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O Beijo Não Vem da Boca PDF

410 Pages·2012·1.82 MB·Portuguese
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Ignácio de Loyola Bandão O BEIJO NÃO VEM DA BOCA 1ª edição digital São Paulo 2012 Para Luciana Wilmers e Anna (Terra) Maria Magalhães, que não são personagens, mas me emprestaram seus nomes. E ainda para Vera Rangel, Hebe e Humberto Pereira, Jacqueline Joner, Lu Franco, Anaelena e Cristina, meninas da Livraria Capitu. E ao carinho da gente do Anglo, de São José do Rio Preto. O Brasil se derrete ao sol como imensa bola de sorvete. O rosto da tia serpente sobre uma nuvem de fogo e o bilhete amassado no fundo do bolso: “No escuro do cinema sentia o teu hálito recendendo a Fruitela. Era bom. O paraíso”. Estava apaixonado, tinha coragem de enfrentar frases banais. No avião, ele cochilou, a cabeça tombou, desapareceu o ronco surdo das turbinas, substituído pelo rumor das patas de cavalos. Centenas de animais batendo cascos ferrados nos paralelepípedos. Entre as patas o rosto da tia serpente, o que era estranho. Nunca tinha visto o rosto dela. As fotos desapareceram, queimadas com a casa. A tensão ficou insuportável quando o Passat branco se equilibrou na asa do Boeing e ele acordou em pânico por ter cedido ao sono impossível. Atemorizado gritou: “Ele morreu? Diga que não! Meu filho não morreu enquanto eu dormia”. FINAL FELIZ/O QUE É ISSO? – Você ouviu bem. Quero um final feliz. Luciana segurava a porta do elevador. Ele estava saindo, ia buscar as passagens para Berlim. – Acha que pode ser comigo? – Não acho nada. Só que mereço um final feliz. Não aguento mais. Não dá pé suportar as coisas como estão. Chega! Ah, como sonho! Preciso de um final feliz! – Mas... vai comigo para Berlim? – Não sei, não sei nada. – Pode ser que não vá...? QUANDO O AVIÃO DEIXOU SÃO PAULO, ELE OLHOU PARA BAIXO, APANHOU A CÂMERA E GRAVOU. O Brasil se dissolvendo ao sol, lambido pelas musas de verão, enquanto o povo tentava vantagem munido de colherinhas de sobremesa que mal enchiam a boca de um recém-nascido. Sorvete aveludado de frutas típicas. Cheiros fortes, tropicais. Jaca, manga, mangaba, banana, goiaba, buriti, tamarindo, açaí, abacaxi, graviola, umbu, laranja, carambola, maracujá, cupuaçu. Sabores mulatos, exóticos. Produtos de um país onde tudo deu, porque foi plantado. E arrancado. Banana-split gigantesco e multicolorido, consumido ao som de Gil, Milton, Blitz, Roberto Carlos, Elba Ramalho, Barão Vermelho, Gal, Milionário e Zé Rico, Ultraje a Rigor, Stones, Beatles, Arrigo Barnabé, Teixeirinha, Nelson Ned, Chico Buarque! Brasileirinhos desnutridos, crucificados em estado de emergência, observados por ministros sarcásticos cujas bocas automáticas dizem/desdizem, verdades/mentiras, calados através de porta-vozes presidenciais, lambuzados de marshmallow, cheirando a cobertura de chocolate, morango e baunilha. Adeus, minha terra. Por quanto tempo? Você bem sabe. Não pode dormir. Nunca mais. Acordado até a eternidade. Há quanto tempo vem tentando um sono gostoso, manso, que deixa de bem com o mundo? Sem conseguir. Mesmo com todos os comprimidos que inventaram para colocar a nocaute. Nenhum é suficientemente forte para você. Agora, responda, se é que pode! Quanto tempo seu organismo vai resistir? Vai ver, seu corpo mudou, adaptou-se a cochilos ocasionais. É através deles que sobrevive, deixando esse rosto cheio de olheiras, ar abatido. Corpo de um derrotado. Quem sabe os fracassos que vêm acontecendo em sua vida tenham origem nessa derrocada que se aprofunda e ninguém consegue resolver? Se ao menos alguém conseguisse remover a determinação que você tem de não ir ao analista. Se fosse possível demovê-lo do ódio aos terapeutas, talvez