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O FADO E AS ARTES, Pedro Pavão Santos 2 PDF

590 Pages·2014·3.79 MB·Portuguese
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1 — INTRODUÇÃO 1.1 — Dos objectivos e sua justificação Quando nos ocorreu eleger para tema de tese de doutoramento em História da Arte Contemporânea, pela Universidade Nova de Lisboa, as relações entre o fado e as artes, durante o espaço de mais de um século (desde os anos 40 do XIX até meados da centúria seguinte), surgiram-nos de imediato algumas interrogações, ligadas à abordagem de uma canção sujeita a controvérsia, sobretudo no marco temporal escolhido, quando começou a ser odiada por uns e amada ou apenas tolerada por outros, algo que seria normal, se não envolvessem tais opções, naturais e lícitas, atitudes apaixonadas e empenhadamente combativas, de ambos os campos, sublinhe-se. Se isto pode parecer hoje algo raro e até absurdo, com todos os tipos musicais próprios e alheios de fácil forma absorvidos pela nossa sociedade de consumo permissivamente globalizada, tal não acontecia no século XIX, data de alguns dos mais vívidos ataques à toada popular lisboeta, ou, mais tarde, nos anos 30 da passada centúria, quando o fado sofreu ataques virulentos, como se de coisa pestífera e desvirilizante (chegou a dizer-se) se tratasse. Sobre ele choveram as acusações mais descabeladas, vindas de quadrantes ligados à Ditadura Militar e depois por parte do seu descendeste directo, o Estado Novo, que se prolongaria até 25 de Abril de 1974. Durante o mesmo período, no entanto, a trova alfacinha sofria idênticos tratos de polé por parte de alguns dos mais aguerridos adversários da ditadura salazarista. Também já durante os anos das grandes conspiratas antimonárquicas e da difusão e implantação sobretudo dos ideais republicanos mais radicais — e dos anarquistas e anarco-sindicalistas —, a canção das vielas, onde não moravam apenas gentes ditas de mau-porte, mas também muitos membros do aguerrido operariado proletário, seria atacada, neste caso, por difundir doutrinas ditas subversivas. Os republicanos burgueses olharam o fado com desconfiança, quando não com desprezo, porventura porque alguns titulares o admirassem e até cultivassem, a começar pelo penúltimo rei da dinastia brigantina. Derrubada a Monarquia, embora muitas fidalgas tivessem posto de parte o martelar no piano para dedilhar (em segredo) o pianinho, como a guitarra carinhosamente era tratada, a dita canção nacional (epíteto oitocentista gerador de muitas animosidades) alinhou declaradamente pelas hostes verde-rubras, sem hostilizar demasiado, no entanto, os vencidos do estandarte azul e 1 branco. Toada dos humildes e de sentimentos simples, narradora do dia-a-dia feito de pequenos nadas, de encontros e desencontros, amores e desamores, escritos por poetas populares, mais tarde chamados não-eruditos, este canto retintamente nacional, que, como diria José Régio, não significa nacionalista, foi servindo um imaginário tão curioso que mais tarde os vates de larga erudição não desdenhariam para ele escrever. Criada uma mitologia fadista, como inevitável sucede com os corpos vivos e vividos, esta seria fonte de inspiração das mais diversas artes, desde as do traço às da palavra, para se propagar, com o correr das décadas, às formas de comunicação mais sofisticadas, como adiante veremos. Mas não fujamos ao enunciar dos nossos propósitos, que não pecam por falta de ambição. Primeiro, haverá que deixar bem claro que não vamos abordar a canção lisboeta de um ponto de vista musical — para tal falecer-nos-ia competência —, mas como a trova emaranhada na História portuguesa de mais de um século. Como mais nenhuma outra manifestação musical esteve presente em todos os momentos bons e maus, registando, inspirando, criticando… e porque não?!, às vezes louvando