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O Alcance da Socioafetividade para a Determinação da Filiação PDF

12 Pages·2007·0.22 MB·Portuguese
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O ALCANCE DA SOCIOAFETIVIDADE PARA A DETERMINAÇÃO DA FILIAÇÃO Laís Fraga Kauss Procuradora Federal – Advocacia Geral da União Procuradoria Federal Especializada/INSS – Marília, São Paulo Pós Graduanda em Direito Público e Privado Universidade Estácio de Sá – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro RESUMO Este trabalho apresenta a evolução do direito de família no que consiste à filiação, focando no valor jurídico do afeto, nas tendências jurisprudenciais e nos problemas ainda a serem solucionados. As decisões judiciais ilustradas são fruto de pesquisas nos diferentes Tribunais Estaduais brasileiros e demonstram a diversidade de posicionamentos acerca do novo tema da socioafetividade e suas conseqüências. Palavras-chave: Socioafetividade. Filiação. Afeto. Biologia. INTRODUÇÃO A sociedade é dinâmica. Seus conceitos e realidades são alterados com o passar do tempo e com a evolução das relações interpessoais, do mercado de trabalho, da ciência e da economia. A família, ao contrário do que pode parecer, não é evolução natural do ser humano. Trata-se de criação da sociedade que, em seus primórdios, visava a manter a linhagem genética ou mesmo possibilitar a sucessão patrimonial. Os laços afetivos não eram intencionais, ou seja, foram na verdade conseqüência da formação do núcleo familiar, da convivência interpessoal. Hoje, no entanto, muito se discute acerca do papel e mesmo da importância dos dois maiores aspectos familiares: o lado sentimental e o lado patrimonial. A evolução, portanto, da sociedade colocou em cheque antigas referências sobre a noção de família. Tal evolução, como todas as outras, deve ser retratada com a evolução também dos textos legais. A norma contida na lei é o produto histórico da sociedade, assim, deve retratar os valores que a sociedade valoriza. Se é verdade que as leis devem seguir as mudanças na sociedade, também é verdadeiro que o processo legislativo é lento e trabalhoso no Brasil, o que dificulta em muito a missão de manter as leis em estrito acordo com os anseios da sociedade. Fato é que, em matéria de direito de família, a legislação brasileira é bastante abrangente e coerente. Há características de conservadorismo, como o não reconhecimento  da união homoafetiva como caracterizadora de união estável, mas, no que tange à família como um todo e à filiação, a Constituição da República de 1988 trouxe grandes avanços no sentido de priorizar os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa. Há tempos atrás, havia três tipos de perfilhação: formal, biológica e sociológica. A filiação formal desapareceu do ordenamento com a unidade da perfilhação e a certeza biológica trazida pelo exame do DNA. Dessa forma, atualmente, temos duas origens para a filiação: a biológica e a sociológica, ambas com mesmo tratamento legal. A certeza da filiação biológica garantida pelo DNA trouxe maior honestidade para direitos e deveres entre pais e filhos, todavia, trouxe também impasses processuais, pois o direito enfrenta a dicotomia entre a segurança jurídica da sentença transitada em julgado e a justiça da decisão de acordo com a verdade real. Como se depreende do acima exposto, a família sofreu diversas mudanças desde a sua formação na sociedade. Desde a descoberta do exame de DNA, seu resultado vinha sendo utilizado como critério absoluto para a determinação da filiação, portanto, a biologia vinha sendo considerada como preponderante nas relações familiares. Ocorre que com a Constituição de 1988, o afeto foi elevado a valor jurídico, o que tem grande influência em todo o direito de família, inclusive no que tange à determinação do estado de filho. As decisões nos diferentes tribunais, assim como modernos doutrinadores, demonstram que, hoje, há divergência no entendimento acerca da oposição biologia versus afeto. Considerando as inúmeras conseqüências do estado de filho, questiona-se: o que deve prevalecer, a biologia ou a socioafetividade? O alcance da socioafetividade na determinação do estado de filiação é de extrema relevância, visto que as conseqüências, além de morais, psicológicas e patrimoniais, podem atingir direitos fundamentais como o da coisa julgada, a segurança jurídica e mesmo a atual indisponibilidade do