se pudesse inverter o rumo desse voo cego. A impossibilidade de dormir. O perigo que representa o sono. Obsessão que não abandona seu pensamento, flutua sobre a cabeça como auréola de santo. Vai carregar essa culpa, sente-se responsável pelo que aconteceu. Ainda que todos tenham dito e repetido. Dos médicos aos amigos mais chegados. O que houve foi inevitável. Não existe homem no mundo que resista a uma semana de vigília, sem pregar os olhos. Bastou aquele cabecear. Você achou que cinco minutos não fariam mal, cedeu. Rolou da cadeira, desmaiado. Quando despertou, tinha terminado. Lembre-se, você estava só, carregava tudo nas costas. Imaginava-se super-homem? Depois surgiu a sensação de inutilidade que te acompanha por toda parte e que você tem certeza pode se diluir na Alemanha. Nessa Berlim desconhecida que vai enfrentar, atraído pela enrascada que é um país sobre o qual nada se sabe, nem conhece a língua. Uma gente que te provoca preconceito e medo. Quer combater medo com medo. Fazer do temor um antídoto. EM BERLIM, NO PSEUDOSNOB CAFÉ EINSTEIN, SENTADOS DIANTE DA MESA DIMINUTA, RODEADOS POR PAREDES DE LAMBRIS DE MADEIRA ENVELHECIDA (O QUE É VELHO E O QUE É RESTAURADO NESSA CIDADE?), SOB LUSTRES DO INÍCIO DO SÉCULO, ELE OUVE DE LUCIANA A PERGUNTA QUE O INCOMODA COMO O NERVO EXPOSTO DE UM DENTE. – Descobriu? – O quê? – O que venho perguntando há dias e dias. – Você pergunta tanta coisa. Não faz mais nada senão perguntar. – O que eu queria saber, antes de embarcar? – Nunca houve muita coisa que você quisesse saber a nosso respeito. – Afinal, o que estamos fazendo em Berlim? SOZINHO DIANTE DO APARELHO, GRAVANDO A FITA QUE RECEBEU O NÚMERO 30. ORGANIZADO, DISCIPLINADO, METÓDICO, ELE TEM TUDO SISTEMATIZADO. O Brasil desapareceu. A câmera não registrou nada. A visão avassaladora do país se dissolvendo sumiu e a minha ansiedade aumentou. A montanha gelada vai retornar, vem me acompanhando desde que o avião decolou e pensei em todas as coisas acontecidas. O medo de não poder voltar. Pavor de que o Brasil não passe de miragem, fantasia, novela das oito que sai do ar depois de 180 capítulos, mito indígena recolhido nas Índias Orientais por viajantes europeus do século XVI, criação dos surrealistas, um filme de Buñuel-Dalí-Glauber-Tanguy- Sganzerla-Magritte. Videogame cuja programação pode ser apagada. Naquele momento percebi o sorvete de frutas envolvendo São Paulo, decompondo os horrorosos arranha-céus da Avenida Paulista, as pirâmides de concreto do Banco de Tóquio, o Banco da Argentina, o Banco da Espanha, da Inglaterra, da Itália, e não me senti brasileiro. O que é ser brasileiro? Tomar desse sorvete? Falar português? Levar vantagem, guardar dólar para valorizar, aceitar a inflação, aplicar no open, invejar a corrupção impune, usar tanga minúscula exibindo os pentelhos, saber estourar pipoca, jogar na loto, saber com quem está falando, procurar mordomia, assistir ao Fantástico, ter caderneta de poupança, tomar rabo de galo, achar caipirinha de vodca o máximo, fritar linguiça de porco, não pagar prestação da casa própria, pendurar-se num emprego público, ter sucesso, adorar voleibol, ter todos os cartões de crédito, comer abobrinha, mandioca frita, dar um jeitinho, ter um contrabandista amigo para as bebidas, curtir o carnaval, usar jeans com griffe estrangeira, fingir que não se incomoda com o que a Roberta Close tem no meio das pernas, ter fé em Nossa Senhora Aparecida, ser doutor, mentir como o governo, acreditar na macumba, sacanear, desmentir como o governo, devorar dobradinha às quartas-feiras e feijoada aos sábados, adorar bundonas, dizer que come todas as mulheres, acreditar que ninguém pode com o brasileiro? Quando o avião subiu, eu não era nada. Não estava no Brasil, e