil, e se pode afirmar, sem exagero, que esta obra faz parte dos clássicos da antropologia. Em segundo, a força de sua teoria das fronteiras étnicas, datada do fim da década de 1960, continua a estimular as discussões científicas entre as novas gerações de antropólogos tanto no Brasil, quanto no resto do mundo. Por fim, em dezembro de 1998, Fredrik Barth comple- tou seu septuagésimo aniversário e a publicação de uma antologia que rerraça a evolução de seu pensamento é uma bela maneira de homenageá-Io. Essa homenagem, contudo, não deve ser interpretada como uma indicação do ponto final das atividades de Fredrik Barth, pois homenagens costumam começar no fim da vida de uma personali- dade ou depois da sua morte. Neste caso, ela deve ser vista como ênfase de seu grande dinamismo, pois Barth, além de se lançar cada vez mais na vida pública, continua a pesquisar e aproduzir textos e livros. Sua última experiência de campo, por exemplo, foi no Butão - um pequeno e isolado país no nordeste da Índia - onde traba- lhou durante dez meses entre 1985 e 1993. Aos setenta anos, ele não perdeu nada de seu espírito empreendedor e projetos não lhe faltam. Como se pode ver na entrevista publicada neste volume, okjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA babitus da aventura científica lhe foi inculcado cedo e com muita eficácia. Desde garoto, acompanhava o pai, geólogo, nas expedi- ções cartográficas realizadas durante o verão, incorporando imper- ceptivelmente a sensibilidade para a relação entre o meio ambiente físico eas interpretações científicas sobre ele.Mais tarde, anecessidade PONMLKJIHGFEDCBA FREDRI~ BARTH APRESENTAÇÃO de expor-se à convivência com o ambiente socioecológico se torna- antropológica.'. Além disso. este conceito se tornou um dos ins- ria uma regra geral para a concepção de seu trabalho antropológico. trumentos mais requisitados pela análise sociológica. Sob sua ins- Alimentar constantemente o debate intelectual com suas idéias piração, outros conceitos como. por exemplo. o de nacionalismo inovadoras e instigar o questionamento de conceitos aparente- puderam ser vistos com outros olhos e, dessa maneira. responder mente bem estabelecidos, tais como etnicidade egrupo itnico, é um de maneira mais consistente às mudanças geopolíticas interpreta- dos maiores méritos da obra de Fredrik Barth. A discussão origi- das pelas análises científicas. nada pela publicação de Etbnic groups and boundaries (1969) I, por Barth, porém. não se contentou em dar uma nova concepção exemplo, e que na época provocou uma série de reações, continua ao conceito de etnicidade. Aprimorando a lógica de seu raciocínio a sustentar o debate na comunidade científica internaciona1.2 Na inicial, aplicou-o ao estudo das sociedades complexas e elaborou década de 1970, antropólogos como Abner Cohen, Ronald Cohen uma metodologia comparativa adequada para explicar a diversidade e Charles Keyes, inspirados pelo conceito de etnicidade de Barth, cultural nesse tipo de sociedade." Aliás, na sua introdução a Etbnic tentaram desenvolver novos instrumentos teóricos para a pesquisa groups and boundaries já há um esboço teórico dessa preocupação sob a noção de sociedade poliétnica, na qual explica a existência de variáveis de uma mesma cultura a partir das diferentes condições ecológicas em que os subgrupos da sociedade vivem. Dito de outro modo. a relação entre o meio ambiente e seu efeito sobre as expres- Para mais detalhes, cf.aintrodução de Barth aesta obra "Os grupos étnicos e I sões culturais é onipresente na análise científica de Barth, que as- suas fronteiras", p. 25-67. sim deixa transparecer sua formação inicial em ciências exatas. Para 2O livrodeMartiniello (I995) sobre aetnicidade nasciênciassociais representa um dos exemplos franceses mais recentes da persistência do interesse pelo ele. descobrir os princípios que articulam em uma única base a di- conceito de etnicidade. Atensão que se faz presente na França em relação