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O Deus das Pequenas Coisas - Arundhati Roy PDF

259 Pages·2015·1.56 MB·Portuguese
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DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." Para Mary Roy, que me fez crescer. Que me ensinou a dizer “com licença” antes de interrompê-la em público. Que me amou a ponto de me deixar ir embora. Para LKC, que, como eu, sobreviveu. Nunca mais uma única história será contada como se fosse a única. JOHN BERGER SUMÁRIO 1. Paraíso, Picles & Polpas 2. A Mariposa de Pappachi 3. Homem Grande, Laltain; Homem Pequeno, Mombatti 4. Cine Abhilash 5. A Terra de Deus 6. Cangurus de Cochin 7. Cadernos de Exercícios de Sabedoria 8. Bem-vinda ao Lar, Sophie Mol 9. Mrs. Pillai, Mrs. Eapen, Mrs. Rajagopalan 10. O Rio dentro do Barco 11. O Deus das Pequenas Coisas 12. Kochu Thomban 13. O Pessimista e o Otimista 14. Trabalho é Luta 15. A Travessia 16. Poucas Horas Depois 17. A Estação de Trens de Cochin 18. A Casa da História 19. Salvar Ammu 20. O Correio Madras 21. O Custo de Vida Glossário Agradecimentos Sobre a autora PARAÍSO, PICLES & POLPAS 1. MAIO EM AYEMENEM é um mês quente, parado. Os dias são longos e úmidos. O rio encolhe, e corvos pretos se banqueteiam com belas mangas em árvores imóveis, verde-empoeiradas. Bananas vermelhas amadurecem. Jacas explodem. Varejeiras dissolutas zunem vagabundas no ar perfumado. Depois se estatelam contra vidraças transparentes e morrem, totalmente enganadas, ao sol. As noites são claras, impregnadas de preguiça e de calma expectativa. Mas no começo de junho irrompe a monção sudoeste, e vêm três meses de vento e água com curtos intervalos de sol duro e brilhante em que crianças excitadas aproveitam para brincar. O campo fica de um verde vaidoso. Divisas se dissolvem quando as cercas de mandioca se enraízam e brotam. Paredes de tijolo ficam verde-musgo. Pimenteiras se enroscam nos postes elétricos. Trepadeiras silvestres brotam dos barrancos de laterita e espalham-se pelas estradas inundadas. Barcos se amontoam nos bazares. E aparecem peixinhos nas poças que se formam nos buracos do Departamento de Obras Públicas nas rodovias. Estava chovendo quando Rahel voltou para Ayemenem. Cordas de prata perpendiculares picavam a terra solta, pipocando como tiros. A velha casa no morro usava o seu telhado íngreme, com mansardas, como um chapéu enfiado em cima das orelhas. As paredes, riscadas de musgo, estavam moles e um pouco inchadas com a umidade que se infiltrava do chão. O jardim silvestre, descuidado, cheio dos sussurros e passinhos de pequenas vidas. No mato uma cobra se esfregava numa pedra brilhante. Esperançosos sapos-boi amarelos buscavam companheiras no tanque espumoso. Um mangusto ensopado atravessou correndo o caminho coberto de folhas. A casa em si parecia vazia. Portas e janelas trancadas. A varanda da frente nua. Sem móveis. Mas o Plymouth azul-celeste com rabo-de-peixe cromado ainda estava parado ali fora e, lá dentro, Baby Kochamma ainda vivia. Ela era tia-avó de Rahel, irmã mais nova de seu avô. Seu nome verdadeiro era Navomi, Navomi Ipe, mas todo mundo a chamava de Baby. Tinha virado Baby Kochamma quando chegou à idade de ser tia. Rahel não tinha vindo para vê-la, porém. Nem sobrinha nem tia-avó tinham qualquer ilusão a respeito. Rahel tinha vindo ver seu irmão, Estha. Eram gêmeos bivitelinos. “Dizigóticos”, diziam os médicos. Nascidos de óvulos diferentes, mas fecundados ao mesmo tempo. Estha, Esthappen, era dezoito minutos mais velho. Nunca se pareceram muito um com o outro, Estha e Rahel, e mesmo quando ainda eram crianças de braços finos, peito chato, cheios de vermes e com topete de Elvis Presley, não ocorriam nunca os costumeiros “Quem é quem?” e “Qual é qual?” da parte dos parentes sorridentes ou dos bispos sírio-ortodoxos que visitavam com freqüência a Casa Ayemenem em busca de donativos. A confusão ficava num lugar mais profundo, mais secreto. Naqueles primeiros anos amorfos, em que a memória tinha apenas começado, em que a vida era cheia de Começos e sem Fins, e Tudo era Para Sempre, Esthappen e Rahel pensavam em si mesmos juntos como Eu, e separadamente, individualmente, como Nós. Como se fossem uma rara espécie de gêmeos siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntas. Hoje, tantos anos depois, Rahel tem lembrança de acordar uma noite rindo do sonho engraçado de Estha. Também tem outras lembranças que não tem o direito de ter. Lembra-se, por exemplo (apesar de não ter estado lá), do que o Homem do Refrescodelaranja Refrescodelimão fez com Estha no Cine Abhilash. Lembra-se do