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Gabriel García Márquez O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA Tradução Antônio Callado Título original El amor en los tiempos del cólera Record Rio de Janeiro Para Mercedes, claro En adelanto van estos lugares: ya tienen su diosa coronada. LEANDRO DÍAZ ERA INEVITÁVEL: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino o sentiu logo que entrou na casa ainda mergulhada em sombras, à qual chegara acudindo a chamado de urgência para se ocupar de um caso que para ele tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado antilhano Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e seu adversário de xadrez mais compassivo, se havia posto a salvo dos tormentos da memória com uma fumigação de cianureto de ouro. Encontrou o cadáver coberto com uma manta no catre de campanha onde sempre dormira, perto de um tamborete com a vasilha que havia servido para vaporizar o veneno. No chão, amarrado pela pata ao catre, estava o corpo estendido de um grande dinamarquês preto de peito nevado, e junto a ele estavam as muletas. O quarto sufocante e salpicado de cores, que servia ao mesmo tempo de alcova laboratório, mal começava a se iluminar com o resplendor do amanhecer na janela aberta, mas era luz bastante para proclamar de pronto a autoridade da morte. As outras janelas, assim como todas as frestas do aposento, estavam amordaçadas com trapos ou seladas com papelão preto, o que aumentava sua densidade opressiva. Havia uma mesa grande atulhada de frascos e vidros bojudos sem rótulo, e duas vasilhas de estanho descascado sob um foco de luz ordinário coberto de papel vermelho. A terceira vasilha, a do líquido fixador, era a que estava junto do cadáver. Havia revistas e jornais velhos em todos os cantos, pilhas de negativos em placas de vidro, móveis quebrados, mas tudo estava preservado da poeira por mãos diligentes. Embora o ar da janela houvesse purificado o ambiente, ainda persistia para quem soubesse identificá-lo o rescaldo morno dos amores sem ventura das amêndoas amargas. O doutor Juvenal Urbino havia pensado mais de uma vez, sem ânimo premonitório, que aquele não era um lugar propício para se morrer na graça de Deus. Mas com o tempo acabou por supor que sua desordem obedecia talvez a uma determinação cifrada da Divina Providência. Um comissário de polícia se havia adiantado com um estudante de medicina muito moço que fazia sua prática forense no dispensário municipal, e eles é que haviam arejado o aposento e coberto o cadáver enquanto chegava o doutor Urbino. Ambos o cumprimentaram com uma solenidade que dessa vez tinha mais de condolência que de veneração, pois ninguém ignorava o grau de sua amizade com Jeremiah de Saint-Amour. O mestre eminente apertou a mão de ambos, como jamais deixava de fazer com cada um de seus alunos antes de começar a aula diária de clínica geral, e depois segurou a beira da manta com as pontas do índice e do polegar, como se fosse uma flor, e descobriu o cadáver palmo a palmo com uma parcimônia sacramentai. Estava nu em pêlo, teso e torto, com os olhos abertos e o corpo azul, e parecia cinqüenta anos mais velho do que na noite anterior. Tinha as pupilas diáfanas, a barba e os cabelos amarelados, e o ventre atravessado por uma cicatriz antiga costurada com nós de ensacador. O trabalho das muletas tinha dado uma envergadura de galeote a seu torso e seus braços, mas as pernas inermes eram as de um órfão. O doutor Juvenal Urbino o contemplou um instante com o coração doendo, como poucas vezes nos longos anos de sua contenda estéril contra a morte. — Poltrão — disse a ele. — O pior já tinha passado. Voltou a cobri-lo com a manta e recuperou sua postura acadêmica. No ano anterior celebrara seus oitenta com um jubileu oficial de três dias, e no discurso de agradecimento resistiu uma vez mais à tentação de se aposentar. Havia dito: "Terei tempo de sobra para descansar quando morrer, mas essa eventualidade não figura ainda nos meus projetos." Embora ouvisse cada vez menos com o ouvido direito e se apoiasse numa bengala com castão de prata para dissimular a incerteza dos seus passos, continuava usando com a compostura dos seus anos moços o terno completo de linho com o colete atravessado pela corrente de ouro. A barba de Pasteur, cor de nácar, e o cabelo da mesma cor, muito bem alisado e com o repartido nítido no centro, eram expressões fiéis do seu caráter. Até onde podia, compensava a erosão cada vez mais inquietante da memória com notas escritas às carreiras em papeizinhos avulsos, que acabavam por se confundir em todos os seus bolsos, assim como os instrumentos, os vidros de remédio, e outras tantas coisas embaralhadas na maleta atulhada. Não era só o médico mais antigo e esclarecido da cidade, como também o homem mais atilado. Apesar disso, sua sapiência demasiado ostensiva e o modo nada ingênuo que tinha de manejar o poder do próprio nome acabaram por lhe valer menos afetos do que merecia. As instruções ao comissário e ao praticante foram precisas e rápidas. Não haveria autópsia. O cheiro da casa bastava para determinar que a causa da morte tinham