ao versidade cultural de uma civilização complexa é uma questão que problema dos imigrantes - criadapelo evidente fracasso dapolítica deintegraçãokjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA passa, em primeiro lugar e necessariamente. pela etnografia.' à Iafi"anfaise- está presente tanto no contexto daconstrução européia, quanto em termos mundiais: osmovimentos migratórios mantêm aproblemática do Assim, não foi fortuito que Barth, no início da sua carreira, contato interétnico napauta dodia.Isso talvezexplique ointeresse francês pela quando ainda estudava paleontologia na Universidade de Chicago, introdução de Fredrik Barth ao livro Etbnic groups and boundaries, finalmente tenha se encantado com a antropologia social britânica através da publicada em 1995, mesmo que demaneira bastante discreta, como um adendo ao livro Tbiorus deI'ithnicit/ (Paris, PUF), de Philippe Poutignat et Jocelyne leitura da obra de Raymond Firth, com o qual estudaria na l.ondon Streiff-Fenart [Tradução brasileira: Teorias da etniciáad«. São Paulo. UNESP, 1998). Aapresentação deBarth incluída nacontracapa do livro deixa claro que trata-se deumadescoberta recente deseupensamento. pois asobrasmencionadas como as mais importantes de Barth se limitam atrês obras do início de sua \ O artigo "Aclass act: anthropology and the race to narion across ethnic carreira. Ethnicgroups andboundarieséooitavo livro deBarth. Os nove livros que rerrain", de Brackette F.Williams, publicado naAnnualReviewsofAnthropology em oseguem não têm qualquer registro. Diga-se depassagem que alimitação do 1989, apresenta um ótimo retrato desse debate nas décadas de 1970 e 1980. pensamento deBarth aosproblemas ligados àetnicidade éencontrada também no Brasil.Ver.por exemplo, Cunha (1986). 'Ver ocapítulo "Metodologias comparativas na análise dos dados antropo- lógicos", p. 107-39. N. do E. Originalmente. apresente coletânea foi concebida por Tomke Lask para um público francófono. Paraaedição brasileira. aorganizadora. além deter SSeu último estudo publicado sobre Bali (Barth 1993) éum exemplo perfeito redigido aintrodução, elaborou com Antonio Carlos deSouza Limaacomposição desua exigência científica empirista, Este tema éabordado também nocapítulo "Aanálise da cultura nas sociedades complexas", p. 187-200. final eaordenação dos textos. 8 ..•. FREDRIK BARTH APRESENTAÇÃOkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA Schoo/ O]Economics al1d Political Scimce (LSE). Nessa ocasião. conhe- sem privilegiar cronologicamente teoria e etnografia. transformou ceu Edmund Leach, que trabalhava nessa mesma instituição. Leach as incongruências da realidade pesquisada na fonte de informação passaria a exercer para Barth um papel. se não de mentor intelectual. mais rica: a teoria tem de se adaptar à realidade. enão o inverso. isto de grande influência e inspiração científica. a ponto de este segui- é. as categorias êrnicas são a base dos conceitos sociológicos." En- 10 até Cambridge para fazer o doutorado sob sua orientação. apoi- quanto Leach não abre mão da comparação posterior em termos ado por uma bolsa do governo norueguês. Embora hoje Barth não sociológicos. supondo uma sobreposição dos significados êrnicos chegue a se declarar discípulo de Leach - e não deixe de lembrar a e científicos nesse estágio da p+squisa, Barth desconfia do discur- fertilidade intelectual desse contato privilegiado" - ele considera so idealizador da sociedade pesquisada e se apóia exclusivamente o impacto da experiência da pesquisa de campo como o ponto mais nas práticas sociais para descobrir o verdadeiro significado das ca- importante de sua formação intelectual: poder estudar uma socie- tegorias êmicas, As interações entre pessoas e diferentes comunida- dade em seu contexto e. a partir desses dados. desenvolver uma des se tornam a chave de compreensão dos valores inerentes dessa teoria sobre seu funcionamento. e não o contrário. Esta atitude sociedade. A partir dessa