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o corpo feminino na poesia galego-portuguesa: comparações entre as cantigas de amor e amigo PDF

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ISSN 2236-3335 O CORPO FEMININO NA POESIA GALEGO- PORTUGUESA: COMPARAÇÕES ENTRE AS CANTIGAS DE AMOR E AMIGO Lara da Silva Cardoso Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Licenciatura em Letras Vernáculas [email protected] Profa. Ma. Andréia Silva de Araújo (Orientadora) Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Departamento de Letras e Artes [email protected] Resumo: O artigo aborda as cantigas de amigo e de amor galego-portuguesas e a presença do corpo feminino em tais composições. Essas cantigas demonstram a presença do Amor Cortês e sua relação com a frequência do aparecimento do corpo feminino nas letras das canções. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica com base nos trabalhos de Barros (2011), Camillis (2014) e Coval (2014). A assiduidade de descrições corporais, erotizadas e/ou sensualizadas, verificadas principalmente nas cantigas de amigo, e a presença de características físicas, de forma sutil, nas cantigas de amor são levadas a questionamentos sobre o distanciamento do homem e da mulher promovido pelo Amor Cortês e a descrição do corpo feminino a partir dos valores morais do período medieval. Palavras-chave: Cantigas de amor. Cantigas de amigo. Corpo feminino. 1 INTRODUÇÃO A Idade Média, período da história europeia demarcada entre os séculos X e XV, foi por muito tempo estereotipada Graduando, Feira de Santana, v. 8, n. 11, p. 151-163, 2017 152 como um período de escuridão e pouco avanço no que diz respeito às relações sociais. A literatura, nesse imenso período da história, baseava-se na influência religiosa; os textos escri- tos restringiam-se aos textos da Igreja Católica. Em Portugal, especificamente a partir do século XII, inicia-se um período sócio-histórico que altera as relações interpessoais da época, e emerge a necessidade de uma maior expressão literária. O surgimento das Cruzadas, segundo Barros (2011), dá dinamicidade à sociedade europeia, e a mudança da divisão da herança para uma sucessão unicamente primogênita cria um amontoado de nobres falidos. Impulsionados à castidade, a fim de evitar o aumento dos gastos familiares, a eles restavam as opções de tornarem-se cavaleiros andantes, cruzados, e/ou trovadores. Envolvidos em um Amor Cortês, os nobres trovadores eram levados a demonstrar uma sensibilidade perante a mulher, idealizando-a. Essa idealização variava conforme a classe a que ela pertencia. Sendo assim, as próprias cantigas ressalta- vam essa dicotomia: há a cantiga da mulher nobre, as chama- das “cantigas de amor”, em que ela era idealizada e posta numa posição mais alta do que o homem, e há a cantiga da campesina, a “cantiga de amigo”, em que a mulher era coloca- da como o eu lírico e a letra da canção era repleta de metáfo- ras que oferecem uma maior proximidade física do trovador em relação à mulher cortejada. O corpo tem suas primeiras aparições na literatura através da poesia medieval. Primeiro porque, como afirma Lopes (2006, p. 1), as palavras cantadas, resquícios da tradição oral, possibilitam ao trovador a interpretação corporal do que se canta, ou seja, uma influência do corpo e da voz do trova- dor na cantiga; e, segundo, porque a presença da voz feminina nas cantigas de amigo e da voz masculina nas cantigas de amor remetem a visões distintas sobre o olhar para o corpo da mulher. Graduando, Feira de Santana, v. 8, n. 11, p. 151-163, 2017 153 Ambas as cantigas aqui especificadas atentam para o corpo feminino em sua letra. A diferença se dá na atenção a esse atributo e na forma de sua inclusão nas composições. Busca-se, portanto, neste trabalho, comparar a presença e importância das características físicas femininas nas cantigas e desenvolver possíveis explicações para a diferenciação da exposição corporal da mulher nas cantigas de amor e de amigo. 