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O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia 1 PDF

216 Pages·2004·15.292 MB·Portuguese
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o ANTI-ÉDIPO CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA 1 GILLES DELEUZE FÉLIX GUATTARI o ANTI-ÉDIPO CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA 1 tradução deJoana Moraes Varela eManuel Maria Carrilho ASSÍRIO & ALVIM CAPÍTULO 1 AS MÁQUINAS DESEJANTES Is-~~unciona por toda aparte: umas vezes sem parar, outras descontinuamente. Isto respira, isto aquece, isto come. Isto caga, isto fode. Mas que asneira ter dito o isto*. O que há por toda a parte são mas é máquinas, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com as suas ligaçóes e conexões. Uma máquina-órgão está ligada a uma máquina-origem: uma emite o fluxo que aoutra corta. O seio é uma máquina de produzir leite eaboca uma máquina que seliga com ela. A boca do anoréxico hesita entre uma máquina de comer, uma máquina de falar, uma máquina de respirar (ataque de asma). Éassim que todos somos «bricoleurs}}**, cada um com assuas pequenas máquinas. Uma máquina-órgão para uma máqui- na-energia, e sempre fluxos e cortes. O presidente Schreber telTIraios de sol no cu. Ânus solar. E podem ter a certeza que isto funciona. O presidente Schreber sente qualquer coisa, produz alguma coisa, eêcapaz de o teorizar. Algo seproduz: efeitos de máquinas e não metáforas. O passeio do esquizofrênico: é um modelo muito melhor que o neurótico TíTULO OR1G1NAL: deitado no divã. Um pouco de ar livre, uma relação com o exterior. Por exemplo, L/1,iI,'TI-U:.D1PE. CAPfTALlSME EFSCHIZUN-fREiVif' o passeio de Lenz reconstituído por Büchner. Éalgo de muito diferente dos mo- mentos em que Lenzl está em casa do seu bom pastor que o obriga a tomar uma G 1')72 by [FS l'[}IT!ONS DE M.!NUr! posição social em relação ao Deus da religião, em relação ao' pai e à mãe. Nas ©AS~rRI() &AIVIM montanhas, pelo contrário, sob a neve, ele está com outros deuses ou sem deus IW,\ PASSOS MANUF1" G7fi, Il~O-2'jHUSBOA (20n4) KA CONTRACAPA: D..ol,".lCERAU {JANGFR, MAN RAY,Ino *[Çano original. Em francês épossívelfazerumjogo polissémico emre oça(isto) eoçafreudiano (id), EOIÇAO 0403, JUNHO 2004 ISBNY:2-)701RI-1 jogo que éimpossível mamer em português.] *'"' [Brico!age, élima palavra intraduzÍvel emportuguês que designa oaproveitamento decoisas usadas, partidas, ou cuja utilização semodifica adaptando-as aou(ras funções.] IConforme otexto de 8üchner, Lenz, tradução francesa Ed. Fomaine. o li ANTI-ÉDIPO AS MÁQUINAS DESEJANTES 9 nenhum, sem família, sem pai nem mãe, com a natureza. (,Que quer o meu pai? No fim de Malone meurt, a senhora Pédale leva os esquiwfrénicos a dar um pas- I' impossível que ele me possa dar algo melhor. Deixem-me em paz." Tudo é seio, a andar de charabã, de barco, a fazer um piquenique na natureza: está-se a máquina. Máquinas celestes, as estrelas ou o arco-íris, máquinas alpestres que se preparar uma máquina infernal. ligam com as do seu corpo. Barulho ininterrupto de máquinas. «Pensava que devia ser um sentimento de uma infinita beatitude o ser tocado pela vida profun- Debaixo da pele o corpo é uma fábrica a ferver, da de qualquer forma, ter uma alma para aspedras, os metais, aágua easplantas. e por fora, acolher em si todos os objectos da natureza, sonhadoramente, como as flores o doenre brilha, absorvem oarcom o crescimento eominguar da lua.» Ser uma máquina clorofílica reluz, ou de fotossíntese ou, pelo menos, fazer do corpo uma peça de tais máquinas. com todos os poros, Lenz colocou-se para cá da distinção homem-natureza, com todas as caracterÍsti- esrilhaçados2 cas que esta distinção condiciona. Não vive anatureza como natureza, mas como processo de produção. Já não há nem homem nem natureza, mas unicamente um Não pretendemos estabelecer um pólo naturalista da esquizofrenia. O que o processo que os produz um no outro, e liga as máquinas. Há por todo o lado esquizofrênico vive especificamente, genericamente, não é, de maneira nenhuma, máquinas