LUCIANO CORREA ORTEGA O CONCEITO DE PESSOA MORAL COMO CRITÉRIO PARA ANÁLISE DO ABORTO PROVOCADO: CONSIDERAÇÕES INTERDISCIPLINARES Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de mestre pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito – DFD. Orientadora: Professora Doutora Mara Regina de Oliveira. Faculdade de Direito - FDUSP São Paulo 2011 I FOLHA DE APROVAÇÃO Nome: ORTEGA, Luciano Correa Título: O conceito de pessoa moral como critério para análise do aborto provocado: considerações interdisciplinares Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de mestre em Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito Orientadora: Professora Doutora Mara Regina de Oliveira Aprovado em: / / Banca Examinadora Prof. Dr.:_____________________________________________________ Instituição:____________________________Assinatura__________________ Prof. Dr.:_____________________________________________________ Instituição:____________________________Assinatura__________________ Prof. Dr.:_____________________________________________________ Instituição:____________________________Assinatura__________________ II Aos meus pais, que mesmo sem a oportunidade de estudar, foram exímios educadores, instigando a cada dia nas descobertas e no aprendizado; À minha irmã, grande amiga; À Professora Mara Regina de Oliveira que, além de orientar efetivamente nessa caminhada acadêmica, incentivou uma nova forma de raciocínio, mostrando a estreita relação que existe entre a Arte e o Direito; Aos amigos e colegas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que me acompanharam de modo estimulante no desenvolvimento desse projeto. III RESUMO ORTEGA, Luciano Correa. O conceito de pessoa moral como critério para análise do aborto provocado: considerações interdisciplinares. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011. O presente estudo tem por escopo investigar o conceito de pessoa moral, e as implicações éticas e jurídicas em considerá-lo como critério de análise nas discussões bioéticas referentes ao aborto, afastando-se, desta forma, do parâmetro estrito da vida biológica, que paira sobre os debates. Assim, o trabalho tem por fundamento metodológico uma abordagem interdisciplinar com predomínio do enfoque zetético-jurídico, valendo-se da inserção de filmes referentes ao assunto e da linguagem logopática do cinema como forma de expandir o objeto de conhecimento, o que colabora para a apreensão afetiva de uma questão humana que envolve em seu interior uma decisão pautada por um conflito ético- jurídico. Palavras-chave: pessoa, aborto, moralidade, cinema, relativismo. IV ABSTRACT ORTEGA, Luciano Correa. The concept of moral person as a criterion for induced abortion’s analysis: interdisciplinary considerations. Dissertation (Master’s). Faculty of Law, University of São Paulo. São Paulo, 2011. This work has the aim of studying the concept of moral person, and its moral and legal implications as considering it as a criterion for analysis in bioethical discussions concerning abortion, deviating, in this way, of the strict parameter of biological life, that hovers upon the pleadings. Thus, this work has as methodological foundation an interdisciplinary approach with predominance of legal-zetetic focus, inserting movies related to this issue and logopatic language of cinema as a means of expanding knowledge matter, which helps us comprehend an affective sense of a human question intrinsically connected to a decision of an ethical-legal conflict. Keywords: person, abortion, morality, cinema, relativism V Sumário Introdução...............................................................................................................................1 CAPÍTULO 1 - INTERDISCIPLINARIDADE E CONHECIMENTO: DIREITO, BIOÉTICA E CINEMA.......................................................................................................11 1.1. Considerações iniciais...................................................................................................11 1.2. Precisão terminológica: o estudo interdisciplinar.........................................................16 1.3. A crise das ciências?......................................................................................................19 1.4. Justificativas e métodos da interdisciplinaridade..........................................................25 1.5. Principais diálogos estabelecidos nessa pesquisa..........................................................28 CAPÍTULO 2 - O ABORTO EM CENA.............................................................................31 2.1. Apresentação do problema e considerações metodológicas..........................................31 2.2. O aborto provocado e a emergência dos direitos reprodutivos: o cerne da decisão – a maternidade e suas redefinições...........................................................................................41 2.3. A cultura