avaliação. a questão do timil1gda introdução intelectual cristalizou-se ao longo de sua carreira de exímio etnógrafo de qualquer instrumento analítico na pesquisa torna-se incontornável. para se tornar um preceito metodológico imprescindível. Até hoje a discussão do valor da terminologia êrnica e a manei- Assim. a obra de Barth se inscreve diretamente na tradição do ra pela qual Leach tentou reapropriar-se dela continuam sendo ob- debate teórico entre as escolas antropológicas dualista e monista, jeto de análise e de crítica construtiva na obra de Barth, tendo res- que na época em que fazia seu doutorado em Cambridge. estava em surgido mais uma vez em Baliruse worlds. Neste livro. Barth analisa o plena efervescência entre os discípulos de Boas. Malinowski e momento oportuno da introdução da teoria antropológica durante Radcliffe-Brown (Leaf 1981).7 Era necessário encontrar uma solu- a fase de coleta de dados partindo do exemplo elucidativo da aná- ção para a discrepância que havia entre os modelos conceituais de lise de Leach sobre um vilarejo em Sri Lanka (Leach 1961. apud sociedade e a realidade observada em que estes eram aplicados. Con- Barth 1993:98-ss). Em que momento da pesquisa a posição teóri- vencido da necessidade dos modelos teóricos como base de compa- ca do antropólogo deve se tornar predominante? Quando e de que ração científica. Leach acabaria aceitando as incongruências com rela- maneira transformar a terminologia dos nativos em terminologia ção às estruturas sociais como efeito da imprecisão das representa- técnica, quer dizer. em conceitos sociológicos? Segundo Barth, não ções culturais. Para ele. somente as representações científicas podem se deve passar cedo demais para essa transformação porque esses ser exatas. ainda que reconheça a necessidade de incoerências para o termos dependem do contexto local em que estão inseridos e po- funcionamento adequado dos sistemas sociais (Leach 1954: 4). dem ter significados variados numa mesma sociedade. Barth, por sua vez. incorporou o desafio dessa problemática Barth introduz algo novo na metodologia comparativa como como uma das preocupações fundamentais em suas pesquisas e. praticada pela antropologia até então: a comparação deve ser feita inicialmente dentro da mesma sociedade entre grupos ou vilarejos geograficamente afastados. Deste modo, o significado dos valores "Ver aentrevista com Fredrik Barrh, P:20PI-2O8. NMLKJIHGFEDCBA 7Edmund Leach, aluno deMalinowski, também sedebateu com os problemas decorrentes do dualismo em seu estudo sobre os sistemas políticos da Alta 8Uma proposta semelhante foidefendida por Leachemsuaaulaem homenagem Birmânia. Cf. Leach (1954). aMalinowski. em 3de dezembro 1959 na LSE (Leach 1974: 13-5 I). 10 II PONMLKJIHGFEDCBA AVRF.5Et-tTAÇÁO FREDRJI; BAATH cessário analisar as atitudes e o comportamento das pessoas em êrnicos pode ser compreendido em sua plena complexidade social. seu cotidiano num raio de ação maior que o grupo ou a comunida- Apenas num segundo momento torna-se possível comparar siste- de inicialmente estudada; é necessário aceitar a diversidade cultu- mas êrnicos de diferentes sociedades. Nesse ponto, Barth ultrapas- ral, não se devendo retirar da realidade suas imperfeições ou seus sa as propostas de Leach em favor das categorias nativas e da ne- emgmas. cessidade de livrar-se" dektjoidhagsfeadscbsuaZpoYsXiçWõeVsUTaSpRrioQriP"ON(LMeaLcKhJIH19G7F4E:DC5OBA). Para desenvolver esta análise, escolhi inverter a l6gica Como se sabe, para progredir, é necessário matar seus mestres. normalmente utilizada pelos antropólogos e,de saída, incluir A pesquisa comparativa se impõe então em vários níveis. Se o aexperiência de vida,assim como aspreocupações eorientações antropólogo não respeita este procedimento, pode se deparar com que a produzem; em seguida, derivei as constrt{ões que elas divergências na interpretação dos dados, como ocorreu com Leach, próprias teriam para aspráticas eas interpretações