produtoras ou desejantes, máquinas esquizofrénicas, toda avida gené- um pólo especifico da natureza, mas a natureza como processo de produção. E o rica: eu e não-eu, exterior e interior, já nada querem dizer. que éque aqui significa processo? Éprovável que, a um certo nível, a natureza se Continuação do passeio do esquizofrénico, quando aspersonagens de Beckett decidem sair. Épreciso ver, em primeiro lugar, como o seu percurso variado éjá distinga da indústria: por um lado, a indústria opõe-se à natureza, por outro uma máquina minuciosa. E depois, a bicicleta: que relação há entre a máquina transforma os seus mareriais, por outro restitui-lhe os seus detritos, etc. Esta rela- bicicleta-buzina e a máquina mãe-ânus? «Que descanso falar de bicicletas e de ção homem-natureza, indústria-natureza, sociedade-natureza, condiciona, na pró- buzinas. Infelizmente não édisto que setrata mas daquela que me deu àluz, pelo pria sociedade, a distinção de esferas relativamente autónomas a que chamamos buraco do cu, se não me engano.» Acredita-se muitas vezes que o Édipo é algo de «produção~>, «distribuição}>, ({consumo», Mas este nível de distinções gerais, con- fácil, de dado. Mas não é assim: O Édipo supõe uma fantástica repressão das má- siderado na sua estrutura formal desenvolvida, pressupõe (como Marx o demons- quinas desejantes. E porquê, com que fim? Será mesmo necessário ou desejável trou) não só o capital eadivisão do trabalho, mas também afalsa consciência que sujeitar-nos aisso?E com quê? O que éque havemos de pôr no triangulo edipiano, o ser capitalista tem necessariamente de si e dos elementos cristalizados de um com que é que o vamos formar? A buzina da bicicleta e o cu da minha mãe processo de conjunto. Porque na verdade - espantosa enegra verdade que surge chegarão? Não haverá questões mais importantes? Dado um determinado efeito, no delírio - não há esferas nem circuitos relativamente independentes: aprodu- quaÍ éa máquina que o pode produzir? e, dada uma máquina, para que êque ela ção é imediatamente consumo eregisto, o consumo eo registo determinam direc- serve? Adivinhem, por exemplo, pela descrição geométrica de um faqueiro, a sua tamente a produção, mas determinam-na no seio da própria produção . .Qe tal urilidade. Ou emão, face a uma máquina complera formada por seis pedras no modo que tudo éprodução: produção deproduções, de acções ede reacções; produ- bolso direiro do meu casaco (o bolso que debita), cinco no bolso direiro das mi- çõesde registos,de disrribuições e de pomos de referência; produções de consumos, nhas calças, cinco no bolso esquerdo das minhas calças (os bolsos de transmissão), de volúpias, de angústias edores. Tudo éprodução: os registos são imediatamente recebendo o último bolso do meu casaco as pedras utilizadas à medida que as outras avançam, qual é o efeito deste circuito de distribuição em que a própria boca seinsere como máquina de chupar aspedras? Qual será aprodução de volúpia? ).Artaud, Van Gogh tesuicidé deiasociété. o 10 ANTI-ÉDIPO AS MÁQUINAS DESEJANTES 11 consumidos, destruídos, eos consumos direcramenre reproduzidos3• Éeste o pri- perece[»S. A esquizofrenia écomo o amor: não existe nenhuma especificidade ou meiro sentido do processo: inserir o registo e o consumo na própria produção, entidade esquizofrénica, a esquizofrenia é> o universo das máquinas desejantes torná-los produções de um mesmo processo. produwras ereprodutoras, a universal produção primária como «realidade essen- Em segundo lugar, desaparece também a distinção homem/natureza: a es- cial do homem e da natureza». sência humana da natureza e a essência natural do homem identificam-se na na- As máquinas desejantes são máquinas binárias, de regra binária ou regime tureza como produção ou indústria, isto é, afmaI, na vida genérica do homem. A associativo; uma máquina está sempre ligada a outra. A síntese produtiva, apro- indústria deixa assim de serentendida numa relação extrínseca de utilidade para o dução de produção, tem uma forma conectiva: «el),«edepois» ... Éque há sempre ser na sua