O DIREITO FUNDAMENTAL À ALIMENTAÇÃO Coleção Biodireito I Bioética )) Coordenada por Maria Garcia MÉRCES DA SILVA NUNES O DIREITO FUNDAMENTAL À ALIMENTAÇÃO E o princípio da segurança Data de fechamento: 10 de junho de 2008. © 2008, Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei no 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Editoração Eletrônica SBNIGRI Artes e Textos Ltda. Copidesque Livia Maria Giorgio Revisão Gráfica Hugo de Lima Correa Projeto Gráfico Elsevier Editora Ltda. A Qualidade da Informação Rua Sete de Setembro, 111 — 16o andar 20050-006 — Rio de Janeiro — RJ — Brasil Telefone: (21) 3970-9300 Fax (21) 2507-1991 E-mail: [email protected] Escritório São Paulo Rua Quintana, 753 – 8o andar 04569-011 – Brooklin – São Paulo – SP Telefone: (11) 5105-8555 ISBN: 978-85-352-3103-8 Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra. No entanto, podem ocorrer erros de digitação, impressão ou dúvida conceitual. Em qualquer das hipóteses, solicitamos a comunicação à nossa Central de Atendimento para que possamos esclarecer ou encaminhar a questão. Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas, a pessoas ou bens, originados do uso desta publicação. Central de Atendimento Tel.: 0800-265340 Rua Sete de Setembro, 111, 16o andar – Centro – Rio de Janeiro E-mail: [email protected] Site: www.campus.com.br CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ _____________________________________________________________________ N923d Nunes, Mérces da Silva O direito fundamental à alimentação: e o princípio da segurança / Mérces da Silva Nunes. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. -(Bioética e biodireito) Anexos Inclui bibliografia ISBN 978-85-352-3103-8 1. Direito à saúde – Brasil. 2. Política alimentar. 3. Garantia (Direito). I. Título. II. Série. 08-2210. CDU: 34(81) _____________________________________________________________________ Dedicatória A Cecília e Odilon, meus pais; e à Tânia, minha irmã. A Autora Mérces da Silva Nunes Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Pós-graduada em Admi- nistração de Negócios e em Direito Empresarial, ambas pelo Mackenzie. Especialista em Direito Tributário pelo CEEU – Centro de Estudos e Extensão Universitária. Relatora do Quinto Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP – TED V. Professora Associada do IBDC – Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. Advogada em São Paulo nas áreas de Direito Empresarial e Consumidor. Prefácio Apresentar o estudo de Mérces da Silva Nunes signifi ca, acima de tudo, introduzir um assunto de importância vital, de certa forma negligenciado pelas letras jurídicas e excepcionalmente trabalhado pela autora, como O direito fundamental à alimentação. Desde os campos de Boaz, texto poeticamente descritivo do Antigo Testamento, “O Livro de Ruth” relata a fi el amizade de duas mulheres, sogra – Noemi – e nora – a estrangeira Ruth –, e mostra esta última, pobre e viúva, apanhando espigas no campo, após os segadores, do que caía e sobrava: “e esteve ela apanhando naquele campo até a tarde e debulhou o que apanhou, tomou-o e veio à cidade e viu sua sogra o que tinha apanhado”. Assim alude o Salmo 104:15 ao pão, “que fortalece o coração do homem”. Necessidade vital básica do ser humano, os alimentos têm uma história e alteraram a História, ao longo dos séculos. Ao tratar do tema “homem, alimentação e saúde” e, no capítulo seguinte, o ali- mento industrializado, o presente estudo traça o elo do que representa toda substância ou mistura de substâncias de forma diversifi cada no tempo e no espaço, que se destina, porém, “a fornecer ao organismo humano os elementos normais à sua formação, manu- tenção e desenvolvimento” – e a tecnologia de alimentos, “entendida como a aplicação da ciência e da técnica na produção, colheita, processamento, embalagem, distribuição, preparo e utilização dos alimentos, largamente utilizada com o objetivo de prolongar a vida útil do alimento, elevar a oferta de alimentos com valor nutritivo adequado e em estado apropriado para consumo que assegure ‘boa receptividade pelo consumidor’”. No Capítulo 4 – A Indústria Alimentar especifi camente, a autora estende-se sobre a complexa área da tecnologia de alimentos, detendo-se na explicitação do Decreto-Lei no 986, de 1969, que institui as Normas Básicas sobre Alimento, e que, além do alimento in natura, envolve também aquele enriquecido, dietético, fantasia ou artifi cial, irradiado, defi nindo produto alimentício como “todo alimento derivado de matéria-prima alimentar ou de alimento in natura, adicionado ou não, de outras substâncias permitidas, obtidas por processo tecnológico adequado”. Quando analisa a sociedade industrial, Herbert Marcuse1 expõe duas prelimina- res de julgamentos de valores, necessários a qualquer teoria crítica da sociedade: (a) “o julgamento de que a