sido as emanações do cianureto ativado na vasilha por algum ácido de fotografia, e Jeremiah de Saint-Amour entendia muito do assunto para não fazê-lo por acidente. Diante de uma reticência do comissário, deteve-o com uma estocada típica do seu modo de ser: "Não se esqueça de que sou eu quem assina o atestado de óbito." O médico jovem ficou decepcionado: nunca tinha tido a sorte de estudar os efeitos do cianureto de ouro num cadáver. O doutor Juvenal Urbino tinha ficado espantado de não havê-lo visto na Escola de Medicina, mas compreendeu de pronto ao notar seu rubor fácil e seu sotaque andino: era sem dúvida um recém-chegado à cidade. Disse: "Não faltará por aqui algum louco de amor que lhe dê a oportunidade um dia destes." E só ao dizê-lo percebeu que entre os incontáveis suicídios que lembrava, aquele era o primeiro com cianureto que não tinha sido causado por um infortúnio de amor. Algo se alterou então na sua maneira de falar. — Quando encontrá-lo, preste bem atenção — disse ao praticante: — costumam ter areia no coração. Em seguida falou com o comissário como quem fala a um subalterno. Ordenou- lhe que desse um jeito em todas as instâncias para que o enterro se realizasse nessa mesma tarde e com o maior sigilo. Disse: "Eu falo depois com o prefeito." Sabia que Jeremiah de Saint-Amour era de uma austeridade primitiva, e que ganhava com sua arte muito mais do que carecia para viver, de modo que em algumas das gavetas da casa devia haver dinheiro de sobra para os gastos do enterro. — Mas se não o acharem, não importa — disse. — Eu me encarrego de tudo. Mandou que se dissesse aos jornais que o fotógrafo tinha morrido de morte natural, embora achasse que a notícia não lhes interessava de nenhum modo. Disse: "Se for necessário, falo com o governador." O comissário, um empregado sério e humilde, sabia que o rigor cívico do mestre exasperava até seus amigos mais chegados, e estranhava a facilidade com que saltava por cima dos trâmites legais para apressar o enterro. Só não acedeu em falar com o arcebispo para que Jeremiah de Saint-Amour fosse sepultado em terra consagrada. O comissário, mortificado com sua própria impertinência, tratou de se desculpar. __ Minha idéia é que este homem era um santo — disse. — Era algo ainda mais raro — disse o doutor Urbino: — um santo ateu. Mas esses assuntos a Deus pertencem. Remotos, do outro lado da cidade colonial, se ouviram os sinos da catedral chamando à missa solene. O doutor Urbino repôs os óculos de meia-lua com armação de ouro e consultou o relógio da corrente, que era quadrado e fino, e sua tampa se abria com uma mola: estava a ponto de perder a missa de Pentecostes. Na sala havia uma enorme máquina fotográfica sobre rodas como as dos jardins públicos, e o telão de um crepúsculo marinho pintado com tintas artesanais, e as paredes estavam forradas de retratos de crianças em suas datas memoráveis: a primeira comunhão, a fantasia de coelho, o aniversário feliz. O doutor Urbino tinha visto o revestimento paulatino dos muros, ano após ano, durante as cavilações absortas das tardes de xadrez, e havia pensado muitas vezes com um latejar de desolação que nessa galeria de retratos casuais estava o germe da cidade futura, governada e pervertida por aqueles meninos incertos, e na qual já não restariam sequer as cinzas de sua glória. Na escrivaninha, junto a um pote com vários cachimbos de lobo-do-mar, estava o tabuleiro de xadrez com uma partida inconclusa. Apesar de sua pressa e de seu ânimo sombrio, o doutor Urbino não resistiu à tentação de estudá-la. Sabia que era a partida da noite anterior, pois Jeremiah de Saint-Amour jogava todas as tardes da semana e pelo menos com três adversários diferentes, mas chegava sempre até o final e guardava depois o tabuleiro e as pedras em sua caixa, e guardava a caixa numa gaveta da escrivaninha. Sabia que jogava com as peças brancas, e aquela vez era evidente que ia ser derrotado sem salvação em quatro jogadas mais. "Se tivesse sido um crime, aqui haveria uma boa pista", disse a si mesmo. "Só conheço um homem capaz de compor esta emboscada de mestre." Não teria podido viver sem averiguar mais tarde por que aquele soldado indômito, acostumado a se bater até a última gota de sangue, havia deixado por terminar a guerra final de sua vida. Às seis da manhã, quando fazia a última ronda, o guarda-noturno tinha visto o letreiro pregado na porta da rua: Entre sem tocar e avise a polícia. Pouco depois acudiu o comissário com o estudante, e ambos tinham revistado a casa em busca de alguma evidência contra o bafo inconfundível das amêndoas amargas. Mas nos breves minutos que durou a análise da partida inconclusa, o comissário descobriu entre os papéis da escrivaninha um envelope dirigido ao doutor Juvenal Urbino, e protegido por tantos selos de lacre que foi necessário despedaçá-lo para tirar a carta. O médico afastou a cortina preta da janela para ter melhor luz, lançou primeiro um olhar rápido às onze folhas escritas dos dois lados com uma caligrafia caprichada, e logo que leu o primeiro parágrafo compreendeu que tinha perdido a comunhão de Pentecostes. Leu com a respiração