identidade fundamental com a natureza como produção do homem e uma máquina produtora de um fluxo e uma outra que se lhe une, realizando um pelo homem4, Não o homem como rei da criação, mas aquele que é tocado pela corte, uma extracção de fluxos (o seio/a boca). E como a primeira, por sua vez, vida profunda de todas as formas e gêneros, o encarregado das estrelas e até dos está ligada a outra relativamente à qual se comporta como corte ou extracção, a animais que não pára de ligar máquinas-órgãos a máquinas-energia, uma árvore série binária é linear em todas asdirecções. O desejo faz constantemente aligação no corpo, um seio na boca, o sol no cu: o eterno encarregado das máquinas do de fluxos contínuos e de objectos parciais essencialmente fragmentários e frag- universo. Éo segundo sentido de processo; homem e natureza não são dois ter- mentados. O desejo faz correr, corre e corta. «Amo tudo o que corre, mesmo o mos distintos, um em face do outro, ainda que tomados numa rdação de causação) fluxo menstrual que arrasta os ovos não fecundados», diz Miller no seu cântico do de compreensão ou de expressão (causa/efeito, sujeit%bjecto, etc.), mas uma s6 desej06. Bolsa das águas e cálculo dos rins; fluxo de cabelo, fluxo de saliva, fluxo emesma realidade essencial: ado produror edo produro. A produção como pro- de esperma, de merda ou de mijo, que são produzidos por objectos parciais, sem- cesso não cabe nas categorias ideais eforma um ciclo cujo princípio imanente éo pre cortados por outros objectos parciais que, por sua vez, produzem outros flu- desejo. Épor isto que a produção desejante é a categoria efectiva de uma psiqui- xos, que são ainda re-cortados por outros objectos parciais. Qualquer <~objecto» atria materialista que entende e trata o esquizo como Homo natura. Com uma supõe a continuidade de um fluxo, equalquer fluxo afragmentação de um objec- condição, no entanto, que constitui o terceiro sentido de processo: este não deve to. Não há dúvida que cada máquina-órgão interpreta o mundo inteiro a partir ser tomado como um fim, nem deve ser confundido com a sua própria continu- do seu próprio fluxo, aparrir da energia que dela flui: o olho inrerprera rudo em ação até ao infinito. O fim do processo, ou asua continuação até ao infinito, que termos de ver - o falar, o ouvir, o cagar, o foder... Mas há sempre uma conexão é precisanlente a mesma coisa que a sua paralisação bruta e prematura, é a causa que se estabelece com outra máquina, numa transversal onde a primeira corta o do esquizofrénico artificial, tal como o vemos no hospital, farrapo autistico pro- fluxo da outra ou «vê»o seu fluxo conado. duzido como entidade. Lawrence diz do amor: «Dum processo fizemos um fim; Aligação da síntese conectiva, objecto parcial-fluxo, tem, portanto, uma outra o fim de todos os processos não é a sua continuação até ao infinito mas a sua forma: a do produto-produzir. O produzir está sempre inserido no produto - efectivação [...] O processo deve tender para asua conclusão, não para uma hor- é por esta razão que a produção desejante é produção de produção, tal como rível intensificação, para uma extremidade onde o corpo e a alma acabam por qualquer máquina é máquina de máquina. Não nos podemos contentar com a categoria idealista da expressão. Não podemos nem devemos pensar em descrever JQuando Georges Bataílle faladedespesas ouconsumos sumptuários, nâo produtivos, relativamente à o objecto esquizofrênico sem o ligar ao processo de produção. Os Cahiers de l'art energia danatureza, trata-se dedespesas ou consumos que não seinscrevem naesfera supostamente indepen- dente daprodução humana enquanto determinada pelo «útil»:trata-se daquilo aque chamamos produção de consumo (conforme LaNotiou ded/penseelaPartmaudite, Ed deMinuit). 4 Sobre aidentidade Naturo.a/Produção eavida genérica, segundo MarX,conferir oscomentários de 5D. H. Lawrence La l"érgcd'Aaron, tradução francesa Gallimard, p. 199. Gérard Granel, .