não tinha chegado a parte alguma. Fazia semanas que vacilava em total indiferença, mantido em pé pela obsessão de partir. Como é? Vai embora? Logo você? O ano promete agitação, vai ser o nosso ano, pense só na campanha, no barulho com as eleições de novembro. Vamos levar esses militares de volta aos quartéis. Como pensa que pode ficar fora do processo de mudança? Você, logo você? Não, tem de ficar. Quem sou eu? Conhecem minhas mentiras, mistificações, meu crime, meu processo de sedução, tudo que invento e crio em torno de mim? Amigos me pressionavam, leitores mandavam cartas. Parti, deixando o país a se lamber, na esperança total. Depois de vinte anos, uma eleição de importância. No entanto, eu duvidava de minha existência. Estava seguro de que não havia país algum, tinha certeza de um golpe antes das eleições pelas Diretas-Já. Estava cagando para tudo. Trazia na cabeça o Passat branco, parado embaixo da janela, na madrugada. Confirmação lancinante de minhas dúvidas, ponto-final. A certeza é uma coisa odiosa. A dúvida embala como um berço; dormimos acreditando que ontem estávamos enganados. CAFÉ EINSTEIN – Descobriu? Ela repetiu a pergunta, enquanto ele observava, perplexo, o cabide onde os clientes apanhavam jornais, levando para as mesas. Süddeutsche Zeitung, Die Zeit, Der Spiegel, Die Welt, Zitty, Frankfurter Rundschau, Tip, Der Tagesspiegel. Indiferente à pergunta. Imaginando se um dia penetraria nessa língua espessa, rascante, a ponto de ler jornais e revistas e os milhares de livros em belíssimas edições pelos quais se apaixonava em cada livraria. Estava em Berlim havia duas semanas e sentia necessidade de saber o que acontecia no mundo. Deformação normal, provocada por uma carreira jornalística abandonada cinco anos atrás, paralisado de medo, mas com absoluta convicção de que era o momento. Não aproveitasse a demissão casual, motivada pelo fechamento da revista que dirigia, nunca mais teria outra chance de se encarar como escritor, tentar viver em total disponibilidade, sem continuar alugando a cabeça a patrões. REPLAY DA FITA 19. SÃO PAULO. O dono da editora, sem jeito: “Não quero te mandar embora, só não sei onde aproveitá-lo. Acredite, você interessa à casa”. Interessava na medida em que ele tinha nome como escritor. Não ganhava um tostão com os livros, todavia aparecia nos jornais, frequentava a televisão. Foi antes de se tornar também autor de telenovelas. Muito antes de conseguir que o país inteiro parasse, uma noite, das oito às nove, para assistir ao último capítulo de sua novela. “Me demita”, ele disse (inteiramente apavorado). Primeira vez em vinte e cinco anos que perdia emprego. Sempre tinha vivido ameaçado em jornais, as crises eram constantes, porém nunca chegara a ficar na rua. Agora estava à beira dela. Com duas filhas crescidas na escola e a pensão da ex-mulher. Uma tarde caminhou como androide até o banco para retirar o Fundo de Garantia, percebeu que tinham roubado nas contas e à noite foi participar de uma assembleia, no sindicato. Não sabia direito para quê, era um tempo em que havia assembleia por tudo. Queria encontrar as pessoas, ver as caras dos jornalistas. Uma compulsão, olhar o rosto de companheiros empregados. Editores de outras revistas bateram em suas costas, “me procure, podemos fazer alguma coisa juntos”. Cedesse, nunca mais se libertaria da imprensa,

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Depois de quarenta anos de atividade literária, com uma obra que se caracteriza pelo pessimismo e o sarcasmo, Ignácio de Loyola Brandão publicou um inesperado romance de amor com final feliz. O Beijo Não Vem da Boca aborda, em forma de ficção, sem a pretensão de respondê-la,
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