direito ao estado de filho. Ora, o objeto deste artigo não é a análise processual da questão biológica, apesar de ser tema interessante, o estudo na realidade enfoca como objetivo geral da pesquisa o alcance do critério socioafetivo na determinação das relações familiares, ou seja, visa a explicitar o que deve prevalecer: a biologia ou a afetividade. A metodologia adotada terá como base o raciocínio dialético consistente na argumentação que distingue conceitos, não deixando, no entanto de analisar criticamente a realidade prática. Serão utilizados basicamente quatro tipos de investigações: a histórico- jurídica, na medida em que a situação atual será analisada com base na evolução do direito de família, a jurídica-descritiva, já que será explicitado o contexto atual, a jurídico-projetiva, uma vez que serão demonstradas as tendências indicadas pela jurisprudência dos tribunais superiores, e a jurídico-propositiva, considerando que a autora indicará sua própria opinião e sugerirá mudanças no ordenamento. A FAMÍLIA E A FILIAÇÃO – HISTÓRICO O Código Civil de 1916 estabelecia o casamento como base única para determinar o conceito de família. Os filhos eram conseqüências do casamento e este era o objeto principal do Direito de Família. A Constituição da República de 1988 provocou grande abalo na estrutura jurídica do Direito de Família, posto que trouxe nova ordem constitucional e exigiu que ordenamento civil se adequasse. A Constituição impôs o reconhecimento de outras entidades como familiares, e não apenas o casamento. Passou na realidade a ser a principal fonte jurídica a ser consultada em matéria de direito de família, uma vez que encontrou leis ordinárias anteriores em completo desacordo com a nova ordem. As principais mudanças se deram em razão do reconhecimento de união estável independentemente do estado civil formal das pessoas, da paridade entre os cônjuges, da facilitação do divórcio e da igualdade da filiação, em sede constitucional. A nova ordem constitucional buscou atender aos anseios da sociedade, já que era impossível manter um regulamento que na maioria das vezes não previa normas adequadas à realidade, simplesmente ignorando a existência de outras situações que não o matrimônio. A prole, assim como a união com o objetivo de constituir família, deixaram de necessitar de formalidades para serem considerados como filhos e como família, respectivamente. A Constituição da República passou a reconhecer a união entre qualquer dos ascendentes com os descendentes, assim como a união estável além do casamento, como entidades familiares. Vejamos: “Art. 226. Parágrafo 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. Parágrafo 4º - Entende-se também como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.1” No que tange à filiação, a Constituição previu a impossibilidade de qualquer discriminação entre os filhos, independentemente da origem, biológica ou afetiva. Os filhos passaram a ser completamente independentes do estado civil de seus genitores, inadmitindo qualquer tipo de classificação. Há hoje apenas o estado de filho. Vejamos o artigo 227, parágrafo 6º, da CR: “Art. 227. Parágrafo 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.2” Nessa seara, a busca pela simples condição de filho/genitor passou a ser direito almejado por muitos. O reconhecimento fora do casamento não é mais motivo de vergonha, mais que isso, é fonte de direitos paritários àqueles tidos na constância da união. Tal condição somada à evolução da tecnologia e possibilidade da certeza da paternidade biológica provocaram um aumento da demanda judicial pelo reconhecimento da filiação, assim como dilemas jurídicos acerca da segurança jurídica das relações anteriormente definidas e do direito de não ser cientificamente analisado. 1 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. 