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O Desafio das Línguas: da má gestão ao bom senso PDF

236 Pages·2016·5.48 MB·German
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Claude Piron OO DDeessaaffiioo ddaass LLíínngguuaass Da má gestão ao bom senso Copyright © Claude Piron Tradução e adaptação: Ismael M. A. Ávila (ismael.avila @ gmail.com) Capa: Nações Unidas (Genebra) (foto: Benoit Newton) Piron, Claude O Desafio das Línguas: da má gestão ao bom senso Claude Piron / Tradução e adaptação de Ismael M. A. Ávila. – Campinas, SP. Segunda edição revisada e atualizada: janeiro de 2007. Título original: Le défi des langues: du gâchis au bon sens. (1994) ISBN 2-7384-2432-5 Título da primeira edição brasileira: O desafio das línguas: da má gestão ao bom senso. (2002) ISBN 85-7113-160-0 1. Comunicação internacional 2. Comunicação linguística 3. Tradução e interpretação 4. Linguagem e línguas 5. Línguas internacionais I. Título. CDD-400 Índices para catálogo sistemático: 1. Línguas e linguagem 400 ii Apresentação Para enfrentar os inúmeros problemas causados pela barreira das línguas, nossa sociedade se vale de paliativos que levam a resultados de precária qualidade. O autor, com uma sólida e bem documentada argumentação, aborda a questão da comunicação linguística internacional como um consultor incumbido de reorganizar uma empresa mal gerida, que busca determinar os pontos de desperdício e ineficiência, e compara, em termos da eficácia, justiça e comodidade, as diversas soluções empregadas para superar a barreira das línguas. A obra nos revela o interesse ignorado de uma proposta cujos atributos permitiriam melho- rar sensivelmente a situação, preservando a riqueza linguística de um mundo no qual a maior parte dos povos tem dificuldade em proteger seus valores face à pressão cultural anglo-saxônica. Sobre o autor Claude Piron é psicólogo, psicoterapeuta e poliglota, ex-professor de línguas e da Universidade de Genebra. Em sua abordagem da questão da linguagem e da comunicação internacional, Piron adota uma análise multidisciplinar que parte da perspectiva de quem vivenciou, durante muitos anos e nos quatro cantos do mundo, as diversas dificuldades e limitações das soluções utilizadas para vencer a barreira das línguas, tanto nos serviços linguísticos da ONU e da OMS, onde trabalhou como tradutor e revisor, quanto em várias outras partes do mundo, inclusive em campos de refugiados, onde atuou como voluntário. Piron é autor de muitos artigos sobre o tema, e seus pontos de vista são condensados nesta obra, originalmente publicada na Europa em 1994. Sobre esta edição Esta re-edição eletrônica em português marca o quinto aniversário da primeira edição impressa, e tem por objetivo tornar a obra novamente acessível, inclusive fora do Brasil, visto se tratar de uma versão disponível gratuitamente pela Internet. A re-edição permitiu atualizar e corrigir conteúdos da primeira versão em português, e também enriquecê-la com imagens e ilustrações, a fim de trazer ao leitor um retrato ainda mais nítido dos problemas decorrentes da má gestão da comunicação internacional. Esperamos ter conseguido aprimorar a tradução, tornando-a mais legível e clara. Somos gratos a todos aqueles que fizeram críticas construtivas à primeira edição, cujo único mérito talvez tenha sido o simples fato de ter vindo a lume, dada a dificuldade inerente de se traduzir e adaptar uma obra desta natureza. O tradutor iii iv Sumário A comunicação linguística internacional: uma gestão patológica?....1 Interlúdio............................................................................................5 O problema.........................................................................................9 Mitos e realidades.............................................................................33 Mais difícil do que se diz.................................................................47 Tentativas de solução.......................................................................63 Língua, sistema nervoso e psiquismo humano.................................89 Uma solução que merece ser considerada......................................113 Segundo interlúdio.........................................................................137 A resistência: elemento normal de toda neurose............................141 Alguns exemplos de racionalizações..............................................163 Pessoas, em suma, perfeitamente normais......................................179 Um projeto piloto...........................................................................197 Algumas propostas razoáveis.........................................................213 v vi