das pessoas. que, oito anos depois de seu livro sobre o Sri Lanka, viu sua Porém se esta construção é válida, devemos ser capazes de monografia contestada por uma interpretação completamente dife- mostrar corno as próprias pessoas conceptualizam e rente da sua no que dizia respeito ao significado das categorias de institucionalizam tais preocupações corno sendo as suas, independentemente do quão pragmáticas econtextuais sejam parentesco eo elo delas com apropriedade (Robinson 1969). Como suas fontes. Para identificar as representações culturais Barth adverte, o uso da terminologia nativa não garante a constru- utilizadas por determinadas pessoas, devemos nos voltar para ção de categorias científicas corretas. Suspeitas sobre a validade de o conhecimento epara o discurso que essas pessoas empregam uma pesquisa podem aparecer quando trabalhos independentes de para interpretar eobjetivar suas vidas (Barth 1993: 346-7). dois antropólogos - utilizando termos científicos idênticos, de- rivados da terminologia nativa de uma mesma cultura - apresen- A etnografia, portanto, permite compreender um momento do tam resultados diferentes em relação ao significado dessas catego- processo da construção de um tecido sociocultural em que a rias. Há que se levar em conta contextos socioeconômicos distin- interdependência dos elementos presentes se torna visível. tos e condições de meio ambiente variadas. Aliás, o estudo de Barth Urna segunda característica do pensamento de Barth reside em sobre Bali deixa Clifford Geertz na mesma situação que o artigo de sua visão diacrônica dos dados sociais. Todos os traços culturais Robinson deixara Leach. Barth, porém, tem plena consciência da têm um passado e precisam ser compreendidos corno resultado de problemáticametodológica inerente à divergência dos resultados, um processo em que estão em jogo vários elementos. Pode-se dizer estimulando um debate científico construtivo a esse respeito, a fim que Barth procura definir a cultura com base na força heurística de elaborar uma solução para a persistência das divergências. Em dos significados que os nativos dão às suas interações. Um levan- outras palavras, Barth não searérn tanto à existência de diferenças tamento da competência interpretativa pode evidenciar a distribui- - essas não o surpreendem - mas sim a chegar a uma explicação ção de uma cultura no espaço e indicar as fronteiras de um grupo das diferenças dentro de um mesmo sistema cultural e a como étnico ou de uma sociedade complexa. Um determinado evento aproveitá-Ias como dado científico positivo na análise antropoló- pode ser vivido e interpretado a partir de diferentes modelos, de gica de sociedades complexas. acordo com o contexto cultural do participante. Em sociedades O que isto significa para a prática da pesquisa antropol6gica? complexas como, por exemplo, a de Bali, esta constatação se liga à Isto significa que, em vez de reificar os valores de um sistema a visibilidade de urna riqueza cultural que, na verdade, precisa ser partir de suas aparências coletadas em uma única localidade, é ne- 13 12 FRF.UIU~ B,'RTH AI'RESEN",/\y\O • decodificada segundo diferentes sistemas ou correntes de valores. que se encontram e se misturam como se fossem um único evento unificado. Uma apresentação do antropólogo não seria completa sem evo- Como mencionado. para Barth, a base da análise antropológica car o cidadão Fredrik Barth. pois, sem esquecer um único segundo válida é a metodologia comparativa. ou melhor. a comparação entre sua profissão e a excelência acadêmica, ele sempre se engajou em diferentes versões êrnicas de um mesmo fato social numa mesma promover o papel do antropólogo na vida pública ou. para usar os sociedade. e não a comparação de diferentes descrições de antropó- termos de Pierre Bourdieu, ele luta incansavelmente pelo aumento logos sobre unidades conceituais arbitrariamente delimitadas. tais do capital simbólico dos antropólogos no espaço social. Isso