2 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Ora, superadas as questões jurídicas trazidas pelo exame do DNA, uma vez que a jurisprudência reconheceu a possibilidade de relativizar a coisa julgada e também decidiu pela presunção de veracidade quando da negativa de fornecer material biológico para exame, a sociedade continuou evoluindo e trazendo novas questões. Hoje, a família é a união de um casal, com prole ou não, de acordo com o texto constitucional. Todavia, na prática, já há reconhecimento de que a família pode existir também entre pessoas do mesmo sexo, é o caso, por exemplo, da legislação previdenciária. Na mesma seara, se tornou necessário analisar a posição da socioafetividade na determinação da filiação. Ora, a situação do filho de criação e mesmo das crianças criadas por homoafetivos não podia continuar sendo ignorada, por isso, a jurisprudência e a doutrina começam a evoluir para tentar manter a adequada fidelidade à realidade social. Analisemos a posição atual da doutrina e jurisprudência acerca da socioafetividade e da desbiologização das relações familiares. A SOCIOAFETIVIDADE Toda a mudança no Direito de Família trazida pela Constituição da República de 1988 demonstra que o afeto foi elevado à condição de valor jurídico. O afeto passou a fator relevante a ser considerado quando das soluções dos conflitos familiares. Até então, as relações familiares seguiam suas próprias origens, ou seja, o patrimônio e a sucessão. A família como entidade era a forma de manter o patrimônio durante a existência da linhagem, de garantir a destinação do patrimônio quando da morte. Esse era o maior objetivo de se constituir uma família. Dessa forma, a adoção, por exemplo, era considerada filiação formal, ou seja, era usada quando o casal não conseguia ter filhos biológicos e precisava de sucessor para o patrimônio. Com o passar do tempo e a evolução, como já dito, o critério biológico passou a ser considerado absoluto e superior às formalidades do casamento ou mesmo da voluntariedade do reconhecimento. Tal absolutismo do critério biológico trouxe a ânsia do reconhecimento da filiação. Era uma forma de obrigar a sucessão patrimonial, de “entrar para a família”, no sentido original da expressão. Tal demanda de reconhecimento de filiação baseada no critério biológico somente reforçava o antigo objetivo de formar família, em nada buscava ou valorizava o afeto, até porque nenhuma decisão judicial pode incidir sobre o amor. Vejamos os comentários da Dra. Dayse Almeida: “A relação de paternidade sempre aflorou importantes discussões na seara jurídica. Isto ocorre porque as relações pai e filho sempre são atuais, haja vista as modificações de pensamento e de cultura de nossa sociedade. Os conceitos de paternidade e maternidade ultrapassaram a biologia, saindo dela para adentrar ao mundo fático contemplando a convivência e o sentimento de afeto em contraposição à relação biológica estabelecida, por vezes forçosa do exame de compatibilidade genética para auferir paternidade.3” Hoje, todavia, a família é vista por um outro ângulo. A família não é apenas a união de pessoas para fins de continuidade patrimonial, a família é o alicerce psicológico e emocional 3 ALMEIDA, D. C. de. A desbiologização das relações familiares. Disponível em: <http://www.pailegal.net>. Acesso em: 14 ago. 2006. dos seres humanos civilizados. O valor do afeto está cada vez mais em evidência no que tange à família, podendo, inclusive ser base para o estado de filiação, tanto quanto o critério biológico. Nessa seara expõe o Dr. Belmiro Welter: “Com o defraldamento do afeto a direito fundamental, resta enfraquecida a resistência dos juristas que não admitem a igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva, havendo a necessidade de ser formatada uma parceria, um espaço de convivência recíproca.4” A SOCIOAFETIVIDADE COMO BASE DA FILIAÇÃO O afeto e o carinho foram elevados a valores jurídicos para possibilitar o reconhecimento da ordem jurídica de situações fáticas que antes ficavam desprotegidas e transmitiam a aparência de injustiça. Trata-se do ordenamento buscando estar em consonância com os anseios da sociedade, como já dito. Atualmente, a socioafetividade vem sendo considerada para fins de estabelecer direitos e deveres como os originariamente encontrados nas relações entre pais e filhos, sem com isso dizer que haja reconhecimento de filiação. São os casos em que são reconhecidos direito de visitação, dever de prestar alimentos ou mesmo a guarda de menor a quem não é genitor biológico, vejamos alguns exemplos: “GUARDA DE MENOR FILHO DE CRIAÇÃO RELAÇÃO DE AFETIVIDADE FAMILIA SUBSTITUTA INTERESSE DE(O) MENOR APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE GUARDA DE MENOR. REQUERIMENTO FORMULADO POR TERCEIROS. OPOSIÇÃO DA GENITORA. Para o deferimento do pedido de guarda feito por terceiros, deve-se levar em conta sempre a preservação dos interesses do menor, e não de seus pais. Menor, que desde os três anos de idade vive sob dependência econômica, psicológica