2 O AMOR CORTÊS, AS CANTIGAS DE AMOR E O CORPO FEMININO Tanto as cantigas de amor quanto as cantigas de amigo eram escritas pelos mesmos trovadores, que direcionavam os sentimentos expressos nas relações amorosas descritas nas canções. Segundo Peiruque (2007, p. 4), “[...] o poeta, pois, representa com suas cantigas o que gostaria de viver na sua coletividade.” A coletividade e o meio social daquela época, influenciados pela visão de amor cortês, davam às mulheres da aristocracia a posição de distanciamento e devoção, semelhan- tes ao culto mariano, surgido no século XII. O Amor Cortês, idealizado também no século XII para conter os estupros e manter os casamentos das nobrezas, envolveu os cavaleiros e os trovadores de tal forma que muitos, como afirma Barros (2011), fizeram de sua vida a expe- riência prática dessa idealização do amor, transformando seus relatos biográficos em cantigas. Nas cantigas de amor, oriun- das da poesia provençal, a mulher era idealizada, colocada numa posição de dama inatingível. A visão feminina nessas canções era a representatividade coletiva da mulher nobre, rica e poderosa, que merecia o louvor dos trovadores e que era responsável pelo sofrimento de amor deles, já que era sempre posta em um distanciamento necessário. Em virtude do cumprimento da relação de vassalagem amorosa, ocasionada pelo Amor Cortês desenvolvido naquela época, evitava-se, ao máximo, a menção a características físicas da mulher. Graduando, Feira de Santana, v. 8, n. 11, p. 151-163, 2017 154 A cantiga de Nuno Fernandes Torneol exemplifica a ideali- zação a que o trovador é levado ao falar da mulher nobre na cantiga de amor: Ai eu! e de mim que será? Que fui tal dona querer bem a que nom ouso dizer rem de quanto mal me faz haver! E feze-a Deus parecer melhor de quantas no mund'há! Mais em grave dia naci, se Deus conselho nom mi der; ca destas coitas qual xe quer m'é-mi mui grave d'endurar: como nom lh'ousar a falar e ela parecer assi. (TORNEOL, [12--]) A expressão “dona” remete a uma senhora de grandes domínios, de boa fortuna, sendo, portanto, uma mulher da aris- tocracia. Ao apaixonar-se por ela, o trovador sente-se perdido, pois jamais confessará o seu amor. Associa-se, portanto, ao ideal do amor cortês, que impulsiona o homem a manter-se distante da mulher amada. O sofrimento do trovador é inevitável; o motivo, entretan- to, é posto em questionamento: “ca destas coitas qual xe quer/ m'é-mi grave d'endurar/como nom lh'ousa a falar e ela parecer assi”. O trovador questiona-se qual o motivo de maior dor: se tentar falar à dama os seus sentimentos, ou se o fato de a senhora ser tão bonita quanto lhe pareceu. Apesar de a distância entre o trovador e a mulher amada ser facilmente notada, também é possível a percepção do corpo feminino na cantiga, ainda que de forma discreta, através do verso: “e ela parecer assi”. O trovador, estando envolvido no Amor Cortês, não podia falar abertamente sobre Graduando, Feira de Santana, v. 8, n. 11, p. 151-163, 2017 155 seus desejos sexuais pela senhora. Mas, na cantiga, há a menção à beleza feminina, ou seja, ao corpo da mulher, o que aproxima, de forma breve, os personagens: o trovador elogia a beleza da dama, enaltecendo o corpo feminino. Vale lembrar que, na Idade Média, as relações entre o homem e a mulher eram pouco ou quase nada comentadas, principalmente dentro da literatura. A presença de um elogio ao corpo feminino, ainda que de forma breve, dentro de uma cantiga de amor, aponta para um início de mudança nas relações sociais da época. A cantiga de amor de João Airas de Santiago também exemplifica a presença do corpo feminino nesse tipo de canção. Ela é narrada pelo eu lírico masculino, que conta as suas paixões por uma mulher, aparentemente nobre, por usar um manto em volta do cavalo: A por que perço o dormir e ando mui enamorado vejo-a daqui partir e fic'eu desemparado; a mui gram prazer se vai a Crexent', em sua mua baia; vestida d'um prés de Cambrai, Deus! que bem lh'está manto e saia A morrer houvi por en tanto a vi bem talhada, que parecia mui bem em sua sela dourada; as sueiras som d'ensai e os arções [som] de faia, vestida d'um prés de Cambrai Deus! que bem lh'está manto e saia (SANTIGAGO, [129-?]) A atração física pela mulher aparece na cantiga em dois momentos: “Deus! que bem lh'está manto e saia” e “tanto a vi bem talhada”. O primeiro verso em destaque aponta explicita- mente para a beleza da mulher. Segundo o trovador, através Graduando, Feira de Santana, v. 8, n. 11, p. 151-163, 2017 156 das suas vestes, centraliza sua atenção sobre o corpo femini- no. O segundo verso destacado aponta também para o corpo, no sentido de ver a dama elegante, a ponto de o trovador aproximar-se da morte, em virtude da beleza da dama. As cantigas de amor, em sua totalidade, não apontam para uma exclusão corporal e um absoluto