acelerada, voltando atrás em várias páginas para retomar o fio perdido, e quando terminou parecia regressar de muito longe e de muito tempo. Seu abatimento era visível, apesar do esforço que fazia para ocultá-lo: tinha nos lábios a mesma coloração azul do cadáver, e não pôde dominar o tremor dos dedos quando tornou a dobrar a carta e a guardou no bolso do colete. Então se lembrou do comissário e do médico jovem, e sorriu aos dois das brumas do seu abatimento. — Nada de particular — disse. — São suas últimas instruções. Era uma meia verdade, mas eles a acreditaram completa porque ele lhes mandou levantar um ladrilho solto do pavimento e ali encontraram um caderno de contas muito usado onde estavam as chaves para abrir o cofre-forte. Não havia tanto dinheiro como pensavam, mas havia de sobra para os gastos do enterro e para saldar outros compromissos menores. O doutor Urbino já estava então consciente de que não conseguiria chegar à catedral antes do Evangelho. __ É a terceira vez que perco a missa de domingo desde que tenho uso de razão — disse. — Mas Deus entende. Preferiu por isso demorar mais uns minutos para deixar todos os pormenores esclarecidos, embora mal pudesse suportar a ansiedade de compartilhar com sua esposa as confidencias da carta. Comprometeu-se a avisar os numerosos refugiados do Caribe que viviam na cidade, caso quisessem render as últimas homenagens a quem se havia comportado como o mais respeitável de todos, o mais ativo e radical, mesmo depois de se tornar demasiado evidente que havia sucumbido à sedimentação do desencanto. Também avisaria seus parceiros de xadrez, entre os quais havia tantos profissionais insignes como artesãos obscuros, e a outros amigos menos assíduos, mas que talvez quisessem assistir ao enterro. Antes de conhecer a carta póstuma tinha resolvido que ele era o primeiro, mas depois de lê-la não estava mais seguro de nada. De todas as maneiras iam mandar uma coroa de gardênias, pois podia ser que Jeremiah de Saint-Amour tivesse tido um último minuto de arrependimento. O enterro seria às cinco, que era a hora propícia nos meses de mais calor. Se precisassem dele estaria desde as doze na casa de campo do doutor Lácides Olivella, seu discípulo amado, que aquele dia celebrava com um almoço de gala as bodas de prata profissionais. O doutor Juvenal Urbino tinha uma rotina fácil de seguir, desde que haviam ficado para trás os anos tempestuosos dos primeiros embates, e conseguiu uma respeitabilidade um prestígio que não tinham igual na província. Levantava-se com os primeiros galos, e a essa hora começava a tomar seus remédios secretos: brometo de potássio para levantar o ânimo, salicilatos para as dores dos ossos em tempo de chuva, gotas de cravagem de centeio para as vertigens, beladona para o bom dormir. Tomava alguma coisa a cada hora, sempre às escondidas, porque em sua longa vida de médico e mestre foi sempre contrário a receitar paliativos para a velhice: achava mais fácil suportar as dores alheias que as próprias. No bolso levava sempre um cristal de cânfora que aspirava fundo quando não tinha ninguém olhando, para se livrar do medo de tantos remédios misturados. Permanecia uma hora no seu gabinete, preparando a aula de clínica geral que ministrou na Escola de Medicina todos os dias de segunda a sábado, às oito em ponto, até a véspera de sua morte. Era também um leitor atento das novidades literárias que lhe mandava pelo correio seu livreiro de Paris, ou das que lhe despachava de Barcelona seu livreiro local, embora não acompanhasse a literatura da língua castelhana com tanta atenção quanto a francesa. De qualquer forma nunca as lia pela manhã e sim depois da sesta durante uma hora, e à noite antes de dormir. Ao deixar o gabinete fazia quinze minutos de exercícios respiratórios no banheiro, defronte da janela aberta, respirando sempre para o lado em que cantavam os galos, que era onde estava o ar novo. Depois tomava banho, cuidava da barba e engomava o bigode num ambiente saturado de água-de-colônia da legítima de Farina Gegenüber, e se vestia de linho branco, com colete e chapéu mole, e botinas de cordovão. Aos oitenta e um anos conservava o jeito despreocupado e o espírito festivo de quando voltou de Paris, pouco depois da epidemia grande do cólera morbo, e o cabelo bem penteado com o repartido no meio continuava igual ao da juventude, salvo pela cor metálica. Tomava café em família, mas com um regime pessoal: uma infusão de flores de absinto maior, para o bem-estar do estômago, e uma cabeça de alho cujos dentes descascava e comia um por um, mastigando-os com método em fatias de pão caseiro, para prevenir os sufocos do coração. Só em raras ocasiões não tinha depois da aula algum compromisso relacionado com suas iniciativas cívicas, ou com suas milícias católicas, ou com suas promoções artísticas e sociais. Almoçava quase sempre em casa, fazia uma sesta de dez minutos sentado na varanda do quintal, ouvindo em sonhos as canções das criadas debaixo da copa das mangueiras, ouvindo os pregões da rua, o fragor de motores com o fedor de óleos da
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