e moral da família substituta, sendo esta a situação jurídica que, no momento, melhor preserva os interesses da menor. Desprovimento do recurso.5” “GUARDA DE MENOR POSSE E GUARDA DE NETO INTERESSE DE(O) MENOR PREVALÊNCIA Guarda requerida por avó paterna. Deferimento. Critério do melhor interesse da criança. O enfoque deste caso deve ser o do melhor interesse do jovem adolescente. No direito brasileiro, o art. 227 da Carta Magna assegura às crianças e adolescentes, dentre outros, os direitos à saúde, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar. Nesta trilha, o Novo Código Civil veio conferir um imenso poder ao julgador quando entender que os filhos não devem permanecer nem com o pai nem com a mãe, podendo deferir a guarda a outrem, preferencialmente a parentes próximos, levando em conta a relação de afinidade e afetividade, muito embora continuem os pais com o poder familiar do qual decorre, entre outros, os direitos de visitação e fiscalização (arts. 15847 c/c 1589). Portanto, diante do conjunto probatório, e da própria manifestação de vontade do jovem, exarada diante deste Desembargador, verifica-se que o melhor é manter a guarda com a avó paterna, conferindo-se aos 4 WELTER, B. P. Insconstitucionalidade do Processo de Adoção Judicial. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 14 ago. 2006. 5 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. AC 2004.001.12533. 18ª C.Cív. Des. HABIB, J. L. (Rel.) Ago. 2004. genitores um amplo direito de visitação. Recursos providos nos termos do voto do Desembargador Relator.6” “ALIMENTOS. UNIAO ESTAVEL. NECESSIDADE. MENOR. GUARDA DE FATO. RELACAO DE AFETO. A FALTA DE UM DOS PRESSUPOSTOS DO ARTIGO 400 DO CODIGO CIVIL, OBSTA O ARBITRAMENTO DA QUANTIA ALIMENTAR EM FAVOR DA MULHER, QUE EMBORA TENHA VIVIDO EM UNIAO ESTAVEL COM O VARAO, RECEBE PENSAO DE UM EX-MARIDO E TEM CONDICOES DE EXERCER ATIVIDADE LABORATIVA PARA COMPLEMENTAR SUA RENDA. E COERENTE FIXAR ALIMENTOS PARA O MENOR, QUE HA DEZ ANOS ESTA SOB A GUARDA DE FATO DO CASAL, QUE TINHA A INTENCAO DE ADOTÁ-LO, CONSIDERANDO A RELAÇÃO DE AFETO ENTRE ELES E A NECESSIDADE DO PENSIONAMENTO. APELO PROVIDO, EM PARTE.7” Ainda, a socioafetividade pode ser origem para a filiação propriamente dita, em todos os seus efeitos. Nesse caso há quatro formas que podem ser adotadas: 3.1 Filiação afetiva na adoção judicial 3.2 Filiação afetiva na adoção à brasileira 3.3 Filiação eudemonista no reconhecimento voluntário e judicial 3.4 Filiação sociológica do filho de criação A NATUREZA JURÍDICA DO ESTADO DE FILIAÇÃO – DIREITO INDISPONÍVEL O artigo 227, §6º, da Constituição da República, assegura a mesma qualificação a todos os filhos, havidos ou não no casamento. Por sua vez, o artigo 16 do Código Civil estabelece como direito da personalidade aquele referente ao prenome e ao sobrenome. Como sabem os operadores do direito, os direitos da personalidade são de natureza indisponível, já que o artigo 11, do Código Civil, determina a impossibilidade de limitação voluntária. Ora, no que tange ao estudo da socioafetividade como fator de determinação da filiação, é necessário esclarecer em que consiste o direito indisponível ao nome. Para os que defendem a supremacia da biologia frente ao afeto, o direito ao nome de alguém somente pode ser exercido em face do genitor biológico. Na realidade, não se trata nem mesmo de possibilidade, mas de dever, visto que a não declaração voluntária da paternidade deve ensejar a imediata ação de ofício do Ministério Público no sentido de averiguar e assegurar a paternidade reconhecida, nos termos do artigo 1º, da lei 8.625/93, c.c. artigo 2º, §4º, da lei 8.560/92. Dessa forma, de acordo com a literalidade dos ditames legais, a filiação consiste não apenas em um direito, mas em verdadeira sujeição, vejamos. Uma vez que a lei retira a faculdade de deixar o filho sem o nome do pai, impondo a investigação e propositura de ação oficiosa pelo Ministério Público, a preponderância da biologia significa que o filho, mesmo não tendo qualquer tipo de relacionamento afetivo com o genitor, tem o dever de levar o nome do genitor biológico. O mesmo, portanto, vale para o 6 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. AC 2003.001.11699. 7ª C.Cív. Des. CARDOZO, R. R. (Rel.) Fev. 2004. 7 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. AC 70002351161. 