magistris meis et vivis et mortuis Seria uma espécie de impiedade, e quase uma calúnia à natureza humana, crer que existe alguma profissão ou atividade estabelecida e respeitável em que o homem não possa continuar a agir com honestidade e honra; e, analogamente, sem dúvida não existe nenhuma que não possa vez por outra apresentar tentações em contrário. Samuel Taylor Coleridge, Biographia Literaria, 1817 Sumário Prefácio 1. Morre o duelo 2. A libertação dos pés chineses 3. O fim da escravidão atlântica 4. Guerras contra mulheres 5. Lições e legados Agradecimentos e fontes Notas Prefácio Este livro começou com uma questão simples: o que podemos aprender sobre a moral examinando revoluções morais? Fiz essa pergunta porque historiadores e filósofos têm descoberto muito sobre a ciência com o estudo cuidadoso das revoluções científicas. Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, por exemplo, chegaram a conclusões fascinantes examinando a Revolução Científica do século xvii — que nos deu Galileu, Copérnico e Newton — e a revolução mais recente que nos trouxe as assombrosas teorias da física quântica. Sem dúvida, o desenvolvimento do saber científico gerou uma explosão tecnológica maciça. Mas o espírito que move a ciência não é transformar o mundo, e sim entendê-lo. A moral, por outro lado — como insistiu Immanuel Kant —, é, em última análise, prática: moralmente, importa o que pensamos e sentimos, mas a moral, em sua essência, está no que fazemos. Portanto, como uma revolução é uma grande mudança em pouco tempo, uma revolução moral tem de incluir uma rápida transformação no comportamento moral, e não só nos sentimentos morais. Ainda assim, ao final da revolução moral, como ao final de uma revolução científica, as coisas parecem novas. Olhando para trás, mesmo que apenas uma geração, as pessoas exclamam: “O que estávamos pensando? Como fizemos isso por tantos anos?”. Então comecei a examinar várias revoluções morais, vendo o que elas poderiam ensinar. Quase de imediato percebi que os casos avulsos que estava olhando — o fim do duelo, o abandono da prática de amarrar os pés, o término da escravidão atlântica — tinham alguns traços inesperados em comum. Um deles era que as objeções contra todas essas práticas tinham sido claramente explicitadas e eram bem conhecidas muito antes de serem abolidas. Os argumentos já estavam lá, e em termos que, em outras culturas ou outras épocas, ainda podemos reconhecer e entender. Ao que me parece, independentemente do que tenha acontecido para que essas práticas imorais cessassem, não foi porque as pessoas se sentiram vencidas por novos argumentos morais. O duelo sempre foi mortífero e irracional; a amarração dos pés sempre foi dolorosamente deformadora; a escravidão sempre foi um ataque à humanidade do escravo. Foi uma surpresa sobre o que não aconteceu. A segunda — e, para mim, muito mais surpreendente — observação foi o que aconteceu: em todas essas transições, algo a que naturalmente se chamava de “honra” teve um papel central. Isso levou à pesquisa cujos resultados estão reunidos neste livro. Não admira, claro, que o duelo tivesse relação com a honra, nem que o fim dos duelos trouxesse novas ideias sobre ela. Mas o que realmente admira, a meu ver, é que as ideias sobre a honra nacional e a honra de trabalhadores muito distantes nas fazendas do Novo Mundo aparecessem com tanto destaque ao término do enfaixamento dos pés e da escravidão moderna, respectivamente. Percebi que essas questões também estavam imediatamente ligadas a temas referentes ao papel de nossas identidades sociais — homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais, americanos e ganenses, cristãos, muçulmanos e judeus —, moldando nossos sentimentos e escolhas. Num livro anterior, já examinei algumas das maneiras como as identificações com a família, o grupo étnico, a religião e a nação podem criar vínculos mútuos de orgulho e vergonha. Assim, talvez eu estivesse especialmente preparado para enxergar as ligações