distanciamento entre os personagens da canção. Segundo Barros (2011, p. 213, grifo do autor), as diferenças de pensamento sobre a presença de uma ou outra característica principal das cantigas [...] reside talvez naquilo que o historiador prioriza na sua análise, naquilo que ele traz para o primeiro plano e naquilo que ele empurra para um plano secundário – como por exemplo no que se refere à estratégia interpretativa de se priorizar o erotismo ou o idealis- mo, ambos na verdade muito presentes na poesia cortês, de maneira geral de maneira intrincada, dialéti- ca ou complementar. O trovador, segundo as regras morais estabelecidas pelo Amor Cortês, teria a obrigação moral de idealizar a senhora, colocá-la em um distanciamento passível de devoção. Mas, ao enaltecer as características físicas da sua amada, ele aproxima -se do corpo feminino mais do que deveria, abrindo novas possibilidades de investigação sobre a presença corporal da mulher nas cantigas de amor. 3 AS CANTIGAS DE AMIGO E O CORPO FEMININO: POTENCIALIZAÇÃO DO EROTISMO Nas cantigas de amigo, a voz lírica é da mulher do campo, chamada muitas vezes de “pastora”, que conta suas dores do homem amado – o qual se encontra distante – à sua amiga ou à sua mãe. Apesar de manter o lirismo amoroso nas composições, a mulher, nesse tipo de canção, por ser oriunda de classes populares, é vista pelo trovador como uma mulher Graduando, Feira de Santana, v. 8, n. 11, p. 151-163, 2017 157 mais carnalmente acessível. Sem a obrigação de cortejar moças de classe mais baixa, há a apresentação concreta de sentidos e do corpo feminino. O corpo da mulher é, a partir dos limites convencionais da época, mais abertamente falado, cabendo, inclusive, constantes metáforas eróticas entre a natureza, o corpo e os gestos da pastora. A cantiga de amigo de João Airas de Santiago apresenta um caráter erótico, sem a necessidade de um uso constante de metáforas: O meu amigo, forçado d'amor, pois agora comigo quer viver ũa sazom, se o puder fazer, nom dórmia já mentre comigo for, ca daquel tempo que migo guarir atanto perderá quanto dormir. E quem bem quer [o] seu tempo passar u é com sa senhor, nom dorme rem; e meu amigo, pois pera mi vem, nom dórmia já mentre migo morar, ca daquel tempo que migo guarir atanto perderá quanto dormir. E, se lh'aprouguer de dormir alá u el é, prazer-mi-á, per bõa fé, pero dormir tempo perdud[o] é, mais per meu grad'aqui nom dormirá, ca daquel tempo que migo guarir atanto perderá quanto dormir. E, depois que s[e] el de mim partir, tanto dórmia quanto quiser dormir. (SANTIAGO, [129-?]) A pastora impõe uma condição ao amigo, que passará com ela um tempo: enquanto estiverem juntos, ele não dormirá, a fim de não desperdiçar nenhum momento. As conotações sexuais fazem-se presentes de forma explícita. As intenções do desejo sexual são transferidas do homem, “o amigo”, para o Graduando, Feira de Santana, v. 8, n. 11, p. 151-163, 2017 158 desejo feminino. Sabendo-se que as camponesas estavam menos envolvidas numa castidade em relação às senhoras da corte, percebe-se o interesse pelo corpo transferido do homem para a mulher. Conforme Araújo e Fonseca (2012, p. 39-40), “[...] é o trovador que oferece um perfil das relações amorosas e soci- ais, envolvendo a mulher do campo e a da cidade.” A atração física, comumente aceita apenas ao sexo masculino, transfere- se para a pastora, como um aspecto viril. A atração sexual e a sensualidade aparecem nas cantigas de eu lírico feminino, a fim de esconder esses sentimentos do trovador, passando-os para a pastora em questão. A canção Diz meu amigo que lhi faça bem, de Johan Servando, aponta para o corpo feminino sob a ótima masculina de forma um pouco mais clara que nas demais canções: Diz meu amigo que lhi faça bem, mais nom mi diz o bem que quer de mi[m]; eu por bem tenho de que lh'aqui vim polo veer, mais el assi nom tem; mais, se soubess'eu qual bem el queria haver de mi, assi lho guisaria. Pede-m'el bem, quant'há que o eu vi, e nom mi diz o bem que quer haver de mim, e tenh'eu que d[e] o veer lh'é mui gram bem, e el nom tem assi; mais, se soubess'eu qual bem el querria haver de mi, assi lho guisaria. Pede-m'el bem, nom sei em qual razom, pero nom mi diz o bem que querrá de mim; e tenh'eu, de que o vi já, que lhe gram bem [é], e el tem que nom; mais, se soubess'eu qual bem el querria haver de mi, assi lho guisaria. Par Servand', e assanhar-m'-ei um dia, se