e comemorando. Referimo-nos ao fado castiço, ao dos ceguinhos e ao das tabernas, ao de letras mais trabalhadas por gente que as tinha poucas, e aos que tendo muitas não desdenharam emprestá-las ou até escrevê-las de propósito; ao dos retiros mais ou menos populares; ao das tiradas revolucionárias e ao das patrióticas; ao fado revisteiro que soube ter no universo dos palcos o seu grande arauto; ao fado-canção e até ao simplesmente falado em fundo de guitarras e violas…De todo esse manancial nos socorreremos, para acompanhar, afinal, alguns dos fenómenos colectivamente vividos pelo País ao longo de três regimes políticos. E até veremos a trova a galgar fronteiras e a ir por esse mundo fora, como qualquer português que se preze, mesmo quando ainda não se sabia significar tal acto, em nós natural e às vezes necessário, abandonar o que se chamaria, num dia recente e nebuloso, sair da zona de conforto… Também nos compete, logo de início, dizer que a trova será nalguns casos protagonista, noutros simples cenário e, não raras vezes, mero pretexto. Foi assim que idealizámos esta longa e pouco cómoda jornada, que tem o sabor sempre agradável dos desafios difíceis e só utopicamente atingíveis. Tentámos, afinal, narrar a História e as histórias de uma longa relação por vezes ambígua — até porque dificilmente assumida —, e em inúmeras ocasiões plena de cumplicidades, como todos os amores impossíveis. Em termos de presença fadista, apenas no domínio das artes plásticas, ela surge reflectida nas diferentes formas de desenho (figurativo, estilizado, caricatural), bem como na pintura a óleo, aguarela, gravura e escultura, mas também na cenografia, 2 fotografia e até na própria arquitectura, se pensarmos que o primitivo e pouco sofisticado retiro fadista evoluirá, com o tempo, para a turística casa de fados. Impossível de existir sem poesia, como se sabe e atrás referimos, o género musical em causa também mobilizou o romance e a crónica, bem como o teatro, a opereta e o cinema, inaugurando o sonoro em Portugal. E irá ter ao serviço da sua difusão — convém não esquecer — o disco, a rádio, o filme documental ou ficcional e, mais modernamente, fora do nosso escopo, portanto, a televisão e todas as recentes técnicas a ela associadas. Sem contextualização histórica e pano de fundo social, tudo o que pudéssemos escrever pouco adiantaria ao estudo de um tema que parece despertar crescente curiosidade, ultrapassados os complexos que faziam do apreço pelo fado, sobretudo para certos grupos considerados mais intelectualizados, algo assim como um pecado, que, a existir, deveria permanecer no âmbito da estrita intimidade. Longamente associada à imagem cultural do Estado Novo, que da velha trova muito se aproveitou, nem por isso ela deixaria de interessar, apesar das suas humilíssimas raízes, antes e depois do regime salazarista, além de aos já mencionados poetas eruditos, também a investigadores, escritores, dramaturgos e até compositores clássicos. O seu imaginário apelou à sensibilidade de artistas naturalistas e modernistas, ao mesmo tempo que a dita canção nacional, já assim chamada em tempos monárquicos, despertava as tais condenações violentas e defesas apaixonadas. Para se fazer uma ideia dos muitos artistas plásticos que entre os séculos XIX e XX ficaram ligados somente a representações teatrais relacionadas com o fado, como sejam as das revistas e operetas, citaremos Rafael Bordalo Pinheiro, Augusto Pina, Eduardo Machado, José Barbosa, António Soares, Sarah Affonso, Eduardo Malta, Paulo Ferreira, Armando Bruno, Pinto de Campos, Júlio de Sousa, Leitão de Barros, Raquel Roque Gameiro, Maria Adelaide Lima Cruz e, de forma muito destacada, Stuart Carvalhais. Não motivaria a trova, entretanto, vasta bibliografia em termos qualitativos, ficando muita coisa (amiúde) por análises primárias, prosas