entre honra e identidade que estão no cerne das revoluções morais abordadas a seguir. Essa me parece uma conexão muito digna de nota. A identidade liga essas revoluções morais a um aspecto da nossa psicologia humana que os filósofos morais de língua inglesa negligenciaram por muito tempo, embora venha recebendo mais atenção na filosofia moral e política recente: nossa profunda e constante preocupação com a posição social e o respeito, nossa necessidade humana daquilo que Georg Wilhelm Friedrich Hegel chamou de Anerkennung — reconhecimento. Nós, seres humanos, precisamos que os outros respondam apropriadamente ao que somos e ao que fazemos. Precisamos que os outros nos reconheçam como seres conscientes e percebam que nós também os reconhecemos assim. Quando você avista outra pessoa na rua e seus olhos se encontram num mútuo reconhecimento, ambos estão expressando uma necessidade humana fundamental e ambos estão respondendo — instantaneamente, sem esforço — àquela necessidade que cada um identifica no outro. O trecho mais famoso de Hegel sobre a luta pelo reconhecimento aparece quando ele analisa a relação entre o senhor e o escravo na Fenomenologia do espírito. Imagino que ele não se surpreenderia que uma parcela da energia dos movimentos abolicionistas procedesse da busca de reconhecimento. Assim, minha pesquisa me levou a um ponto um tanto inesperado: agora quero reivindicar um lugar central para a honra em nossas reflexões sobre o que é viver uma boa vida humana. Aristóteles pensava que a melhor vida é aquela na qual se alcança algo a que ele chamava de eudaimonia, e deu ao estudo da eudaimonia o nome de “ética”. Penso que este livro é uma contribuição à ética no sentido aristotélico, que é o sentido em que pretendo usar a palavra. Eudaimonia tem sido enganosamente traduzido como “felicidade”, mas capta- se melhor o significado pretendido por Aristóteles definindo eudaimonia como “florescer”. E eu explicaria florescer como “viver bem”, desde que não se pense que a única coisa necessária para viver bem é ser bom com seus semelhantes. Os valores que nos guiam para decidir o que devemos aos outros formam um subconjunto dos diversos valores que guiam nossas vidas, e considero razoável denominar esse conjunto específico de valores como valor moral. Neste sentido, o duelo, o enfaixamento dos pés e a escravidão são, obviamente, questões morais. (Nega-se aos escravos, às mulheres de pés amarrados e aos duelistas mortos aquilo que lhes cabe.) Ainda neste sentido, a moral é, evidentemente, uma dimensão importante da ética: fazer o que devo aos outros faz parte do viver bem, e um dos traços característicos dos últimos séculos é o reconhecimento cada vez maior das obrigações de cada um de nós em relação às outras pessoas. Mas uma vida boa, além de ser moralmente boa, envolve muitas outras coisas; e a filosofia vive na tentação constante de reduzir a grande multiplicidade das coisas que permitem uma boa vida humana. Uma vida boa geralmente inclui relações com a família e os amigos, regidas não só pelo que devemos aos outros, mas também pelo que lhes damos espontaneamente por amor. Nossas vidas, na maioria dos casos, também se tornam melhores com a atividade social. Participamos de uma igreja ou de um templo; jogamos ou assistimos a jogos juntos; envolvemo-nos na política local e nacional. E nos beneficiamos também do contato com algumas das inúmeras coisas valiosas na experiência humana, entre elas a música, a literatura, o cinema e as artes visuais, além da participação nos tipos de projetos que escolhemos para nós, como aprender a cozinhar bem, cultivar um jardim, estudar a história de nossas famílias. Existem muitas espécies de bem humano. Uma das formas de começar a entender por que a honra tem importância para a ética é reconhecer as relações entre a honra e o respeito, já que o respeito e o respeito próprio também são bens humanos nitidamente fundamentais; somam- se à eudaimonia e nos ajudam a viver bem. Passei um bom tempo de