sig- como" sociedade" ou "cul tura", isto é. conceitos reificados ou fic- nifica que Barth considera imprescindível a presença dos antropó- ções.? Ele nos mostra que o desafio de repensar o papel e a defini- logos nos processos decisórios na política e lamenta que. em parti- ção da comparação na antropologia social e cultural se liga à persis- cular nos Estados Unidos. a "classe" dos antropólogos tenha tão tência em identificar variantes de uma mesma categoria. que em se- pouca visibilidade na vida pública.!" guida podem ser comparadas. valendo tanto para comparações den- Quando Barth dá o exemplo das suas próprias atividades como tro de uma mesma cultura. como para uma comparação através de homem público ede consultor de diferentes governos e de agências diferentes culturas. Este procedimento. contudo. não estabelece internacionais para o desenvolvimento. não se trata de motivação equivalências. pois a comparação se faz com base em descrições egocêntrica de autopromoção. Ao contrário, trata-se da preocupa- conceptualizadas de antemão pela interpretação do antropólogo e ção em dar um exemplo aos colegas para que também eles assumam não dos nativos. Normalmente são comparadas representações de mais responsabilidades civis a fim de criar um espaço no campo antropólogos. ou seja, versões no mínimo secundárias da interpre- político para o conhecimento antropológico. pois somente assim. tação êmica. acredita ele. aantropologia poderá obter um reconhecimento social Em resumo. as idéias de Barth com relação à metodologia an- maior e influenciar a política de maneira duradoura." Em outras tropológica afirmam que a comparação depende do conhecimento palavras, segundo Barth, os antropólogos têm de construir uma de um amplo leque de definições êmicas de uma mesma categoria. atitude mais política em seu trabalho!", assim como os cientistas A contextualização das diferentes variantes dessa categoria permite políticos devem reapropriar-se das idéias antropológicas para me- PONMLKJIHGFEDCBA definir o quadro de valores dentro do qual a categoria é compreen- lhorar as análises políticas.'l dida pelos nativos. Entender o porquê das variações de significado permite ressaltar o sentido empregado pelos nativos. Essa maneira de proceder a um estudo comparativo certamente evita mal-enten- didos. presentes, por exemplo. nos casos de Leach e Robinson e de to Cf. aentrevista de Fredrik Barth parakAjinhlhgrfoepdoclobgayZNYeXwsWletVterU,TdSaRAQmPeOricNanMLKJIHGFEDCBA Geertz e Barth, anteriormente mencionados. Anthropological Associaricn, em fevereiro de 1997. P:60. 11Ver,por exemplo. aentrevista com Fredrik Barth, P:20 I-28. " Que fique claro aqui que também não basta assumir uma posição de poder sendo antropólogo ou sociólogo, se os conhecimentos e as sensibilidades 9 Cf. o capítulo "Metodologias comparativas na análise dos dados específicas dessas profissões são sacrificadas no altar davaidade política. antropológicos", P: I07-39. 11 Cf oposfácio deMarco Martiniello. p.239-42. I4 15 FREDRIK BARTH AVRESENTAÇÃO Franz Boas é uma das referências de Barth para este apelo. Se- na qual a obra de Fredrik Barth pode ser altamente útil, inclusive gundo este, ninguém pedira a Boas: "por favor, mude as idéias so- para reanimar a discussão em torno desta questão em bases cientí- bre raça nos Estados Unidos! Ele tinha que afrontar a sociedade e ficas, que possivelmente reforçariam a posição institucional de an- convencê-Ia" 14. De certo modo, os cientistas devem assumir o pa- tropólogos solicitados para pareceres em casos de decisão jurídica pel do guru na sociedade em que vivem, formando discípulos e sobre o eventual estatuto indígena a ser atribuído a uma" comuni- difundindo democraticamente o conhecimento.'" No Brasil, parti- dade". As contribuições de Barth ajudam a estabilizar a posição do cularmente, observamos esse papel reservado sobretudo aos econo- antropólogo no campo político por meio dos ~str_ll?l-~~tos objeti- mistas (Loureiro 1995: 70-8; Bourdieu 1997). O monopólio de vos que ele nos fornece para a pesquisa antropológica. Melhoran- portadores de um saber particular na elaboração de políticas não do a eficácia da análise científica, aumenta-se o reconhecimento pode dar resultados satisfatórios e, nesse sentido, Barth aprecia e dos instrumentos de bordo (Oliveira 1998). Assim, a intervenção apóia fortemente os estudos interdisciplinares. científica em favor de minorias étnicas, não somente no Brasil, como no mundo inteiro, teria um lugar privilegiado. Ela seria, entre ou- * tras, uma porta que se abre para um exercício mais assíduo da res- ponsabilidade civil dos antropólogos. Barth pode ser considerado uma efígie da antropologia aplica- Em termos de uma percepção do senso comum, todavia, o au- da, porém, na sua opinião, exemplos de sucesso em combinar o xílio da antropologia em processos jurídicos tem uma desvanta- rigor científico com a cidadania, citados por ele numa entrevista gem: seus pareceres não podem ser produzidos com a rapidez de- concedida àAnrhropology Newsleuer em fevereiro de 1997, são os an- sejada pelo sistema legal. São dois ritmos profissionais diferentes tropólogos da Europa, da Ásia e da América Latina: para os quais umkjimhogdfeudscbvaivZeYndXiWdVeUvTerSiaRQPseOrNdMeLseKnJvIoHlGviFdEo.D16CBAConve- Influenciar a política ou mudar atitudes públicas é sempre nhamos: por mais adaptadas e elucidativas que as teorias de Barth um trabalho exaustivo e ingrato. O quanto os antropólogos são capazes de fazê-lo em países europeus - ou asiáticos ou se mostrem para estudos da construção e da manutenção de identi- latino-americanos - se deve ao fato de eles o priorizarem, dades étnicas ou nacionais, estas não podem ser mudadas por ma- trabalharem duro e se recusarem a desistir (idem). nuais do gênero vire jait, bien [ait.'? Não se pode garantir a mesma qualidade científica dentro de um tempo otimizado, segundo re- gras impostas por uma lógica alheia à antropologia, no caso, as do O conceito de grupo étnico é um problema que concerne dire- direito. Na pesquisa antropológica, o tempo hábil não existe e,sejamosPONMLKJIHGFEDCBA tamente àpolítica brasileira e às minorias étnicas que vivem no Bra- sil. Por exemplo, ser reconhecido ou não como indígena pelo go- verno acarreta uma série de conseqüências socioeconômicas para esses grupos. Daí a necessidade de uma definição correta deste termo, 16Profissionais como João Pacheco deOliveira, lidando hábastante tempo com essetipo deproblema naprática, chamam aatenção para aincompatibilidade de gêneros entre aantropologia eoaparelho jurídico-administrativo orientado. Cf., entre outros, Oliveira (1998). 14 Cf. aentrevista de Fredrik Barth paraAnthropology Newsietter (1997: 60). 17 Vários textos deManuela Carneiro da Cunha (1986) dão essa impressão e Oliveira (1998) critica apropriadamente essa maneira de vulgarizar um 15 Vertambém "O guru eo iniciador", p. 141-65. conhecimento científico. 16 17 FRlDRJ~ BARTH A~R"S~.NrAç.Ão honestos, na justiça ele existe somente nos casos de interesse Barrh enfatiza precisamente o aspecto diacrônico da constru- part icular.!" Isso, todavia, não deve impedir a colaboração inter- ção das identidades que são mantidas por meio de uma pe_r_n.:_~"~"~l1te disciplinar entre a antropologia e o direito, embora as bases e os reconstrução do sistema de valores intrínsecos a essa sociedade. termos dessa colaboração tenham de ser repensadas em conjunto. Diacrônico não quer dizer que esse processo teve um início preci- Assiste-se a um encontro de duas narrativas diferentes, das so no tempo e que terá um fim delimitado.PONÉMprLeKciJsoIHGaFbsEtrDaiCr BAo quais cada uma reclama a legitimidade de pronunciar o veredicto tempo histórico na análise diacrônica antropológica, permaneceu- sem que as condições originais sejam esclarecidas em algum mo- do, contudo, a questão de como resolver a legitimidade entre o mento. Do lado do direito, o resultado esperado de um parecer são tempo histórico e a tradição da história oral. Aliás, a descoberta de respostas claras sem ambigüidades em relação à definição de exten- populações que exigem o direito de serem índios, apesar de já con- são do território e dos dados demográficos. Pouco interessam à sideradas brasileiros, mostra que só é possível compreender um justiça as bases teóricas sobre as quais repousa apesquisa antropo- \p'rocesso diacrônico; de identificação em 'dois sentidos aberto~! lógica, e que podem sustentar que a cultura é "distrrbutiva"!", isto ~ ãO_.