louvaminheiras e edições de cariz turístico ou apostando num luxuoso trunfo gráfico. Parece agora proliferar como tema de ficção, quase sempre centrado na mesma personagem. Das muito honrosas (diversas) excepções existentes, foram-nos particularmente úteis, nesta tarefa nunca terminada, as seguintes obras: João Pinto de Carvalho (Tinop), História do Fado, Lisboa, Livraria Guimarães, 1903; Alberto Pimentel, A Triste Canção do Sul – Subsídios para a História do Fado, Lisboa, Livraria Central de Gomes Carvalho, 1904; Eduardo Sucena, Lisboa, o Fado e os Fadistas, Lisboa, Vega, 1992; e Rui Vieira Nery, Para Uma História do Fado, Lisboa, 3 Público/Corda Seca, Edições de Arte, 2004. Mas do problema das fontes de diversas naturezas falaremos mais adiante — e ver-se-á que elas estão longe da exiguidade. Isso mesmo procurámos demonstrar ao longo do nosso trabalho. 1.1.1 — Pequeno discurso do método Depois de uma ponderação que obrigou a diversas leituras e algumas reflexões, afirmou-se-nos não apenas redutor, como quase faccioso, consagrar esta dissertação apenas às relações do fado — uma das nossas poucas manifestações únicas distintivas perante os demais países — somente com as artes plásticas. O próprio desenho da tese ambicionava coisa diversa. Surgia a oportunidade de tentar relacionar a trova com diversas formas de expressão artística e de sublinhar pelo exemplo a capacidade dela como inspiradora de obras populares e eruditas (se esta distinção ainda possui algum significado!) nos mais diversos domínios. Perante esse quadro aliciante, resistir à chamada para tentar tal empreendimento cairia na categoria do impensável. Os desafios, pensamos, apenas nos obrigam a tentar — ou a ousar, como neste caso será mais adequado dizer. Escolhida a via, como primeiro passo do percurso, iniciámos uma pesquisa sistemática de fontes, as mais diversas em origem e variedade de parentesco com tema. Que possamos conseguir com esta tese, nalguns casos, servir de estímulo para futuros estudos, já será gratificação bastante, porque trilhamos campo ainda muito longe de encontrar-se ausente de preconceitos. Como sabemos não existirem obras definitivas, muito menos nos domínios sujeitos à dinâmica da investigação, encaramos como motivo de agrado saber que outros virão completar o mínimo que iniciámos, emendar-nos, pôr em causa a forma como investigámos e interpretámos certos fenómenos. Como se sabe, a isso chama-se progresso no conhecimento, e, neste caso particular, interesse pelas nossas coisas, embora elas sejam cada vez mais de todos. Isso sucede pelo interesse que suscitam e devemos congratular-nos em possuir alguns trunfos importantes: nem todos os povos se podem gabar de ter manifestações artísticas tão originais como algumas nossas, que (por vezes) olhamos quase envergonhadamente. E tal não acontece, apenas, com a trova lisboeta mas com inúmeras manifestações populares portuguesas. Bastaria pensarmos num exemplo clássico, um fado criado por Alfredo Duarte, o Marceneiro, chamado O Bêbado Pintor, com letra do poeta Henrique Rego, antigo tipógrafo, para vermos o potencial narrativo desta expressão popular: 4 Encostado sem brio ao balcão da taberna De nauseabunda cor e tábua carcomida O bêbado pintor a lápis desenhou O retrato fiel duma mulher perdida Era noite invernosa e o vento desabrido Num louco galopar ferozmente rugia, Vergastando os pinhais, pelos campos corria, Como um triste grilheta ao degredo fugido. Num antro pestilento, infame e corrompido, Imagem de bordel, cenário de caverna, Vendia-se veneno à luz duma lanterna À turba que se mata, ingerindo aguardente, Estava um jovem pintor, atrofiando a mente, Encostado sem brio ao balcão da taberna. Rameiras das banais, num doido desafio, Exploravam do artista a sua parca féria, E ele na embriaguez do vinho e da miséria, Cedia às tentações daquele mulherio. Nem