m'el nom diz qual bem de mim querria. (SERVANDO, [12--?]). Graduando, Feira de Santana, v. 8, n. 11, p. 151-163, 2017 159 Ainda escrita pela voz feminina, a pastora conta os dese- jos do amigo: solicita que ela “faça-o bem”. Fazendo-se de desentendida, acredita que vê-lo é o desejável, mas ele não assume o que quer e ela, ao fim da canção, diz que enfurece- rá, qualquer dia, caso não obtenha a resposta. A cantiga traz o apelo sexual do amigo e mostra que as intenções dele eram maiores que apenas encontrá-la, deixando implícito o desejo do toque no corpo da mulher. Percebe-se, portanto, uma maior fala sobre os desejos sexuais, que são postos como oriundos do amigo, mas atenuados pela mulher, que se faz de desen- tendida. O corpo feminino torna-se desejado mais diretamente nessa cantiga, assim como em tantas outras de amigo. Não há apenas o enaltecimento da beleza física da mulher; há a erotização através de palavras e frases que conotam o desejo sexual da campesina por seu amigo. A presença de características físicas femininas aparece nas canções aliada a um erotismo mais transparente, mesmo que tenha sido colocado através de menções indiretas ou metáfo- ras. Como afirma Ferreira (2002, p. 39), na cantiga de amigo, através da voz feminina, é cantado “[...] o amor proibido e 'inferior', a começar pela linguagem maliciosa e ousada, pela qual a mulher se mostra em fraquezas diante do amado a quem deseja entregar-se como amante”. A posição social da campesina e a ausência de boa parte das restrições do Amor Cortês sobre ela permitem a presença intensa e reforçada do erotismo ao falar do corpo feminino, se comparada às cantigas de amor. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diferente do que se costumava pensar sobre as cantigas de amor, há a presença do corpo feminino nas composições. Ainda que de forma velada e breve, os atributos físicos das damas revelam uma relativa desobediência às regras e condu- tas morais do Amor Cortês pelos nobres trovadores. O corpo Graduando, Feira de Santana, v. 8, n. 11, p. 151-163, 2017 160 também aparece nas cantigas de amigo de forma intensificada, através de metáforas e expressões sentimentais que apontam para um desejo sexual implícito na voz da campesina. A introdução da imagem corporal nas cantigas de amigo representa mais a liberdade do homem que da mulher, já que era o trovador – do sexo masculino – o escritor dos lamentos da mulher apaixonada. Entretanto, é possível notar um avanço na expressão literária no que diz respeito à sexualidade, mesmo que apenas para os homens. Naquele período, entre os séculos XI e XIV, a literatura se restringia apenas a escritos católicos, os quais abominavam qualquer expressão corporal que remetesse aos desejos carnais. Além disso, a presença do corpo feminino nessas canções representou, entre várias funções, a possibilidade de romper com a centralização da lite- ratura para fins religiosos. A idealização do Amor Cortês, impulsionado pelo início da sucessão exclusivamente primogênita da herança, pela neces- sidade de se conter os abusos sexuais cometidos contra as mulheres nobres e pelo início de uma transição do casamento arranjado para o casamento amoroso, preservou a honra dos nobres cavaleiros e das senhoras da corte por algum tempo. A presença do corpo nas cantigas – tanto nas de amor quanto nas de amigo – representa, de certo modo, uma breve resis- tência aos moldes morais que deveriam ser preservados segundo os valores do período medieval. A inserção do corpo na literatura trovadoresca ajudou a sociedade portuguesa no seu período de transição entre concentração do poder nas mãos da moralidade cristã e a liberdade individual de sentimen- tos e desejos. O corpo, relatado nas cantigas de amigo, não significou maior liberdade da mulher para falar de si, mas representou o desejo sexual dos homens, o qual foi reprimido pelo ideal do Amor Cortês, mas que nem por isso deixou de existir. As cantigas de amor e de amigo aqui analisadas destinam-se e referem-se a mulheres de diferentes posições sociais, envol- vendo o modo de representação delas. Nos dois tipos de Graduando, Feira de Santana, v. 8, n. 11, p. 151-163, 2017

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Resumo: O artigo aborda as cantigas de amigo e de amor galego-portuguesas e a presença do corpo feminino em tais composições. Essas cantigas
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