(T:Ontologie marxiste de 1844 etlaquestion delacoupure). inLEndumnce delapensée,Plon, 6Henry Ivfiller,Trópico de Câncer, capoXIII (<< easminhas entranhas espalham-se num imenso 11ltxo 19G8,pp. 301-310. csquizofrenico, evacuar que mepõe faceaoabsoluto ») o 12 ANTI-ÉDIPO AS MÁQUINAS DESEJANTES 13 brut são a demonstração viva do que acabamos de dizer (e negam, ao mesmo água, não poderia ser explicada pelo jogo «papá-mamá), nem pelo prazer da trans- tempo, que haja uma entidade esquizofténica). Ou Henti Michaux, quando des- gressão. A regra de produzir sempre o produzir, de inserir o produzir no produto, creve uma mesa esquizofrênica em função do processo de produção que é o do éa característica das máquinas desejantes ou da produção primária: produção de desejo: {(Uma vez que tivéssemos reparado nela, ela continuava a ocupar-nos o ptodução. Um quadto de Richatd Lindnet, Boy with Machine, apresenta uma espírito. Econtinuava até nem sei bem o quê, talvez a sua própria tarefa ... O que criança enorme e túrgida fazendo funcionar uma das suas pequenas máquinas impressionava era que, não sendo simples, também não era realmente complexa, desejantes sobre uma enorme máquina social técnica (porque. como veremos, improvisada ou intencionalmente complexa, nem tinha um plano complicado. isto acontece já na criança). Ou antes, dessimplificava-se à medida que era trabalhada ... Tal como estava, era Ptoduzít, ptoduto, identidade ptoduzit-ptoduto ... Éesta identidade que cons- uma mesa feita de bocados, como são feitos alguns desenhos de esquizofrênicos, e titui um terceiro termo na série linear: enorme objecto não diferenciado. Tudo separecia acabada era só na medida em que já não havia maneira de lhe acrescen- pára um momento, tudo se cristaliza (depois, tudo recomeçará). De certo modo, tar mais nada, mesa que se tinha transformado cada vez mais num amontoado e seria melhor que nada andasse, que nada funcionasse. Não ter nascido, sair da cada vez menos numa mesa ... E não servia para nada do que se possa esperar de roda dos nascimentos, sem boca para mamar, sem ânus para cagar. Estarão as uma mesa. Pesada, embaraçante, só a custo podia ser transportada. Não se sabia máquinas suficientemente avariadas para seentregarem enos entregarem ao nada? como pegar-lhe (nem mental nem manualmente). O tampo, aparte útil da mesa, Dir-se-ia que os fluxos estão ainda demasiado ligados, que os objectos parciais são progressivamente reduzido, desaparecia edestoava de tal modo do resto da incô- ainda demasiado orgânicos. Mas um puro fluido em estado livre e sem cortes, \\;" moda construção que se deixava de pensar no conjunto como sendo uma mesa, deslizando sobre um corpo pleno. AB máquinas desejantes fazem de nós um orga- . para sepensar num móvel àparte, num instrumento desconhecido de que se não nismo; mas no seio desta produção, na sua prôpria produção, O corpo sofre por conhecia a utilidade. Mesa desumanizada, incômoda, que não era nem burguesa, estar assim organizado, por não ter outra organização ou organização nenhuma. nem rústica, nem do campo, nem de cozinha, nem de trabalho. Que não prestava «Uma paragem incompreensível» ameio do processo, como terceiro tempo: «Sem para nada, que se defendia, que se recusava a qualquer serviço e à comunicação. boca. Sem lingua. Sem dentes. Sem laringe. Sem esójàgo.Sem estômago. Sem ventre. Havia nela algo de aterrado. de petrificado. Podia levar apensar num motor para- Sem ânus.» Os autómatos param e deixam que a massa inorgânica que articulam dOI/oO esquizofrênico éo produtor universal. Não sepode distinguir o produzir apareça. O corpo pleno sem órgãos éo improdutivo, o estéril, o inengendrado, o e o seu produto; ou, pelo menos, o objecto produzido leva o seu aqui para um inconsumivel. Antonin Artaud descobriu-o, precisamente onde ele se encontra- novo produzir. A mesa continua a sua ('própria tarefa). O tampo é comido pela va, sem forma nem figura. Instinto de morte é o seu nome, e a morte não existe ) ~' construção. A não-terminação da mesa é um imperativo da produção. Quando sem modelo. Porque o desejo também deseja a mone, potque OCOtpOpleno da Lévi-Strauss define o «bricolage», propõe