mesmo a própria luz nem mesmo o próprio frio, Daquele vazadouro onde se queima a vida, Faziam incutir à corja pervertida, Um sentimento bom d’amor e compaixão, P’lo ébrio que encostava a fronte ao vil balcão, De nauseabunda cor e tábua carcomida. Impudica mulher, perante o vil bulício De copos tilintando e de boçais gracejos, Agarrou-se ao rapaz, cobrindo-o de beijos, Perguntou-lhe a sorrir, qual era o seu oficio, Ele a cambalear, fazendo um sacrifício, Lhe diz a profissão em que se iniciou, Ela escutando tal, pedindo-lhe alcançou Que então lhe desenhasse o rosto provocante, E num sujo papel, o rosto da bacante O bêbado pintor a lápis desenhou. Retocou o perfil e por baixo escreveu, Numa legível letra o seu modesto nome, Que um ébrio esfarrapado e o rosto cheio de fome, Com voz rascante e rouca à desgraçada leu, Esta, louca de dor, para o jovem correu, Beijando-lhe muito o rosto, abraça-o de seguida... Era a mãe do pintor, e a turba comovida, Pasma ante aquele quadro, original, estranho, Enquanto o pobre artista amarfanha o desenho: O retrato fiel duma mulher perdida. 5 Parece-nos fácil perceber a razão que credita o fado como uma das canções urbanas que mais interesse desperta em toda a parte. Nações longínquas procuram entendê-lo, cultuam-no, chega a haver quem aprenda português para poder ler os seus versos. Mais perto, logo aqui ao lado, a trova nostálgica lisboeta encontra um eco tanto mais desvanecedor quanto é certo possuírem os demais habitantes da península comum algumas das manifestações artísticas populares mais interessantes do planeta. Gostaríamos de salientar, desde já, que este trabalho não é nem um panfleto a favor ou contra quem ou o que quer que seja — e nem pretende convencer ou muito menos converter ninguém. Assenta na investigação possível e no engenho disponível, mas sempre se procurou reger pelo rigor científico. Tudo isto não implica que devamos dizer que se procurou dar corpo a uma tese neutra, tanto mais que tenta detectar o fado na nossa vivência histórica durante um determinado período temporal. Nada de construtivo, pensamos, se faz a coberto do subterfúgio da neutralidade — e pensamos que tal posição roça não raras vezes a mistificação. Desde há anos que nos interessamos pela chamada História Cultural ou Estudos Culturais, como também se ouve dizer, ou, ainda, Nova História Cultural ou História das Culturas, porventura a designação com mais sentido, como veremos adiante. Elemento de revitalização no domínio da historiografia, tornou-se o elo de ligação entre as diversas Ciências Humanas, desde a Filosofia à História da Arte, passando pela História, com a Antropologia e a Sociologia, estas últimas ainda olhadas por alguns com certas reticências. Herança do século XIX, o predomínio da História seria vítima das transformações operadas na centúria seguinte, que entenderia, sobretudo na sua segunda metade, devido às situações extremas vividas pelo mundo, que nem sempre (ou talvez mesmo nunca…) apenas uma ciência poderia analisar globalmente um problema. Convidava-se o investigador à multidisciplinaridade, sem que qualquer das ciências implicadas num dado processo perdessem a sua posição identitária, pois o que se trata é de uma potenciação de olhares. A isso aconselhava a complexidade sempre crescente da realidade, constantemente geradora de posições diversas traduzidas em narrativas múltiplas e com toda a certeza muitas vezes discordantes. Não é o historiador da Arte pouco importante em quanto à cultura toca, ou, talvez melhor, naquilo que ao seu registo em conceito superior concerne, mas não lhe seria possível acumular conhecimentos suficientes para abarcar, quando empreende um trabalho como o aqui proposto, além das artes plásticas, a arquitectura, os diversos géneros literários, o teatro, a música, a rádio, o cinema, a fotografia… Já deixamos