Capítulo 1 A comunicação linguística internacional: uma gestão patológica? Se um indivíduo escolhe sem razão um modo de ação inutilmente penoso, gasta uma fortuna para adquirir aquilo que está gratuitamente à sua disposição, recusa a priori informar-se sobre os meios eficazes de atingir seu objetivo e foge a toda reflexão sobre sua maneira de agir, diremos coloquialmente que algo em seu comportamento não bate muito bem. Se, além disso, sua predileção por esforços desencorajadores e processos complicados leva a um resultado medíocre, ao passo que um vizinho obtém resultados de excelente qualidade por um método simples e agradável, fácil de adotar de pronto, não hesitaremos mais em falar de masoquismo. Nós não pensamos nisso nem um pouco, mas a organização da comunicação linguística internacional faz jus ao mesmo diagnóstico. Ela é patológica. Essa afirmação pode parecer presunçosa. Contudo, ela se baseia na análise da realidade. O leitor se dará conta dela caso se prontifique a acompanhar o presente trabalho. Todas as indicações lhe serão fornecidas para que ele possa verificar os fatos por si mesmo. Existem muitos pontos em comum entre a organização atual da comunicação linguística e o modo de gestão da economia que conduziu o ex-bloco soviético à falência. Consideremos por exemplo o seguinte depoimento: “Nós construímos em Zeran uma fábrica de automóveis e investimos um capital enorme na empresa. Vimos surgir ali uma nova planta que, a um custo tal que desafia toda imaginação, produz um número insignificante de veículos, os quais consomem quantidades assustadoras de combustível.”1 Essa avaliação, manifestada por Gomułka em 1956, ainda podia aplicar-se trinta e três anos mais tarde às fábricas Trabant, na Alemanha Oriental, e a inúmeras empresas de países comunistas. Pode-se descrever em termos análogos a maneira na qual a comunicação é atualmente organizada entre os países e os povos: “Nós organizamos ao redor do mundo um ensino escolar de línguas no qual nós investimos, ano após ano, capitais enormes. Vimos surgir um sistema de ensino que, a um custo que desafia toda imaginação, produz um número insignificante de poliglotas. A comunicação internacional em muitas situações não funciona; onde ela funciona (de maneira medíocre), ela consome montantes assustadores, injetados na tradução, na interpretação simultânea, no secretariado multilíngue e na reprodução de obras e documentos em dezenas e dezenas de línguas.” Ora, o estudo comparativo dos meios postos em prática para superar a barreira das línguas revela possibilidades inexploradas. Existe em particular um sistema que garante 1 Władysław Gomułka, Discurso proferido na Oitava Sessão Plenária do Comitê Central do POUP, Varsóvia: Polônia, 1956, p. 5. 1 2 A comunicação linguística internacional: uma gestão patológica? uma relação eficácia/custo digna das empresas mais produtivas. Mas os Estados evitam informar suas populações acerca dele. Má vontade? Incompetência? Política deliberada? Medo de realidades renovadoras? Ou pura e simplesmente uma neurose? A título de hipótese de trabalho, optaremos por esta última possibilidade. E visto que ela trata de uma entidade sócio-patológica bem precisa, nós lhe daremos um nome. Nós a chamaremos síndrome de Babel. A história da Torre de Babel mostra os homens dividindo-se em grupos fechados, incapazes de comunicar entre si. Essa ruptura de pontes evoca certos quadros psico- patológicos. Citemos um caso real: o do senhor N., hospitalizado num estabelecimento psiquiátrico. Totalmente ensimesmado, ele não se comunicava com ninguém. Entretanto ele falava. Ocorria-lhe mesmo cantar estranhos queixumes, infinitamente tristes. Ele também escrevia. Preenchia cadernos com um texto hermético, ao longo de todo um dia. Mas a língua na qual ele falava, salmodiava e escrevia era uma língua só dele, uma língua que ele havia inventado. Não se tratava de um estrangeiro: antes de se tornar inválido, ele falava um francês totalmente normal. Mas ele foi se isolando cada vez mais. Quanto mais penetrava em seu universo, menos dialogava. Ele forjou sua própria língua, distanciou-se do mundo. Talvez tivesse sido possível salvá-lo entrando em seu jogo, mas naquele estabelecimento ninguém tinha tempo para isso. Sua ficha, contendo um diagnóstico de esquizofrenia, deve estar mofando em algum porão. Não nos enganemos. Não há nada de patológico em inventar uma linguagem. É até mesmo uma atividade criativa que pode trazer satisfações profundas, como descobrem inúmeras crianças. A doença mental não aparece a não ser que, além disso, haja uma recusa em se falar uma linguagem compreensível aos demais. Então cessam as relações, não se recebe mais o ar exterior, e