um conjunto de caracteres estritamente morte ê o seu motor imóvel, tal como deseja avida. porque os órgãos da vida são ligados: a posse dum stock ou dum código múltiplo, heteróclito etodavia limita- a working machine. Não perguntaremos como é que isto func~ona em conjunto: do; a capacidade de introduzir os fragmentos em fragmentações sempre novas; esta questão é já produto de uma abstracção. As máquinas desejantes só funcio~ donde deriva uma indiferença do produzir edo produto, do conjunto instrumen- nam avariadas, avariando-se constantemente. O presidente Schreber «viveu du- tal e do conjunto a realizars, A satisfação do ,(bricoleu[» quando consegue ligar rante muito tempo sem estômago, sem intestinos, quase sem pulmões, com o qualquer coisa à corrente eléctrica, quando consegue desviar uma conduta de esófago desfeito, sem bexiga. com ascostelas esmagadas; comeu, por vezes, partes da sua própria laringe, e por aíadiante». O corpo sem órgãos éo improdutivo; no entanto, é produzido no lugar próprio, a seu tempo, na sua síntese conectiva, 7Henri Michaux, Les Grandes épreuves de resprit, Gallimard. 1966, pp. 156-157. ~Claude Lévi-Srrauss, La Pensée sauvage, Plon, 1962, pp. 26 segs. como a identidade do produzir e do produto (a mesa esquizofrénica ê um corpo 14 o ANTI-ÉDIPO AS MÁQUINAS DESEJANTES 15 sem órgãos). O corpo sem órgãos não éo testemunho de um nada originaL nem indiferenciação da sua superfície. A projeccão só intervém secundariamente, as- o resto de uma totalidade perdida. Mas sobretudo o que ele não é, de modo sim como o contra-investimento na medida em que o corpo sem órgãos investe algum, é uma projecção: não tem nada a ver com O corpo de cada um nem com um contra-interior ou um contra-exterior, sob a forma de um órgão perseguidor uma imagem do corpo. Éo corpo sem imagem. Ele, o improdutivo, existe onde é ou de um agente exterior de perseguição. Mas amáquina paranóica é, em si, uma produzido, precisamente no terceiro tempo da série binário-linear. Éperpetua- transformação das máquinas desejantes: resulta da relação das máquinas desejantes mente re-injectado na produção. O corpo caratónico é produzido na água do com o corpo sem órgãos, na medida em que este já não as pode suportar. banho. O corpo pleno sem órgãos éanti-produção; mas é ainda uma característi- Mas se quisermos ter uma ideia das forças ulteriores do corpo sem órgãos no ca da síntese conectiva ou produtiva ligar a produção à anti-produção. a um ele- processo não interrompido, devemos passar por um paralelo entre a produção mento de anei-produção. desejante eaprodução social. Tal paralelo éapenas fenomenológico; não conside- ra nem a natureza nem a relação entre as duas produções, nem sequer a questão de saber se existem, efectivamente, duas produções. Simplesmente, também as Entre as máquinas desejantes e o corpo sem órgãos surge um conflito apa- formas de produção social implicam um estado improdutivo inengendrado, um rente. Todas asconexões das máquinas, todas asproduções de máquina, todos os elemento de anti-produção em ligação com o processo, um corpo pleno determi- barulhos de máquina se tornam insuportáveis ao corpo sem órgãos. Debaixo dos nado como socius.Que pode ser o corpo da terra, ou o corpo despótico ou, então, órgãos sente larvas e vermes repugnantes, e a acção de um Deus que o aldraba e o capital. Foi dele que Marx disse: não é o produto do trabalho, mas aparece sufoca, organizando-o. «o corpo é o corpo l está só Ie não precisa de órgãos Io como o seu pressuposto natural ou divino. Ele não se contenta, com efeito, enl se corpo nunca éum organismo I os organismos são os inimigos do corpo)~9.Tantos opor àsforças produtivas em simesmas. Rebate-se sobre toda aprodução, consti- pregos na sua carne quantos os suplícios. As máquinas-órgãos, o corpo sem ór- tui uma superfície onde se distribuem as forças e os agentes de produção, de gãos opõe a sua superf.