de 6 fora as novas tecnologias do universo do conhecimento e da comunicação, por serem alheias ao nosso escopo temporal. Com todos os perigos que isso encerra — e tentar avançar nalguma coisa é sempre encará-los —, o conceito da representação é um caminho muitas vezes difícil, porque quantas vezes por inexistência o referente foge ao exercício da prova. Por isso há que lançar mão dos resíduos desse passado que é matéria de trabalho, dos testemunhos dele guardados para se chegar à proximidade de interpretação de um real, procurando-se porventura alcançar não a inatingível verdade, mas o que mais perto dela se encontre.1 Deu-nos o século passado a possibilidade de uma multiplicidade historiográfica, abrangendo nomeadamente a história das sociedades, a demografia, a estatística rigorosa, e, sobretudo, as mentalidades em perspectiva histórica, que (ainda) tivemos a oportunidade de estudar na FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Razão principal do nosso interesse pela História Cultural foi, seguramente, a sua abertura à chamada cultura popular, aos hábitos de grupos sociais, formas de narratividade, etc. Começou a haver lugar para uma série de manifestações alheias à concepção da arte digna de figurar nos museus ou da literatura com possibilidades de vencer o Nobel, que, de qualquer forma, provêm das mesmas sociedades que foram capazes de gerar uma infinidade de coisas até há relativamente pouco tempo consideradas menores. O homem comum passou a constituir alguém capaz de produzir cultura nos gestos simples do seu dia-a-dia, desde o cozinhado que sabe fazer ao livro que lê, nele deixando a sua marca de criatividade, como receptor do que outro escreveu. Operou-se, portanto, toda uma revolução na noção de cultura, porque começaram a mostrar-se como dignos objectos de estudo as formas de relacionamento dentro de um núcleo social, as maneiras dos seres humanos se relacionarem com o meio em que se encontram, a forma como usufruem dos difusores de educação a que tenham acesso, a utilização dos chamados media… Também estes dois últimos domínios, que difundem a cultura se transformaram em apetecidos objectos de estudo, bem como a forma como cumprem os propósitos a que se destinam. Meios de difusão como a literatura de cordel, muito rica em determinadas épocas no nosso País, constituem, por seu turno, 1 - Cf. alguns dos autores importantes da História Cultural Francesa, como o historiador Roger Chartier (Cultural History, Cambridge, Polity Press, 1988); e Paul Ricoeur (L’écriture de l’histoire et la répresentation du passé, in Annales. Histoire, Sciences Sociales, Paris, Armand Colin, n.º 4, 2000). Também se revelam úteis Reinhardt Koselleck (L’expérience de l’Histoire, Paris, Gallimard, 1997) e Michel de Certeau (L'écriture de l'histoire, Paris, Gallimard, 1975) e André Burguière, ed., Histoire de la France: les formes de la culture, Paris, Le Seuil, 1993). 7 importantes fontes de estudo, da mesma forma que a transmissão oral adquire especial importância, devendo proceder-se ao seu registo escrito ou gravado. Todos os actos do dia-a-dia social podem ser transformados em dados de análise, ao mesmo tempo que as práticas e as representações se apresentam como um útil elemento de estudo das sociedades. A escola, por exemplo, é pertença de uma determinada prática cultural, destinando-se a transmitir aos seus alunos conhecimentos que são, afinal, representações destinadas a atingir determinados objectivos. A saber: que eles absorvam regras gramaticais tendentes a uma boa e uniforme comunicação, princípios considerados importantes para o regime em vigor, normas sociais que permitam o convívio. As representações podem ligar-se ao imaginário, como sucede com certas visões do poder2, e, num conjunto de significados já alicerçado, existe a possibilidade de conduzir ao símbolo, importante