vida humana vale a pena ser vivida, ou melhor, pode ou deve ser tornada digna de se viver”; e (b) “o julgamento de que, em determinada sociedade, exis- tem possibilidades específi cas de melhorar a vida humana e modos e meios específi cos de realizar essas possibilidades”. A partir daí, conforme suas palavras, a análise é focalizada na sociedade industrial desenvolvida, na qual o aparato técnico de produção e distribuição (com um crescente setor de automatização) não funcio- na como a soma total de meros instrumentos que possam ser isolados de seus efeitos sociais e políticos, mas, antes, como um sistema que determina, a priori, tanto o produto do aparato como as operações de sua manutenção e ampliação. Nessa sociedade [afi rma], o aparato produtivo tende a tornar-se totalitário no quanto determina não apenas as oscilações, habilidades e atitudes socialmente necessárias, mas também as necessidades e aspirações individuais. Mais adiante: Em face das particularidades totalitárias dessa sociedade, a noção tradicional de “neutralidade” da tecnologia não mais pode ser sustentada. A tecnologia não pode, como tal, ser isolada do uso que lhe é dado; a sociedade tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e na elaboração das técnicas. E, por fi nal: “Como um universo tecnológico, a sociedade industrial desenvolvida é um universo político, a fase mais atual da realização de um projeto histórico específi co – a saber, a experiência, a transformação e a organização da natureza como o mero material de dominação”. Adorno, por sua vez2, embora em outro contexto, detém-se, sobre a questão da técnica e da indústria que ele chama “cultural”: Se a técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, tal ocorre, graças, em grande parte, ao fato de que as circunstâncias que favorecem tal poder são arqui- tetadas pelo poder dos economicamente mais fortes sobre a própria sociedade. Em decorrência, a racionalidade da técnica identifi ca-se com a racionalidade do próprio domínio. A indústria cultural impede a formação de indivíduos autônomos independen- tes, capazes de julgar e decidir conscientemente. 1. A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1982; Intro- dução. 2. Os Pensadores. Nova Cultural, 1999. Vida e obra; Introdução. A sociedade industrial, desenvolvida, diríamos, em seqüência, e a dominação téc- nica, “interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados, determina o próprio consumo; reduz a humanidade, em seu conjunto, assim como a cada um dos seus elementos, às condições que representam os seus interesses”. Dentro dessa ordem de idéias, estudos como o presente vêm oferecer a necessária participação jurídica a tais importantes questões do nosso tempo. Conforme se verifi ca, no decorrer da leitura deste trabalho, o direito à alimentação vincula-se ao direito à saúde, outro dos direitos humanos fundamentais e, neste ponto, conforme esclarece Mérces Nunes, a alimentação é fundamental à garantia da sadia qualidade de vida, mandamento constitucional. Por outro lado, e no seu todo, este estudo vem inserir-se entre as obras que repre- sentam uma contribuição valorosa à crítica da racionalidade tecnológica dominante na atualidade, para refl exão e transformação. Maria Garcia Livre-Docente pela PUC-SP. Professora de Direito Constitucional, Direito Educacional e Biodireito Constitucional na PUC-SP. Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-SP. Membro da CoBi do HCFMUSP e do Iasp. Procuradora aposentada do Estado de São Paulo. Membro-fundador e atual Diretora Geral do IBDC. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas (Cadeira Enrico Tullio Liebman) 1 CAPÍTULO A SAÚDE E O SER HUMANO A compreensão do signifi cado de saúde, para o homem, passou por modifi cações ao longo da história. Essencialmente está ligada à idéia de conservação da vida, como se pode inferir da sua etimologia: a palavra saúde vem do latim salute, signifi cando salva- ção, conservação da vida. A contínua atividade do organismo vivo exige determinadas condições para exis- tir plenamente. O metabolismo, o crescimento, a reprodução, a adaptação ao meio são funções orgânicas decorrentes da capacidade de autocriação dos sistemas vivos ou, em outras palavras, a capacidade de se criar, de se autoproduzir (cada componente do todo participa na formação e transformação de outros componentes; o todo cria e é criado por seus componentes) é o padrão que se pode encontrar nos sistemas vivos. É o que explicam Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela:1 “os seres vivos se caracterizam por – literalmente – produzirem de modo contínuo a si próprios, o que in- dicamos quando chamamos a organização2 que os defi ne de organização autopoiética.” 1. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001, p. 52. 