ície deslizante, opaca e tensa. Aos fluxos ligados, unidos e modo que se apropria do sobreproduto e se atribui a si próprio o conjunto e as re-cortados, opõe o seu fluido amorfo indiferenciado. Às palavras fonéticas, opõe partes do processo, que parecem então emanar dele como de uma quase-causa. Forças e agentes tornam-se o seu poder, sob unIa forma miraculosa, parecem sopros e gritos que são outros tantos blocos inarticulados. Pensamos que é este o sentido do recalcamento dito originário: não um «contra-investimento», mas esta miracufados por ele. Em suma, o socius como corpo pleno forma unIa superfície repulsãodas máquinas desejanres pelo corpo sem órgãos. E é mesmo isto o que a onde toda aprodução se regista eparece emanar da superfície de registo. A socie- dade constrói o seu próprio delírio ao registar o processo de produção mas não é máquina paranóica significa, a acção violenta das máquinas desejantes sobre o um delírio da consciência, ou antes, afalsa consciência éaconsciência verdadeira corpo sem órgãos e a reacção repulsiva do corpo sem órgãos que as sente global- de um falso movimento, percepção verdadeira de um movimento objectivo apa- mente como um aparelho de perseguição. Assim, não podemos seguirTausk quan- rente, percepção verdadeira do movimento que seproduz na s~perf.ície de registo. do ele vê na máquina paranóica uma simples projecção do «(próprio corpo» edos O capital é, de facto, o corpo sem órgãos do capitalista, ou antes, do ser capitalis- órgãos genitais 10.A gênese da máquina dá-se precisamente aqui, na oposição do ta. Enquanto tal, o capital é não só a substância fluida epetrificada do dinheiro, processo de produção das máquinas desejantes com o estado improdutivo do mas vai também dar à esterilidade do dinheiro a forma com que este produz corpo sem órgãos, como o testemunham o carácter anón1Ino da máquina e a dinheiro. Produz a mais-valia, como o corpo sem órgãos se reproduz a sipróprio, germina e estende-se até aos confins do universo. Encarrega a máquina de fabri- 9Artaud, in 84, n'" 5-6, 1948. car uma mais-valia relativa, ao mesmo tempo que se encarna nela como capital ](lVictor Tausk, "De la genese elel'appareil àinflllencer au COllrsde laschimphrenie)l 1919, tradução francesa in La Ps)'chanaLyse, n.O 4. fixo. E é no capital que se engatam as máquinas e os agentes, de modo que até o 16 o AClTl·ÉDIPO AS MAQUINAS DESEJANTES 17 seu funcionamento é miraculado por ele.Tudo parece (objectivamente) produzi- rada de inscrição ou de registo que seatribui asi própria todas asforças produti- do pelo capital enquanto quase-causa. Como diz Marx, noprincípio os capitalis- vas e os órgãos de produção, e que se concluz como quase causa comunicando~ tas têm necessariamente consciência da oposição do trabalho e do capitaL e do -lhes o movimento aparente (o fetiche). Isto é tão verdadeiro como o facro do uso do capital como meio de extorquir sobre-trabalho. Mas depressa se instaura esquizofrénico fazer economia política, e como o facto de a sexualidade ser urna um mundo perverso enfeitiçado, enquanto que o capital tem o papel de superfí- questão de economia. cie de registo que serebate sobre roda aprodução (fornecer mais-valia, ou realizá- Simplesmente, aprodução não se regista da mesma maneira que seproduz. -Ia, éisso o direito de registo). «À medida que a m~is-valia relativa sedesenvolve Ou melhor, não sereproduz no movimento objectivo aparente da mesma manei- no sistema especificamente capitalista e que a produtividade social do trabalho ra que se produzia no processo de constituição. É que passámos imperceptivel- cresce, asforças produtivas e as conexões sociais do trabalho parecem separar-se mente para o domínio da produção de registo, cuja lei não é a mesma que a da do processo produtivo e passar do trabalho ao capital. O capital torna-se assim produção de produção. A lei desta era asíntese conectiva ou ligação. Mas dir-se- num serbastante misterioso, porque todas asforças produrivas parecem nascer no -iaque quando asconexões produtivas passam das máquinas ao corpo sem órgãos seu seio epertencer-lhe» 11.Eo que éaqui especificamente capitalista éo papel do (como do trabalho ao capital), elas são submeridas a uma nova lei que