~~i?_~e_l,!t:!1:ª_ciiLe.ç.ªq."iplerg.iiyEda par aa qual.todas. as identida- é, que ela não conhece fronteiras nacionais epode se deslocar trans- '. ('. ! des evoluem, m.esl11,Q..que isso seja o ideal para um Esta.ci9~rl;lção .\. \: !. ...-_._.- ~ . .- formando-se em 'correntes de contatos interculturais aos quais é - , que vise a hOl1}ogeI1ei.~ade de atribuições de identidade. A..:l_i.:cus- exposca.i'' Por sua vez, o desequilíbrio em termos de capital simbó- são em torno do aspecto de "falsidade." ou "autenticidade" do i~~X~~~~_t~~;~~~~!~~~~.~~:aia~ lico no espaço social não facilita a posição do antropólogo em no contexto dos ans~ios.materiais poder impor suas regras ao jogo. Na verdade, a combinação do de-rodos os participantes nessa discussão. Trata-se de ~_~ificar se senso comum com o espírito do direito não representa uma plata- a reivindicação pode ser comprovada por meio de uma pesquisa forma muito ampla para a negociação científica. antropológica. Certamente o que B.;;trthpropõe aos antropólogos é um papel social bastante difícil. Precisamos, mesmo assim, participar ativa- IR Adissertação de rnestrado de Mércia Rejane Range! Batista (1992) é um mente na vida política por meio de uma aplicação responsável dos ótimo exemplo para explicitar oproblema. Os índios Truká foram reconhecidos conhecimentos antropológicosvpara que.qlle se torne viáveladqui- como tais em conseqüência desta tese de mestrado, que precisou quase cinco rir legitimidade no espaço social e quebrar o monopólio decisório anos para ser feita. Certamente Batista não poderia ter fornecido em um mês um parecer que tivesse amesma convicção: aqualidade científica da pesquisa de certosÚb~res,p~Eéi~~!arr1.1ente a economia. simplesmente não poderia seramesma. 19Cf. ocapítulo "Aanálise dacultura nas sociedades complexas", P: 187-200. * !OAdivergência entre adefinição antropológica defronteira, estabelecida apartir daprática socialdamesma, eadefinição política como representada pelo Estado- naçãoédedifícildissolução, poisambasrepousam sobrepré-requisicos científicos: Apes~r de fisgar o público em geral com um discurso científico a antropologia contra a geografia política. Mesmo antes da existência da antropologia como ciência,oEstado-nação seviufrente aoproblema de inculcar sobre possíveis teorias universais com relação ao funcionamento de em seus súditos umkjhihabgifluesdcqbuaeZYreXspWeiVtaUssTeSRaQliPnOhaNMdeLKfrJoInHteGirFa,EDdCaBqAual o todas as sociedades humanas '- o estarutodeciência a obrig-;;-a isso funcionamento do Estado dependia. Ohabitus depopulações fronteiriças sempre ~;'-;-~-t~~p~i;g~a "il1duz à crença em ~ma diferença qualitativa entre foi,econtinua aser,baseado napercepção de um zona defronteira, independen- temente deoscidadãos serem índios ou europeus. VerLask (1994; (995). socied-;d~'~'~~mplexas e tribais. Todavia, quando lemos o capítulo 18 19 FIlEDIlIK BARTH APRESENTAÇÃO ":\,~nilise da cultura nas sociedades complexas", o preconceito de A necessidade da interação com o outro para reafirmar ou mes- que nossas sociedades são mais complexas que as trio ais desaparece mo descobrir a própria identidade faz parte do exercício diário na A teoria eos conceitos antropológicos devem ser testados na antropologia. Isso significa que a fronteira étnica - em sua acepção análise da vida tal como ela ocorre em um determinado lugar ~ais eX~Esa - na verdadeélivre dosconstrangimentos