para diversas disciplinas, incluindo a psicologia, pois pode gerar um conceito. Os símbolos mostram-se relevantes no domínio comunicacional, tal como as representações, quando dirigidas, podem desembocar na ideologia. Será o sociólogo francês Pierre Bourdieu, com vasta e influente obra, que fará a ligação entre os estudos culturais e políticos. Além dos autores franceses mais importantes (Michel de Certeau, Roger Chartier, o já citado Bourdieu, alguns dos homens dos Annales, como Georges Duby ou Jacques Le Goff), que beneficiaram de algumas reflexões percucientes de Michel Foucault, conta a História Cultural com as visões da chamada escola inglesa, com nomes como Eric Hobsbawm, Edward Thompson, Christopher Hill e Peter Burke. Este último historiador caracteriza-se por perspectivas de grande originalidade, amplamente demonstrada, por exemplo, numa conferência dada em Espanha, em 2006, na qual sublinhou a importância da tradução na História Cultural, falando mesmo de tradução cultural. Para tanto deu o exemplo da antropóloga Laura Bohannan, que decidiu contar a história de Hamlet numa aldeia localizada na África Ocidental — e viu a sua narrativa corrigida pelos anciãos presentes até a mesma corresponder aos cânones vigentes na cultura local.3 Diz este professor jubilado da Universidade de Cambridge: Se o passado é um país estrangeiro, como alguns académicos gostam de dizer, então todos os historiadores devem ser olhados como tradutores entre o passado e o presente. Tal como os antropólogos, traduzem de uma cultura para outra mais do que de uma 2 - Cf. Jacques Le Goff, O Imaginário Medieval, Lisboa, Estampa, 1994. 3 - Peter Burke, Translating texts, translating cultures in early modern Europe, conferência proferida na Biblioteca Histórica Marqués de Valdecilla, Madrid, Foro Complutense, 2006, pp.1-2. 8 língua para outra. (…) A história das missões cristãs fora da Europa está cheia das confusões que geralmente se verificam quando as pessoas tentam divulgar as suas ideias culturais numa cultura diferente da sua. Os jesuítas, por exemplo, desenvolveram a sua acção na China, Japão e sul da Índia, bem como no Brasil e no Paraguai. As suas dificuldades começaram com o problema da tradução da palavra Deus. Por vezes escolhiam um equivalente local, como a palavra chinesa Tien, que, literalmente, significa paraíso. Neste caso, os chineses podem ter sido levados a pensar que a nova religião era apenas uma versão das suas crenças tradicionais. E por esta razão outros jesuítas recusaram-se a traduzir a palavra Deus, fugindo assim aos mal-entendidos, mas pagando o preço de não se fazerem entender. (…) Como Matteo Ricci descobriu, se um [jesuíta] se vestisse com o seu hábito ou com as vestes de um monge budista, a elite chinesa nunca o levaria a sério. O jesuíta decidiu então envergar as roupagens de um académico confuciano, traduzindo assim a sua posição social para chinês. (…) Na Europa (…) surgiu a acusação de que jesuítas se tinham convertido à religião dos chineses, em vez de os terem convertido ao cristianismo. O que em Pequim pareceu ser uma boa tradução cultural, considerou-se em Roma uma tradução errada. (…) 4 Num dos seus livros relativamente recentes, What is Cultural History?, editado em 2004, Burke procura pôr em relevo a importância da História Cultural e fala da sua redescoberta nos anos 70 do século passado. Lembra que ela tem por missão analisar, por exemplo, elementos e conflitualidades existentes em diversas culturas. Aponta que enquanto os franceses preferiram a história das civilizações, das mentalidades, os estudos sobre o imaginário, americanos e alemães enveredaram por outros caminhos, que não seriam partilhados pelos ingleses. Burke define as fases da História Cultural da seguinte forma: História Clássica (1800 a 1950), História Social da Arte (1930 e 1940); nos