do aborto sob o enfoque da teoria pragmático-jurídica da comunicação......47 2.4. O aborto na cultura........................................................................................................53 2.5. Análise do filme Regras da vida...................................................................................56 CAPÍTULO 3 - RELATIVISMO E UNIVERSALISMO MORAL: O PROBLEMA DO ABORTO..............................................................................................................................64 3.1. Um mundo de valores....................................................................................................72 3.2. Moral, Ética, moralidade e eticidade.............................................................................78 3.3. Direito e Moral..............................................................................................................83 3.3.1. Breve panorama histórico...........................................................................................86 3.3.2. Relações entre o Direito e a Moral.............................................................................93 VI 3.4. Universalismo axiológico..............................................................................................99 3.5. Relativismo axiológico................................................................................................113 3.6. Análise do filme O segredo de Vera Drake................................................................123 3.7. Análise do filme 4 meses, 3 semanas e 2 dias............................................................134 CAPÍTULO 4 - A VIDA HUMANA: O HOMEM BIOLÓGICO.....................................143 4.1. Considerações iniciais.................................................................................................143 4.2. Início da vida: o Homo sapiens...................................................................................147 4.2.1. Concepções médico-biológicas sobre o início da vida humana: .............................149 4.2.2. Concepções biossemiótica e autopoiética sobre o início da vida.............................160 4.3. A sacralidade da vida humana.....................................................................................173 4.4. Silogismos: a argumentação lógica em defesa da vida...............................................187 4.5. Análise do documentário O grito silencioso ..............................................................191 CAPÍTULO 5 - O HOMEM PÓS-ONTOLÓGICO: A PESSOA......................................203 5.1. O conceito de pessoa: a perspectiva de Joseph Fletcher.............................................208 5.2. O Conceito de Pessoa em John Locke.........................................................................222 5.3. Pessoa: a ideia de núcleos significativos.....................................................................228 5.4. O conceito normativista de pessoa na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen..........231 5.5. Conceito tomista de pessoa.........................................................................................236 5.6. Michael Tooley e o conceito de pessoa: a teoria dos desejos e o direito à vida..........241 5.7. A pessoa biológica.......................................................................................................245 5.8. A pessoa potencial.......................................................................................................250 5.9. A pessoa moral............................................................................................................259 5.10. Análise do documentário O aborto dos outros.........................................................265 Conclusão...........................................................................................................................274 Bibliografia.........................................................................................................................277 VII Filmes e documentários.....................................................................................................286 Endereços eletrônicos indicados ou acessados..................................................................286 1 INTRODUÇÃO O Direito, inserido no universo da cultura, tem por fundamento o conceito de pessoa. Esta, em sua dignidade essencial, constitui o vértice axiológico daquele, sem o qual perdem sentido todas as relações jurídicas. Entretanto, a análise do fenômeno jurídico sob uma perspectiva histórica permite verificar que nem sempre todos os homens foram considerados pessoas. Deveras houve épocas em que a alguns se assegurava a titularidade de direitos e obrigações, enquanto outros eram equiparados à res, instrumentalizados como objetos de direito1: observa-se uma nítida separação entre pessoas e coisas, uma summa divisio entre duas categorias