terri toriais, do mundo. Qualquer lugar pode servir como provocação para é algo "portátil". Basta encontrar com uma pessoa de outra cultura, desafiar e criticar a teoria antropológica [cf p.l 08]. m~s~~'~m seu próprio país, para que a fronteira étnica como es- tandarte da alteridade e da separação indissolúvel seja suscitada. Pondo em prática o que Barth afirma neste capítulo, uma aná- Assim, deve-se estudar a análise das interações e de seus resultados lise da construção das identidades nacionais na Alemanha e na Fran- numa fronteira étnica, e não a estrutura da scciedade.r,' c _PONMLKJIHGFEDCBA ça, por exemplo, é um teste eficaz para aplicabilidade de seus A idéia de Barth de enfatizar, em sua_._defiFli-çã"6,....d\;...os ~.lim'..it:e:~s""-' de conceitos. A ques~ãoda reconstrução permanente d_as identida- um grupo étnico, os valores ~~~Ei?té--~-ua' interação com outros 21 d-e~.§..~jm_p.õexamb.ém no contexto sociopolítico na Europa atual, grupos como meio de afirmar as diferenças, em vez de insistir nos ,or'-' . '-. em que os fluxos migratórios provenientes do mundoJnteir~o_b.ri- elem~;;tosc:;';'lturais visíveis emateriais, quer dizer objetiváveis, como gamas popuI;-çi5.~;-dos-paíse·sreceptores a rep~~~;·r sua identidade aqueles presentes nas definições primordialistas, fascina por sua ~ac;o~al:cfé'safia(Iitp~ presénça d~ outroiÍo"seu terr{t6ri'o. Além simplicidade evidente. Aliás, toda solução genial parece tão simples disso, as pressõespõIíticas para a instituição de uma identidade depois que alguém a descobriu. Qualquer antropólogo que se inse- transnacionaleuropéia no lugar das velhas e conhecidas identida- re em outra sociedade ou grupo social que não aquele de que faz de;n;:-~;onais reanimaram o debate sobre o nacionalismo. A facili- parte, sabe que, por mais que tente se tornar um "nativo", aceitando dade de viajar e de se deslocar sem barreiras pela União Européia os elementos visíveis e óbvios dessa outra cultura, defronta-se, em teve efeito surpreendente para alguns: no lugar de construir uma. determinados momentos de sua pesquisa, com sua verdadeira iden- identidade européia, o renascimento de movimentos nacionalistas tidade. Em outras palavras, a antropologia vive dessa comparação, d~ todas as cores.i" dessa ida e volta entre sistemas de valores diferentes. A ~;::- Obviamente este tipo de raciocínio causa p~~blemaspara as q~e kjihgfedcbaZYXWVUTSaRnáQliP~O~~NpMolíLu~K;~JIHGFEDaCcBreAditam depender de 'fr;'~tei~as estatai~};- I'': Nesse contexto. apresentei uma tese dedoutoramento sobre aconstrução xas. Com base n~.EE~~ica social, pode-se afirmar que não exis~em 21 das identidades alemã efrancesa com base nas teorias de Barth. Perguntava-me fronteiras lineares, mas sim zonas fronteiriças, em que diferentes seateoria das fronteiras étnicas realmente teria amesma força heurística em identidades se constituem à medida que se cruzaI1!.nQ, cotidiano qualquer lugar do mundo. O princípio daconstrução eda manutenção de uma identidade nacional não deveria ser diferente do funcionamento das fronteiras (Lask 1994). Para o antropólogo, trata-se deimp-~t:~~e:.i;Hº.cit:n- "----"--- étnicas entre grupos pequenos. tais como Barth estudara. Assim. um alemão se tífico à corrente da percepção linear dominante no campo político. distingue de um francês pelos mesmos mecanismos que um pathan de um Em resumo, o conceito de fronteira étnica se presta perfeita- baluch ou de um hazara. Todos dispõem dos mesmos instrumentos para distinguirem-se. Afinal, construir uma identidade coletiva socialmente mente à analise dos processos multidimensionais e de longa duração reconhecida é um processo que passa pelas mesmas etapas tanto em uma sociedade tribal quanto em um Estado-nação. 22 Na era daglobalização econômica, esse fenômeno não ficou circunscrito à 2l Cf.ocapítulo "Por um maior naturalismo naconceptualização dassociedades", Europa. O mundo inteiro despertou para asespecificidades étnicas. p. 167-86. 20 21