7ª C.Cív. Des. GIORGIS, J. C. T. (Rel.) Abr. 2001. genitor que sempre terá o direito de exigir o reconhecimento de seu vínculo biológico em relação à prole. Por outro lado, a elevação do afeto valor jurídico proporcionou o posicionamento de que a afetividade pode ser considerada para fins de determinação de filiação. Ora, o reconhecimento da filiação advinda do afeto nada mais é do que a disponibilização do direito da personalidade ao nome, visto que, na realidade, mesmo que não houvesse na prática um nome expresso de pai na certidão de nascimento do filho, como já exposto, o direito a tê-lo em relação ao genitor biológico lhe era também um dever, tendo a filiação caráter de direito indisponível. Ao revés, não permite o ordenamento que o nome de um pai biológico registrado seja substituído por um pai oriundo de uma relação de afeto, justamente porque considera o reconhecimento um ato irrevogável, nos termos do artigo 1.610, do Código Civil. Trata-se da irrevogabilidade da adoção à brasileira. Vejamos. “A dita adoção à brasileira, provavelmente praticada sem consulta à sociedade e no interesse de uma criança, deve ser tratada também de acordo com a legislação brasileira e uma vez admitida a adoção, ainda que à brasileira, deve ser considerada irretratável tal como a adoção é tratada no direito Brasileiro. O Estado Brasileiro não pode tolerar que o status personalis de seus cidadãos possa ficar à mercê de transitórias motivações.”8 Ora, nos parecem incongruentes as posições, já que permitem que o direito/dever de ter o nome do pai biológico no assento de nascimento seja relativizado para a inclusão de um pai afetivo quando o pai biológico ainda não constava no registro, bastando mera declaração de vontade – a chamada adoção à brasileira, mas não permite a substituição dos nomes com base na relação de afeto, assim como não permite a exclusão de um pai registrado voluntariamente sem que haja a devida substituição. Se o direito à filiação é indisponível desde o nascimento, por que pode ser relativizado somente em algumas hipóteses? Fato é que a permissividade da lei que permite a adoção à brasileira baseada no afeto se sobrepondo à biologia, não adota a mesma relação de preponderância em todos os casos. Fato é que o assunto é muito novo e os próprios Tribunais de Justiça do país estão formando seus convencimentos. Vale ressaltar algumas decisões interessantes sobre o tema. “Apelação cível. Ação de anulação de registro civil. Impossibilidade jurídica do pedido. Inocorrência. Registro de nascimento. Nome do genitor. Prova ulterior de erro essencial ao ser declarado o nascimento. Preponderância da paternidade socioafetiva sobre a biológioca. Recurso provido.1. A possibilidade jurídica do pedido consiste em existir, abstratamente, na ordem jurídica, tutela jurisdicional para o conflito de interesses levado ao Poder Judiciário.2. Existente previsão para invalidar ato ou negócio jurídico eivado do vício de erro essencial, afasta-se a alegada carência de ação.3. Em princípio, o registro de nascimento deve espelhar a verdade quanto aos genitores biológicos do registrando.4. Entretanto, se o registrando é menor, deve prevalecer a paternidade socioafetiva, constatado o erro essencial, sobre a 8 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. AC 1.0000.00.311738-9/000(1). 2ª C. Cív. Des. TEIXEIRA, B. (Rel.). 30 set. 2003. biológica. Atingida a maioridade, o filho decidirá qual das duas preferirá.5. Apelação conhecida e provida, rejeitada uma preliminar.”9 “Apelação cível. Ação de adoção. Filiação. Princípio da afetividade. Adotado menor. Prevalência de seu interesse. Adoção concedida. Recurso não provido. 1. A filiação, no estágio atual, lastreia-se mais no princípio da afetividade que na origem biológica. Assim, pais são os que devotam afeto pela criança. E o afeto não deriva da biologia. 2. Sendo menor o adotado, deve-se emprestar primazia ao seu interesse. O interesse dos pais biológicos que abandonaram o filho com poucos meses de idade não pode prevalecer. 3. Comprovada a integração social, afetiva e psicológica do menor na família substituta, confirma-se a sentença que deferiu a adoção. 