jurídicas. No entanto, à medida que se desenvolve o conceito de pessoa, há uma paulatina equiparação entre homem e sujeito moral, até a identificação de ambos, agora reciprocamente ligados e indissociáveis. Nesse sentido, cumpre salientar que, no pensamento jurídico grego, predominando a noção geral e abstrata, recorre-se às ideias de prósopa e hypóstase2. Numa segunda etapa da construção do conceito de pessoa, verifica-se, com Boécio e São Tomás de Aquino, a avaliação substancialista de pessoa, entendida como naturae individua substantia. A síntese dessa visão encontra-se no adágio tomista ubi homo sapiens ibi persona, o que inspiraria o desenvolvimento da concepção realista do agente moral. Seguindo a evolução do conceito, sob a influência kantiana, o homem aparece como o fim em si mesmo. Às coisas, atribui-se um preço (Preis); ao homem, dignidade (Würde). Nota-se, aqui, uma separação entre sujeito e objeto, e será com Kant e Hegel que a relação ‘sujeito-objeto’ será colocada em termos de oposição, de modo a conferir uma heterogeneidade absoluta entre estas duas realidades. Com efeito, a modernidade, que tomaria a subjetividade humana como ponto de partida de todas as suas elaborações, vai radicalizar a separação entre o ‘sujeito’ e o ‘objeto’. Aquilo que era uma distinção torna-se uma oposição. Nenhuma confusão será mais admitida entre estes dois termos e se 1 Entretanto, os escravos e servos eram reconhecidos como humanos, embora privados de todos os direitos; sujeitavam-se ao alvedrio dos senhores, como outros animais e coisas. Eram, de fato, objetos de direito. Vale salientar, ainda, que a expressão “pessoal moral” não indica, na dissertação, o mesmo que pessoa jurídica. 2 Para melhor compreensão dos termos, remetemos o leitor ao tópico denominado “Conceito tomista de pessoa” (infra, p.242). 2 assentará a validade efetiva dos direitos do homem na qualidade radical desta dividão do real 3. Mas não há uma instrumentalização do sujeito, nos moldes que ocorrera em outra época. Numa quarta etapa da elaboração do conceito de pessoa, enxerga-se o homem como o único capaz de dirigir sua vida em função de suas preferências valorativas. Por fim, vê-se a abordagem do sujeito moral em consonância com as doutrinas existencialistas4. Uma outra corrente que pode ser analisada nesse percurso é a que considera a pessoa como sendo uma categoria construída, uma “construção humana” – assim como outros conceitos o são, tal como a própria norma, cuja existência no mundo concreto jamais pode ser observada. Kelsen5 é um dos autores que aceitam a “ficção” da pessoa natural, que seria, na verdade, tão normativa como uma “pessoa jurídica”. Tal proposta é tida como polêmica no quadro dos estudos do Direito. Ao fim de todo esse desenvolvimento conceitual, consagrou-se a menção à pessoa humana, sem possibilidade de cisão entre o biológico e o agente moral, ao ponto de muitos autores associarem o princípio da personalidade ao início da vida. Ocorre que novos problemas bioéticos surgiram com o domínio de técnicas antes impensáveis, que permitiram a manipulação do próprio material genético, o prolongamento artificial da vida ou mesmo sua interrupção, o conhecimento de técnicas de diagnóstico pré-natal que tornaram o feto verdadeiro paciente, ao mesmo tempo em que possibilitaram a detecção de enfermidades incuráveis e incompatíveis com a vida extrauterina. Assim, vieram a lume outras discussões acerca do conceito de pessoa, com dissociação do ser meramente biológico (vida humana) e do ser ontológico (agente moral). Essa separação entre individualidade genética e ontológica, tomada como critério necessário para alguns na análise das questões bioéticas, acabou sendo rechaçada por outros, que a consideraram uma tentativa de romper a “unitotalidade” do homem, sendo algo arbitrário. Instala-se a polêmica, e a definição de pessoa torna-se o centro dos 3 Tradução nossa. No original, “Ce sera avec Kant et Hegel que la relation ‘sujet-objet’ será posée en termes d’opposition, de façon à assurer une hétérogénéité absolue entre ces deux realités. En effet, la modernité, qui prendra la subjectivité humaine comme point de départ de touts ses élaborations, va radicaliser la séparation entre le ‘sujet’ et le ‘objet’. Ce qui n’était qu’une distinction deviendra une opposition. Nulle confusion ne será désormais admissible entre ces deux termes car il en va de la validité effective des droits de l’homme dans le caractère radical de cette bipartition du réel”. ANDORNO, Roberto. La distinction juridique entre les personnes et les choses à l’épreuve des procréations artificielles. Paris: L. G. D. J., t. 263, 1996. 4 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2001. 5 ANDORNO, Roberto. Op. cit., p. 147. Assim Savigny, Glucke, Marcadé. Ainda de acordo com a teoria da ficção, cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 188-213.
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