gosto dos sanduíches de tomate, os sanduíches de Estha, que Estha comeu, no Correio Madras a caminho de Madras. E isso são só as pequenas coisas. * * * Seja como for, ela agora pensa em Estha e Rahel como Eles, porque, separadamente, ambos não são mais o que Eles eram ou jamais pensaram que Eles seriam. Jamais. Suas vidas agora têm uma forma e uma dimensão. Estha tem a dele, e Rahel a dela. Bordas, Fronteiras, Divisas, Margens e Limites apareceram como um bando de gnomos em seus horizontes individuais. Criaturas baixas com sombras longas, patrulhando o Final Fora de Foco. Suaves meias-luas formaram-se debaixo dos olhos deles e têm a idade de Ammu quando morreu. Trinta e um. Nem velhos. Nem moços. Mas uma idade morrível viável. Os dois quase nasceram num ônibus, Estha e Rahel. O carro em que Baba, pai deles, estava levando Ammu, a mãe deles, para o parto no hospital em Shillong quebrou na estrada sinuosa das fazendas de chá em Assam. Eles abandonaram o carro e deram sinal para um ônibus lotado do Transporte Público. Com aquela estranha compaixão que têm os muito pobres com os que são, comparativamente, ricos, ou talvez simplesmente por terem visto como Ammu estava gigantescamente grávida, os passageiros sentados abriram espaço para o casal e durante o resto da viagem o pai de Estha e Rahel teve de segurar a barriga da mãe deles (com os dois dentro) para que não balançasse. Isso foi antes de se divorciarem e Ammu voltar a viver em Kerala. Segundo Estha, se eles tivessem nascido no ônibus, teriam direito a viajar de ônibus de graça pelo resto da vida. Não dava para saber de onde ele tinha tirado essa informação ou como descobria essas coisas, mas durante anos os gêmeos guardaram um vago ressentimento contra os pais por terem sido privados de uma vida inteira de viagens de ônibus gratuitas. Eles acreditavam também que se fossem mortos em cima das listas brancas de um cruzamento o governo teria de pagar por seus funerais. Tinham a nítida impressão de que os cruzamentos listados serviam para isso. Funerais grátis. Claro que não havia cruzamento com listas em Ayemenem, e nem mesmo em Kottayam, que era a cidade mais próxima, mas tinham visto alguns pela janela do carro quando foram para Cochin, que ficava a duas horas de carro. O governo nunca pagou pelo funeral de Sophie Mol, porque ela não foi morta nas listas de um cruzamento. O funeral dela foi na igreja velha de pintura nova em Ayemenem. Era prima de Estha e Rahel, filha do tio Chacko. Estava de visita, vinda da Inglaterra. Estha e Rahel tinham sete anos quando ela morreu. Sophie Mol tinha quase nove. Ganhou um caixão especial, tamanho infantil. Forrado de cetim. Com alças de latão brilhantes. Ali, deitada, com a calça boca-de-sino amarela de Crimplene, com uma fita no cabelo e a bolsa go-go Made in England que adorava. O rosto pálido e mais enrugado que um dedão de dhobi por ter ficado muito tempo dentro da água. Os fiéis reuniram-se em volta do caixão, e a igreja amarela inchou como uma garganta com o som de cantos tristes. Os padres de barbas crespas balançaram frascos de incenso dependurados de correntes e não sorriram para os bebês como sempre sorriam aos domingos. As velas grandes do altar estavam tortas. As pequenas não estavam. Uma velha fingindo ser uma parente distante (que ninguém conhecia), mas que surgia sempre ao lado dos corpos em funerais (uma viciada em funerais? uma necrófila latente?), pôs água-de-colônia num chumaço de algodão e, com um suave ar de desafio, esfregou a testa de Sophie Mol. Sophie Mol cheirava a água- de-colônia e madeira de caixão. Margaret Kochamma, a mãe inglesa de Sophie Mol, não deixou Chacko, o pai biológico de Sophie Mol, pôr o braço em volta dos seus ombros para consolá-la. A família ficou agrupada. Margaret Kochamma, Chacko, Baby Kochamma e, ao lado dela, sua cunhada, Mammachi, avó de Estha e Rahel (e de Sophie Mol). Mammachi era quase cega e usava sempre óculos escuros quando saía de casa. As lágrimas corriam por trás dos óculos e tremulavam em seu queixo como gotas de chuva na beirada de um telhado. Ela parecia pequena e doente em seu sári branco-cru engomado. Chacko era o único filho de Mammachi. A dor dela própria a entristecia. A dele a devastava. Embora permitissem que Ammu, Estha e Rahel comparecessem ao funeral, fizeram com que ficassem separados, não junto com o resto da família. Ninguém olhava para eles. Estava quente na igreja, e as bordas brancas dos copos-de-leite secavam e enrolavam. Uma abelha morreu numa flor do caixão. As mãos de Ammu tremiam e o livro de hinos tremia junto. Sua pele estava fria. Estha ficou a seu