2. A noção de organização surge com o pensamento sistêmico, que emergiu simultaneamente em vários ramos do conhecimento humano, como na física quântica e na psicologia da Gestalt, mas a contribuição da biologia foi relevantíssima, já que passou a ver o organismo vivo como totalidade integrada, ao procurar resolver a tensão entre o reducionismo – ênfase dada às partes – e o holismo ou ecologismo – ênfase dada ao todo. Pensa-se sistemicamente quando se pensa em conexidade, relações, contexto. As partes de um todo, portanto, embora possam ser distinguidas, não são iso- ladas, e as propriedades ou características das mesmas não se confundem com as propriedades e características do todo. Trata-se de uma revolução na história do pensamento científico ocidental – que até então se fun- dava no método cartesiano: acreditava-se que o comportamento do todo pudesse ser entendido analisando-se as propriedades de suas partes. No pensamento sistêmico, as propriedades das partes só podem ser compreendidas a partir da organização do todo. Edgar Morin afirma que o sistema é uma unidade complexa organizada de base (unitas multiplex), sendo o Um e o Múltiplo simultaneamente, já que é complexo – do latim complexu, o que abrange ou encerra muitos elementos ligados entre si – não redutível a unidades elementares, conceitos e leis gerais. Para Morin, esse conceito é piloto, “(...) um guia de leitura para todos os fenômenos de organização físicos, biológicos, antropológicos ideológicos” (O método 1: a natureza da natureza. 2a ed. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 187). O Direito Fundamental à Alimentação Mérces da Silva Nunes ELSEVIER Os citados autores descrevem como são as relações existentes nos sistemas vivos, a partir da observação do que acontece nas células. Os seus componentes estão dinami- camente relacionados numa rede contínua de relações – o metabolismo, que produz elementos que compõem a rede de transformações que os produzem. Muitos formam membranas limitadoras e participantes das redes de transformação. Ressaltam que a unidade da célula é mantida pela existência de uma membrana ou fronteira e pela in- teração entre todos os componentes. Uma vez interrompido o metabolismo, a unidade se desfaz.3 Concluem então que os seres vivos são organizações autopoiéticas, organismos que se levantam por seus próprios cordões. Trata-se de um padrão autopoiético, estrutu- ralmente aberto, necessitando de um fl uxo de energia e matéria e organizacionalmente4 fechado, o que mantém a estabilidade do sistema.5 A saúde, por essa perspectiva, é um estado do sistema vivo em que a autocriação se dá com toda a potência que lhe é própria, possibilitando o integral desenvolvimento e manutenção da vida do ser. Sendo um sistema estruturalmente aberto, a saúde ou con- servação da vida depende da satisfação de necessidades básicas biológicas. O ser humano, entretanto, traz consigo características singulares, às quais cor- respondem necessidades também singulares, o que exige um conceito de saúde mais amplo, não se defi nindo apenas pelo seu oposto – a ausência de doença. A relação das características peculiares dos seres humanos sofre variações de acordo com os pressupostos adotados pelos autores. Em geral, são citadas, segundo algumas análises clássicas da natureza humana,6 a posse dos atributos de Deus, modi- Indispensável conhecer o conceito de organização de Edgar Morin: “... é o encadeamento de relações entre componentes ou indivíduos que produz uma unidade complexa ou sistema, dotada de qualida- des desconhecidas quanto aos componentes ou indivíduos” (op. cit., p. 182). Assim, a organização é a face interiorizada do sistema, e este, a face exterior da organização. E é justamente a organização que assegura a solidez relativa dessas ligações, possibilitando que o siste- ma perdure no tempo (op. cit., p. 182). 3. Op. cit., p. 133. 4. Edgar Morin afirma que toda organização, já que obsta a hemorragia do sistema no ambiente e a sua invasão por este, é responsável pelo fechamento da unidade. Nas suas palavras: “A idéia de fe- chamento aparece na idéia-chave de retroação do todo sobre as partes, que encerra o sistema em si mesmo, desenhando a sua forma no espaço; ela aparece na idéia recursiva de organização da orga- nização que encerra a organização em si mesma. Uma e outra cumprem conjuntamente a autonomia da unidade complexa neste encerramento/fechamento, que não apenas é compatível com a abertura dos sistemas abertos, mas só se torna circuito ativo nesses sistemas” (op. cit., p. 170). 5. Capra, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996, p. 136. 6. Nicola Abbagnano esclarece que as teorias sobre a natureza humana podem ser agrupadas em três vertentes: as que confrontam Deus e o homem; as que expressam qualidades específicas do homem e as que se afirmam na capacidade de autoprojeção do humano (Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 512-8). 2