ocorre um fechamento dentro de um universo enclausurado e obtuso. É um pouco como perder a alma. Porque o ser humano é um ser de relações. Uma patologia de tal ordem causa danos em escala mundial, herdeira, sem dúvida, de um passado distante demais para ser conhecido. Pode-se presumir que no começo se tratava com frequência de sistemas de defesa perfeitamente justificáveis. O Outro, o de- fora-da-tribo, era o inimigo potencial. Era necessário evitar que ele compreendesse o que se tramava. Então se começou a empregar uma linguagem diferente, uma linguagem secreta, servindo de barreira protetora. Esse processo de criação linguística, além do mais, nunca cessou: antes de passarem ao domínio público, as gírias são linguagens de delinquentes destinadas a limitar a compreensão somente aos iniciados. Em outros casos, ao que parece, não foi um mecanismo de defesa, mas uma consequência de um isolamento geográfico. Separados do resto do mundo por um rio, uma cadeia de montanhas, uma floresta, ou tão somente pela distância, nossos ancestrais aperfeiçoaram sua linguagem própria, única. Junto com nossa cultura, nossos cantos, nossas danças, nossa poesia, nossos costumes, nossas festas, ela constitui um todo harmonioso, frequentemente cheio de esplendores inigualáveis, que fez com que fôssemos o que somos, muito diferentes das pessoas que vivem do outro lado da fronteira linguística. Enquanto estamos isolados, essa evolução é perfeitamente sã. É a maravilha da criatividade humana que se manifesta. Os milhares de línguas que a humanidade criou são como os milhares de artes culinárias, como todos os sutis aromas de diferentes vinhos, 2 A comunicação linguística internacional: uma gestão patológica? 3 como todos os tipos de moradias, os trajes típicos, os contos, os estilos musicais. A diversidade das produções linguísticas é tão magnífica quanto a diversidade das flores, das frutas, das paisagens. Não há nada de mórbido nisso. A doença mental não apareceu até que se estabeleceram contatos entre comunidades separadas, até que estes se tornaram de tal forma intensos e frequentes que toda a vida se organizou em torno deles, de sorte que as relações se tornaram indispensáveis. A doença mental reside, como no velho senhor N., no medo de comunicar-se, enquanto que, como veremos na sequência do texto, é fácil de se fazê-lo. O caráter patológico do funcionamento da sociedade aparecerá mais claramente se fizermos uma comparação2. Imagine a situação seguinte. Três pessoas, estabelecidas uma em Londres, outra em Paris, e a terceira em Berlim, têm para discutir um assunto confi- dencial da mais alta importância. Uma secretária sugere a um dos três um encontro em Bruxelas, mas, para sua grande surpresa, as pessoas presentes não demoram a ridicularizá-la e a impor-lhe o silêncio: “Cale-se! Nós não levamos em conta nenhuma solução que não seja séria. Você ainda acredita em Papai Noel?” A jovem desiste consternada, aquietando- se em seu lugar. E, contrariando todo bom senso, o parisiense parte para Montevidéu, o londrino parte para Washington e o berlinense para Pequim. A discussão se dá por telefone, de seus respectivos hotéis. A comunicação não é excelente, custa caro, e terá representado para os protagonistas despesas consideráveis e uma perda de tempo que teria sido fácil de evitar. Visto que não havia qualquer razão para escolher aquelas capitais em lugar de uma cidade europeia, e que suas longas viagens, longe de proporcionarem prazer, complicaram- lhes a vida, foi aberrante proceder daquela maneira, principalmente se considerarmos que a solução consistindo em se encontrarem numa mesma cidade, relativamente próxima, jamais foi considerada! Esse caso hipotético parece tão inverossímil que ninguém o crê possível. Tal é, contudo, o comportamento de nossa sociedade no campo da comunicação linguística. Eis aqui três cientistas, um finlandês, um tcheco e um ruandês, que participaram de uma pesquisa em comum coordenada por uma instituição especializada da ONU. Quando eles se encontram em Genebra para confrontar seus resultados, verifica-se que o finlandês passou oito anos de sua escolaridade, à razão de cinco horas por semana, para aprender um inglês que ele domina mal. O tcheco consagrou um tempo ainda mais considerável a se debater com os idiomas alemão e russo. Quanto ao ruandês, ele despendeu uma fantástica energia para assimilar a língua francesa, com todas aquelas sutilezas que suscitam tantas perguntas sem resposta aos alunos estrangeiros. No momento em que esses três especialistas reúnem-se na sede de sua organização, suas 1200 a 1500 horas de língua, às quais se deve somar o tempo gasto em casa para fazer os exercícios ou para memorizar vocabulários e regras de gramática, revelam-se totalmente inúteis. Para que eles possam comunicar-se, serão necessários seis intérpretes e um técnico, cujas formações terão custado também elas à sociedade um número desmesurado de horas de ensino. Tudo isso se torna caro: 840 francos suíços, ou seja, mais de 550 dólares, por intérprete por dia: mais de 3300 dólares por dia para nada mais que a remuneração dos intérpretes, à qual é necessário acrescentar a do técnico e, se há documentos a traduzir, 2Eu reproduzo em seguida a comparação que utilizei em “Um caso espantoso de masoquismo social”, Action et Pensée, 1991, no 19, pp. 51-53. 