lado, quase dormindo, os olhos doloridos brilhando como vidro, o rosto fervendo contra a pele nua do trêmulo braço de Ammu segurando o hinário. Rahel, por outro lado, estava bem acordada, ferozmente vigilante e alerta de exaustão, em sua batalha contra a Vida Real. Ela notou que Sophie Mol estava acordada para o próprio funeral. Ela mostrou Duas Coisas para Rahel. A Coisa Um era a alta abóbada recém-pintada da igreja amarela que Rahel nunca tinha visto por dentro. Estava pintada de azul como o céu, com nuvens flutuantes e minúsculos aviões a jato chiantes com rastros brancos que ziguezagueavam pelas nuvens. É verdade (e é preciso dizer) que era mais fácil notar essas coisas deitada num caixão de cara para cima do que de pé junto aos bancos, cercada de quadris tristes e hinários. Rahel imaginou alguém se dando ao trabalho de subir lá em cima com latas de tinta, branca para as nuvens, azul para o céu, prata para os jatos, e pincéis e solvente. Imaginou-o lá em cima, alguém como Velutha, de corpo nu e brilhante, sentado numa prancha, balançando do andaime na alta abóbada, pintando jatos prateados num céu azul de igreja. Imaginou o que aconteceria se a corda rebentasse. Imaginou-o caindo como uma estrela escura do céu que tinha feito. Ali, quebrado, no chão quente da igreja, sangue escuro escorrendo-lhe do crânio como um segredo. Já então Esthappen e Rahel tinham aprendido que o mundo tem outras formas de quebrar homens. Já conheciam o cheiro. Docenjoativo. Como rosas velhas numa brisa. A Coisa Dois que Sophie Mol mostrou a Rahel foi o bebê morcego. Durante a cerimônia funerária, Rahel viu um morceguinho preto subir, dependurado em suaves garras recurvadas, pelo sári caríssimo que Baby Kochamma usava em funerais. Quando ele chegou ao ponto entre o sári e a blusa, aquele rolo de tristeza da cintura nua, Baby Kochamma deu um grito e golpeou o ar com o hinário. O canto foi interrompido para um “Quefoisso? Oqueaconteceu?” e agitação e sári sacudindo. Os tristes padres espanaram as barbas crespas com dedos cheios de anéis, como se aranhas ocultas tivessem tecido súbitas teias dentro delas. O bebê morcego voou para o céu e transformou-se num avião a jato sem a trilha em ziguezague. Só Rahel percebeu o salto secreto que Sophie Mol deu em seu caixão. O canto triste recomeçou e cantaram duas vezes o mesmo verso triste. E mais uma vez a igreja amarela inchou como uma garganta com vozes. Quando baixaram o caixão para a terra, no pequeno cemitério atrás da igreja, Rahel sabia que Sophie Mol ainda não estava morta. Ela ouviu (em nome de Sophie Mol) os sons macios da lama vermelha e os sons duros da laterita laranja que estragavam o verniz brilhante. Ouviu os sons surdos através da madeira polida, através do forro de cetim. As vozes dos padres tristes abafadas por lama e madeira. A ti confiamos, Pai misericordioso, A alma desta nossa filha que se foi, E devolvemos seu corpo à terra. Das cinzas às cinzas, do pó ao pó. Debaixo da terra, Sophie Mol gritava e rasgava o cetim com os dentes. Mas não se podem ouvir gritos através de terra e pedra. Sophie Mol morreu porque não podia respirar. O funeral a matou. Do pó ao pó ao pó ao pó ao pó. Em seu túmulo se lia Um Raio de Sol Que Brilhou Entre Nós Mui Brevemente. Ammu explicou depois que Mui Brevemente queria dizer Por Muito Pouco Tempo. Depois do funeral, Ammu levou os gêmeos de volta à delegacia de polícia de Kottayam. Eles conheciam aquele lugar. Tinham passado ali boa parte do dia anterior. Prevendo o fedor duro e exalante de urina velha que permeava as paredes e os móveis, apertaram bem as narinas com os dedos antes de o cheiro começar. Ammu pediu para ver o Delegado e, quando entrou em sua sala, disse que tinha havido um erro terrível e que queria fazer uma declaração. Pediu para ver Velutha. O bigode do inspetor Thomas Mathew tremia igual ao do simpático Marajá da Air India, mas seus olhos eram dissimulados e vorazes. “É um pouco tarde para tudo isso, não acha?”, ele disse. Falava o áspero dialeto malayalam de Kottayam. Olhava fixamente os seios de Ammu enquanto falava. Disse que a polícia já sabia tudo o que tinha de saber e que a Polícia de Kottayam não aceitava depoimentos de veshyas nem de seus filhos ilegítimos. Ammu disse que ia cuidar desse assunto. O inspetor Thomas Mathew deu a volta na mesa e aproximou-se de Ammu com seu cassetete.

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Para Mary Roy, que me fez crescer. Que me ensinou a dizer “com licença” antes de interrompê-la em público. Que me amou a ponto de me deixar ir
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