4. Apelação cível conhecida e não provida.”10 “DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DE MÁXIMA PROTEÇÃO À CRIANÇA E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. A destituição do poder familiar é algo sempre perturbador e traumático para o juiz, pois envolve o poder de declarar desfeitos os vínculos de filiação e parentescos entre os pais e os filhos. Por ser algo tão sério e relevante, o legislador trata a destituição do poder familiar como algo excepcional e enfatiza, no artigo 23 do Estatuto da Criança e Adolescente, que a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do poder familiar. Tal medida é de suma relevância num contexto de um país tão miserável economicamente como o Brasil. Evita-se, assim, a possibilidade de os pais, apenas por serem carentes de recursos materiais, serem destituídos de seus filhos. Contudo, se a falta de recursos materiais não é motivo para destituição do poder familiar, o mesmo não ocorre acerca da carência de amor, afeto, atenção, cuidado, responsabilidade, compromisso e proteção, pois tais sentimentos são imprescindíveis para o pleno e integral desenvolvimento da criança. Sem amor, afeto, atenção, cuidado, responsabilidade, compromisso e proteção dos pais, a criança será imensamente prejudicada, tendo, seriamente, ameaçados seus valores maiores, como, dignidade, respeito, saúde, vida, lazer, alimentação, cultura, liberdade e educação. O abandono afetivo, evidenciado no desinteresse de criar, educar, orientar e formar os filhos, transferindo tal responsabilidade para terceiros, que culmina na ausência de cuidados e falta de comprometimento, impõe a perda do poder familiar. Entender o contrário é fazer pouco caso dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e de proteção integral à criança, que asseguram a ela o direito à vida, à dignidade, ao amor, ao afeto, ao cuidado, à proteção, ao carinho e ao respeito, pois, como pessoa humana em processo de desenvolvimento e como sujeito de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis, tem ela direito de ser acolhida por uma nova família que lhe conceda uma relação de parentesco afetiva. Em todos os litígios em que uma criança esteja envolvida, notadamente 9 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. AC 1.0021.05.930746-8/001(1). 2ª C. Cív. Des. LOPES, C. L. (Rel.). 18 out. 2005. 10 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. AC 1.0431.03.001965-4/001(1). 2ª C. Cív. Des. LOPES, C. L. (Rel.). 31 ago. 2004. aquelas que envolvam pedido de adoção e de destituição de poder familiar, o julgador deve ter em vista, sempre e primordialmente, o interesse da criança.”11 RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA DEVIDA AO RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO AFETIVA Com a descoberta do exame de DNA e a priorização da biologia na determinação da filiação, houve certa discussão acerca da garantia da coisa julgada nos casos já julgados. Após inúmeros debates, a doutrina e a jurisprudência concluíram pela valorização da verdade real e, na ponderação de valores que se faz diante de um conflito de valores, decidiram relativizar a coisa julgada em casos de posterior demonstração de inexatidão da decisão. Atualmente, com a possibilidade de determinação de filiação pelo afeto, surge questão semelhante ainda não analisada pela doutrina. Viu-se que a biologia pôde causar a relativização da coisa julgada, e o afeto, também? Ora, a questão nos parece complexa a ensejar mais que uma simples resposta afirmativa ou negativa, até porque qualquer resposta exata seria sem qualquer fundamento científico doutrinário ou jurisprudencial. Por um lado, se tanto a biologia quanto o afeto podem, em tese, determinar os mesmos efeitos, também devem ter o mesmo tratamento, ou seja, devem ambos ter primazia sobre a coisa julgada. Por outro lado, é necessário ter em mente que, no caso do DNA, estavam em choque dois valores jurídicos de mesma hierarquia: a coisa julgada e a verdade real. Já nos casos de afeto, estarão em oposição outros valores, quais sejam, a coisa julgada, já muitas vezes baseada na verdade real do DNA, e a justiça da decisão, baseada no sentimento de eqüidade e no valor sentimental da instituição familiar. O parâmetro, portanto, de análise do conflito mudou. Considerando que muitas coisas julgadas no campo da filiação, hoje, são diretamente ligadas ao resultado do exame de DNA, cogitar a hipótese da relativização da coisa julgada pela filiação socioafetiva é o mesmo que ponderar a verdade real e a justiça da decisão. Como exposto acima, não há como estabelecer uma regra para o exposto conflito, pois a matéria é demasiadamente recente, não há decisões a respeito, mas a tendência dos modernos entendimentos nos leva a cogitar questões. Na realidade, trata-se apenas de ressaltar uma hipótese que possibilite o pensamento do leitor a respeito. ATITUDES DE AFETO CONSIDERADAS PELOS TRIBUNAIS Na seara na filiação socioafetiva, além de todas as incertezas que surgem na matéria, há ainda o subjetivismo peculiar à atividade judicial no momento de decidir pelas atitudes de afeto capazes de determinar o reconhecimento da filiação. 