minha vida acadêmica tentando fazer com que meus colegas de filosofia reconhecessem a importância teórica e prática de coisas a que talvez dessem pouca atenção: raça e etnia, sexo e sexualidade, nacionalidade e religião — enfim, todas essas ricas identidades sociais com as quais compomos nossas vidas. A honra, por sua vez, é outro tópico essencial pouco estudado pela filosofia moral moderna. E é essencial porque, tal como nossas identidades sociais, ela cria uma conexão entre nossas vidas. A atenção à honra, assim como à importância de nossas identidades sociais, também pode nos ajudar a tratar os outros como devemos e a viver melhor nossa própria vida. Antigamente os filósofos sabiam disso — veja, por exemplo, Montesquieu, Adam Smith ou, ainda, o próprio Aristóteles. Mas, se o “respeito” e o “respeito próprio” estão em alta na filosofia contemporânea, o conceito de “honra” — relacionado mas distinto — parece bastante esquecido. É hora, acredito, de devolver a honra à filosofia. Os episódios históricos apresentados neste livro ilustram — e, deste modo, permitem que exploremos — diversas características da forma de atuação da honra no tempo e no espaço. Cada uma delas nos possibilita acrescentar elementos ao quadro. Numa jornada da Inglaterra à China e depois voltando ao mundo atlântico, podemos captar as várias dimensões da honra com mais profundidade. Não são três histórias locais separadas, mas fios de uma mesma história humana, que diz respeito às pessoas em Cingapura, Mumbai e no Rio de Janeiro tanto quanto às pessoas que estão em Los Angeles, na Cidade do Cabo ou em Berlim. E tenho certeza de que em todos esses lugares, a despeito das variações locais sobre os temas da honra, encontraríamos episódios que nos ensinariam as mesmas lições. No entanto, meu objetivo não é apenas entender outros povos, outros tempos e outros lugares, mas também iluminar nossa vida hoje. Mais especificamente, quero usar as lições que podemos tirar do passado para levantar um dos problemas mais espinhosos que a honra apresenta ao mundo contemporâneo: o assassinato de meninas e mulheres em nome da honra. Quando formos ao Paquistão, no capítulo 4, estaremos prontos para entender e enfrentar um dos lados sombrios da honra; e, tal como nos casos históricos, as lições que aprendemos num lugar se aplicam a outros. Concentro-me no Paquistão, mas desde já é importante deixar claro que esse país não é, nem de longe, o único onde hoje ocorrem assassinatos por honra. O crime de honra não é a única forma como a honra é utilizada na atualidade, e meu objetivo no último capítulo é indicar de que maneira a compreensão da honra pode nos ajudar a lidar com outros problemas contemporâneos. “O que eles estavam pensando?”, perguntamos sobre nossos antepassados; mas sabemos que, daqui a um século, nossos descendentes perguntarão a mesma coisa a nosso respeito. Quem sabe o que lhes parecerá mais estranho? Os Estados Unidos têm 1% de sua população encarcerada e submetem muitos milhares de prisioneiros a anos de confinamento numa solitária. Na Arábia Saudita, as mulheres não podem dirigir. Existem países onde hoje a homossexualidade é punida com prisão perpétua ou condenação à morte. E há também a realidade do confinamento na pecuária e na avicultura industrial, em que centenas de milhões de mamíferos e bilhões de aves têm uma existência curta e miserável. Ou, ainda, a extrema pobreza, tolerada dentro e fora do mundo desenvolvido. Um dia, as pessoas vão se pegar pensando que não só uma antiga prática era errada e a nova é certa, mas também que havia algo de vergonhoso nos velhos usos. Durante a transição, muitos modificarão seus hábitos porque sentem vergonha da antiga maneira de fazer as coisas. Assim, talvez não seja demais esperar que, se encontrarmos já o lugar adequado da honra, podemos melhorar o mundo. Este livro pretende explicar a honra para nos ajudar a reconhecer sua importância constante para cada um de nós.
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