3 4 A comunicação linguística internacional: uma gestão patológica? tradutores e digitadores, além das taxas de administração (eletricidade, horas-extras, papel, etc.). Ora, para um investimento tão impressionante, os resultados são mais que medíocres. Os parceiros estão longe de dominar perfeitamente as línguas que utilizam. Eles falam num microfone e escutam uma voz diferente daquela de seu verdadeiro interlocutor. A comuni- cação é de uma eficácia limitada, por falta de um nível técnico apropriado no âmbito dos profissionais linguísticos. Os relatórios de pesquisa tiveram que ser traduzidos com custos altíssimos e agora trazem alguns contra-sensos. Na pausa do café, no jantar ou se quiserem fazer alguma atividade externa, esses especialistas nada podem dizer um ao outro: as trocas limitam-se a gestos e a onomatopeias. Eles estão limitados a se comportarem como defici- entes, vítimas de um icto cerebral, ou como surdos-mudos que não aprenderam a linguagem de sinais. Esse sistema, muito desagradável para aqueles que o vivenciam diretamente, reproduz-se constantemente por toda a superfície do globo, e isso custa uma fortuna às populações do mundo inteiro. Será que tal comportamento, que no caso dos três primeiros poderia ser considerado patológico, deixa de sê-lo no caso destes três últimos? É claro, eles próprios, como pessoas, podem ser os mais sãos dos seres que já viveram na face da Terra, mentalmente falando. A doença não se situa no nível de suas pessoas. Mas o que dizer de no nível da sociedade? Quando se desconfia que as coisas numa empresa não vão tão bem quanto deveriam, chama-se um consultor que se ocupa de estudar toda a organização das atividades, de forma a detectar os desperdícios de energia, os pontos de estrangulamento, os desvios inúteis, os maus funcionamentos. Esperam-se dele propostas concretas: como proceder para obter melhores resultados a menores custos, num clima mais simpático para todos? Nada nos impede de exercer tal função no domínio das línguas. Vejamos como se apresenta a comunicação linguística no mundo de hoje. A primeira questão que se coloca é saber se há realmente um problema. Pode ser que a maneira como as coisas foram acima apresentadas distorça sensivelmente a realidade. Se há problema, observemos o que é feito para resolvê-lo, contorná-lo ou paliá-lo de uma forma ou de outra. Se descobrirmos que diversas soluções são efetivamente aplicadas, uma aqui, outra ali, nós poderemos estudá-las em campo, na prática. Nós faremos em relação a elas uma pergunta fundamental: como elas se comparam umas em relação às outras, qual é seu rendimento respectivo em relação a seu custo? Mas será impróprio nos limitarmos simplesmente ao ponto de vista material: nós abordaremos igualmente a situação sob o ângulo da satisfação psicológica, das vantagens ou inconvenientes culturais, da justiça, do aspecto humano da comunicação. Talvez, ao final desta pesquisa, tenhamos descoberto que tudo vai muito bem, como no melhor dos mundos; assim, nós pura e simplesmente reconheceremos o fato. Nossa expedição não terá sido entretanto inútil. Se a caça ao tesouro não tiver sucesso, pelo menos a viagem nos terá ensinado alguma coisa. Mas nós talvez venhamos a constatar que um dado sistema permite reduzir sensivelmente os custos e aumentar em grande medida a eficácia das trocas, respondendo de fato melhor que os métodos usuais às aspirações psicológicas e culturais das pessoas chamadas a se comunicar de uma entidade linguística a outra. Nós teremos então o dever de descrevê-lo, colocando as cartas na mesa. E nós tentaremos compreender por que, se essa fórmula existe, nossas autoridades agem como se ela não existisse. 4

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2ª Edição. — Campinas: Pontes Editores, 2007. — VI, 230 p. — ISBN: 85-7113-160-0.Título original: Le défi des langues: du gâchis au bon sens. (1994). Tradução e adaptação de Ismael M. A. Ávila.Para enfrentar os inúmeros problemas causados pela barreira das línguas, nossa sociedade
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