11 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. AC 1.0024.02.619286-4/001(1). 5ª C. Cív. Des. ELZA, M. (Rel.). 05 mai. 2005. Há quem seja irredutível e diga que, prevendo o ordenamento jurídico a adoção, não há se falar em reconhecimento formal da filiação socioafetiva capaz de alterar o registro de nascimento de alguém e gerar todos os efeitos, inclusive sucessórios. Por outro lado, há quem reconheça o valor jurídico do afeto como fonte de filiação em parte, ou seja, há quem defenda que a filiação advinda do afeto seja considerada somente como fonte de algumas obrigações ou direitos, por exemplo, obrigação de alimentos, direito de visitação, direito/dever de guarda, mas não possa ser geratriz dos efeitos sucessórios. Tais efeitos seriam possíveis somente com a adoção formal. Há um recente acontecimento público que demonstra bastante esse entendimento, trata-se de caso envolvendo pessoas conhecidas da sociedade do Rio de Janeiro. Após mais de um ano de convivência familiar, o marido é informado de que não é genitor biológico da criança por quem se afeiçoou e afastado dela. Luta da justiça para ver reconhecida a paternidade socioafetiva de modo a garantir-lhe o direito de visitação. Ora, no caso em tela, não se cogita a sucessão patrimonial, apenas a manutenção do vínculo afetivo.12 Independentemente de que corrente seja adotada, fato é que a interpretação do relacionamento afetivo entre as partes e o entendimento do juiz são de fundamental importância para a questão. Novamente, trata-se de assunto sem solução definitiva, de cunho subjetivo e diretamente relacionado ao caso concreto. Ora, podemos estabelecer apenas as regras gerais da filiação socioafetiva. A doutrina traduz a socioafetividade pela teoria da aparência, ou seja, há a filiação quando as partes agem diante da sociedade e entre si de forma a parecer pai e filho, se declaram assim e são realmente considerados assim. Mas a análise do caso, repitamos, depende da interpretação jurisdicional. Vejamos alguns exemplos. “AÇÃO DECLARATÓRIA. ADOÇÃO INFORMAL. PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO. PATERNIDADE AFETIVA. POSSE DO ESTADO DE FILHO. PRINCÍPIO DA APARÊNCIA. ESTADO DE FILHO AFETIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE HUMANA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ATIVISMO JUDICIAL. JUIZ DE FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE. REGISTRO. A paternidade sociológica é um ato de opção, fundando-se na liberdade de escolha de quem ama e tem afeto, o que não acontece, às vezes, com quem apenas é a fonte geratriz. Embora o ideal seja a concentração entre as paternidades jurídica, biológica e socioafetiva, o reconhecimento da última não significa o desapreço à biologização, mas atenção aos novos paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares. Uma de suas formas é a "posse do estado de filho", que é a exteriorização da condição filial, seja por levar o nome, seja por ser aceito como tal pela sociedade, com visibilidade notória e pública. Liga-se ao princípio da aparência, que corresponde a uma situação que se associa a um direito ou estado, e que dá segurança jurídica, imprimindo um caráter de seriedade à relação aparente. Isso ainda ocorre com o "estado de filho afetivo", que além do nome, que não é decisivo, ressalta o tratamento e a reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida pelo indigitado pai, como se filho fosse. O ativismo judicial e a peculiar atuação do juiz de família impõe, em afago à solidariedade humana e veneração respeitosa ao princípio da dignidade da pessoa, que se supere a formalidade processual, determinando o registro da filiação do autor, com veredicto 12 AQUINO, R. de. Triste como Bentinho. Cruel como Capitu. Revista Época. Rio de Janeiro: Globo, n. 437, p. 14 a 16, 2 out. 2006.

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Palavras-chave: Socioafetividade. Filiação. Afeto. Biologia. INTRODUÇÃO formação do núcleo familiar, da convivência interpessoal. Hoje, no
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