anos 50 do século passado dá-se uma redescoberta da História Cultural Popular (1950 e 1960) e a Nova História Cultural iniciar-se-ia a partir da década de 70 do século XX. Logo nessa altura, a par de muitas discordâncias e conflitos de raiz filosófica, política (surgem as resistências dos historiadores marxistas) e também com outras tendências, instala-se o confronto intelectual entre uma história destinada às grandes narrativas e uma micro-história, que, por contraposição às grandes generalizações influenciadas pela chamada civilização ocidental, rumo à globalização, tenderá a ocupar-se da cultura dos pequenos espaços, como fez o francês Emmanuel Le Roy Ladurie, ao publicar, em 1975, Montaillou, village occitan de 1294-1324. Nesta obra, o 4 - Idem, ibidem, pp.2-3 9 autor, discípulo de Fernand Braudel e antigo membro do Partido Comunista Francês, estuda a história de uma aldeia da Haute-Ariége, infestada pelo catarismo, dando corpo ao que se chamaria antropologia histórica. Idêntico percurso seguiria o italiano Carlo Ginzburg, com os seus trabalhos, entre os quais sobressai I Formaggi e i vermi (1975),5 que foca o processo da Inquisição, em 1584, movido ao alegado herege Domenico Scandela, um moleiro conhecido por Menocchio, que fizera considerandos sobre a fermentação dos queijos consideradas heréticas. Alicerçada nas obras de teóricos como Jurgen Habermas, Mikhail Baktin, Norbert Elias, Michel Foucault ou Pierre Bourdieu, com a sua importante teoria do habitus, a Nova História Cultural interessa-se pelas mais diversas actividades, desde o exercício das convicções religiosas à forma de comer ou estar à mesa, passando pela linguística, os desportos, etc. O estudo das representações, já atrás focado, que permitem a formação do imaginário social, também se apresenta sempre de grande relevância, bem como a memória, o vestuário, a gastronomia… Surgem autores que clamam ser tudo uma invenção, inclusivamente a própria História Cultural… Já Eric Hobsbawm (1917-2012), professor universitário jubilado e antigo combatente da Segunda Guerra Mundial, marxista convicto até à morte, coordenara, em 1983, com Terence Ranger o livro The Invention of Tradition,6 destinado a demonstrar que muitas das tradições consideradas velhas de séculos constituem puras invenções… Tal aconteceu, por exemplo, em relação a diversos rituais britânicos, ligadas à monarquia e outras esferas importantes da sociedade, dados dolosamente como antiquíssimos em prol do fomento da coesão nacional. Embora a Nova História Cultural tenha sofrido reveses, demonstra ainda grandes potencialidades, proporcionando cada vez mais o protagonismo ao homem comum e ao seu poder narrativo. Claro que Burke deixa tudo em aberto, admitindo, inclusivamente, que a sua disciplina esteja a chegar ao fim, no preciso momento em que as suas contribuições ainda se afirmam em pleno florescimento, como acontece nos Estados Unidos. Deveria porventura passar a chamar-se, por tudo isso, História das Culturas. Pensamos que algo se impõe dizer sobre Pierre Bourdieu (1930-2002), sem dúvida uma das personalidades marcantes das Ciências Sociais e das Humanidades no século XX. 5 - Peter Burke, What is Cultural History?, Cambridge, 2004; Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan de 1294-1324, Paris, Folio-Histoire, 2008; Carlo Ginzburg, Le fromage et les vers:l’univers d’un meunier du XVIe siècle, Paris, Aubier-Histoires, 1993. 6 - Eric Hobsbawm e Terence Ranger, The Invention of Tradition, Cambridge,Canto, 1992. 10

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7 - Cf. Pierre Bourdieu, La distinction : critique sociale du jugement, Paris, Minuit, 1979. título ao famosíssimo romance de Aldous Huxley, publicado em 1932 e alertando Na África, na América, na Ásia, nas ilhas do extremo.
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