exprime dinheiro e o uso do capital como corpo pleno para formar asuperfície de inscri- uma distribuição em relação ao elemento não produtivo enquanto «pressuposto ção ou de registo. Mas um corpo pleno qualquer, corpo da terra ou do déspota, natural ou divino» (as disjunções do capital). fu máquinas engatam-se sobre o uma superfície de registo, um movimento objectivo aparente, um mundo perver- corpo sem órgãos, como outros tantos pontos de disjunção entre os quais se tece soenfeitiçado fetichista, pertencem a todos os tipos de sociedade como constante toda uma rede de novas sínteses que esquadriam a superfície. O «quer... quer» da reprodução social. esquizofrénico transforma-se no «edepois»; quaisquer que sejam os dois órgãos O corpo sem órgãos rebate-se sobre a produção desejante, atrai-a, apropria- encarados, amaneira como estão engatados ao corpo sem órgãos deve ser tal que -se dela. As máquinas-órgãos agarram-se a ele como a um colete de esgrima ou todas assínteses disjuntivas entre os dois conduzam ao mesmO sobre a superfície como as medalhas ao ,(mail1ot» do lutador que, ao andar, as faz balançar. Uma deslizante. Enquanto o «ou então» pretende marcar escolhas decisivas entre ter- máquina de atracção sucede, pode assim suceder, à máquina repulsiva: uma má- mos não permutáveis (alternativa), o «quer» designa um sistema de permutações quina miraculante depois da máquina paranóica. Mas que quer dizer o "depois»? possíveis entre as diferenças que conduzem sempre ao mesmo, deslocando-se, As duas coexistem, eohumor negro encarrega-se não de resolver ascontradiçóes, deslizando. O mesmo sepassa com a boca que fala e com os pés que andam: «Às mas de fazer que elasnão existam, com que nunca tenham existido. O corpo sem vezes acontecia-lhe parar sem dizer nada. Quer não tivesse nada a dizer, quer órgãos, oimprodutivo, o inconsumível, serve de superfície para o regisro de qual- tivesse alguma coisa a dizer e tivesse renunciado fazê-lo. Há outros casos princi- quer processo de produção do desejo, de modo que asmáquinas desejantes pare- pdis que se apresentam ao espírito. Comunicação contínua imediata com reco- cem emanar dele no movimento objectivo aparente em que se relacionam com meço imediato. Amesma coisa com recomeço retardado. Co~unicação continua ele. Os órgãos são regenerados, miraculados no corpo do presidente Schreber que retardada com recomeço imediato. Amesma coisa com recomeço retardado. Co- atrai os raios de Deus. Não há dúvida que a antiga máquina paranóica subsiste municação descontínua imediata com recomeço imediato. A mesma coisa com nas vozes trocistas que procuram «desmiracular» os órgãos, e especialmente o recomeço retardado. Comunicação descontínua retardada com recomeço imedi- ânus do presidente. Mas oessencial éoestabelecimento de uma superfície encan- ato. A mesma coisa com recomeço retardado»12. Éassim que o esquizofrénico, possuidor do capital mais pobre e mais comovente, como as propriedades de IIMarx, Lt Capital. 7, capo25 (Pléiade rI,p. 1435). Cfr. Althusser, Lire leCapital, oscomentários de Balibar, tomo 11,pp.213 segs.,ede Machercy, tomo I, pp. 201 segs. (Maspero, 1965). 11Beckett, "Asscz» in 7i:te,~mortes,Ed deMinuit, 1967, pp. 40-41. /' t o 18 ANTI-ÉDIPO AS MÁQUINAS DESEJANTES 19 Malone, escreve sobre o seu corpo aslitanias das disjunções e constrói para sium uma exigência ou uma consequência da reprodução social, enquanto esta preten- mundo de jogadas em que a mais pequena permuta tem que responder à nova de domesticar uma matéria e uma forma genealógicas, que lhe escapa completa- situação, ou ao indiscreto interpelante. Asíntese disjuntiva de registo oculta, por- .mente? Porque é bem certo que o esquizofrênico é interpelado, que nunca deixa tanto, assínteses conectivas de produção. O processo COlllO processo de produção de o ser. Precisamente porque asua relação com anatureza não éum pólo especí- prolonga-se num método como método de inscrição. Ou antes, se chamarmos fico, éque é interpelado nos termos do código social vigente: qual é o teu nome, líbido ao «trabalho») conectivo da produção desejante, devemos dizer que uma quem são o teu pai eatua mãe? Durante osseus exercícios de produção desejante, parte dessa energia se transforma em energia de inscrição disjuntiva (Numen). Molloy é interpelado por um polícia: ,Nocê chama-se Molloy, disse o comissário. Transformação energética. Mas porque chamar divina, ou Numen, ànova forma Chamo, disse eu, lembrei-me agora mesmo. E a sua mãe~ disse o comissário. Eu de energia apesar de todos os equívocos levantados por um problema do incons- não percebia. Ela também se chama Molloy? disse o comissário. Ela também se ciente que só na aparência éreligioso? O corpo sem órgãos não éDeus, antes pelo chama Mol1oy? disse eu. Chama, disse o comissário. Reflecti. Você chama-se contrário. Mas a energia que o percorre é divina, quando ele atrai a si toda a Molloy, disse o comissário. Chamo, disse eu. E a sua mãe, disse o comissário, produção e lhe serve de superfície encantada miraculante, inscrevendo-a em to- também se chama Molloy? Reflecti." Não se pode dizer que a psicanálise seja das as suas disjunções. Donde as estranhas relações de Schreber com Deus. À muito inovadora: ela continua apôr assuas questões eadesenvolver assuas inter- pergunta: acredita em Deus? deve-se responder de um modo estritamente kantiano pretações apartir do triângulo edipiano, no momento em que sente, no entanto, ou schreberiano: com certeza, mas só como senhor do silogismo disjuntivo, como que os chamados fenômenos de psicose ultrapassam esse quadro de referência. O princípio apriori deste silogismo (Deus define a Omnitudo realitatis,da qual psicanalista diz que temoJde descobrir opai no Deus superior de Schreber etalvez todas as realidades derivadas saem por divisão). até o irmão mais velho no Deus inferior. O esquizofrénico impacienta-se àsvezes Divino é, pois, apenas o carácter de uma energia de disjunção. O divino de e pede para o deixarem em paz. Outras vezes entra no jogo, complica-o mesmo, Schreber é inseparável das disjunções nas quais ele se divide asimesmo: impérios pronto a reintroduzir as suas próprias referências no modelo que lhe propõem e anteriores, impérios posteriores; impérios posteriores de um Deus superior e de que ele faz estoirar por dentro (sim, é a minha mãe, mas a minha mãe é precisa- um Deus inferior. Freud acentua fortemente a importância destas sínteses mente a Virgem). Imaginemos o presidente Schreber a responder a Freud: mas disjuntivas no delírio de Schreber em particular, assim como no delírio em geral. claro, com certeza, os pássaros falantes são raparigas, e o Deus superior é o meu «Taldivisão écaracterística das psicoses paranóicas. Estas dividem, enquanto que pai, eo Deus inferior o meu irmão. Mas, sorrateiramente, re-engravida asrapari- a histeria condensa. Ou antes, estas psicoses resolvem de novo, nos seus elemen- gas com todos os pássaros falantes, o pai com o Deus superior e o irmão com o tos, ascondensações e asidentificações realizadas na imaginação inconsciente)~13. Deus inferior, tudo formas divinas que se complicam, ou melhor, se «dessim- Mas porque éque Freud acrescenta que, reflectindo um pouco, aneurose histéri- plificaml', à medida que rompem com os termos efunções demasiado simples do ca éprimeira, eque asdisjunções só são obtidas por projecção de um condensado rriãngulo edipiano. primordial? Trata-se sem dúvida dum modo de conservar os direitos de Édipo no Não acredito nem no pai Deus do delírio eno registo esquizo-paranóico. Épor isso que devemos formular nem na mãe aquestão mais geral aeste respeito: será que o registo do desejo passa pelos termos Não tenho nada edipianos? As disjunções são a forma da genealogia desejante; mas será esta com o papá-mamão genealogia edipiana, inscrever-se-á na triangulação de Édipo? Não será o Édipo Aprodução desejante forma um sistema linear-binário. O corpo pleno intro- LIFreud, Cinqpsychana~yses,tradução francesa PU.F" p. 297 duz-se na série como terceiro termo, mas sem lhe alterar o carácter: 2, 12, 1...A

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