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O adolescente PDF

563 Pages·2015·2.53 MB·Portuguese
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PRIMEIRA PARTE CAPÍTULO I I Sem conseguir me conter, dei início à história dos meus primeiros passos pela vida, ainda que até pudesse deixar de fazê-lo. De uma coisa estou certo: nunca mais voltarei a escrever minha autobiografia, nem que viva até os cem anos. É preciso nutrir por si mesmo uma paixão excessivamente desprezível para escrever a seu próprio respeito. A única desculpa que tenho é a de que não escrevo como todos escrevem, isto é, visando aos elogios do leitor. Se me deu na veneta escrever palavra por palavra tudo o que me aconteceu desde o ano passado, isso foi motivado por uma necessidade interior: era grande minha estupefação com tudo o que havia acontecido. Registro apenas os acontecimentos, envidando todos os esforços para descartar tudo o que lhe for estranho, principalmente os floreios literários; um literato escreve durante trinta anos e no fim das contas ignora inteiramente por que passou tanto tempo escrevendo. Não sou um literato, literato não quero ser, e acharia uma indecência e uma torpeza arrastar para o mercado literário o íntimo de minha alma e uma bonita descrição dos meus sentimentos. Agastado, porém, pressinto que parece impossível evitar uma descrição completa dos sentimentos e dispensar reflexões (talvez até banais), tão perversivo é o efeito que tem sobre o homem qualquer atividade literária, ainda que ele a realize unicamente para si. Tais reflexões podem até ser muito banais, porque, como você mesmo pode avaliar, é bem possível que do ponto de vista de um estranho não tenham nenhum valor. Mas deixemos tudo isso de lado. Não obstante, eis aqui o prefácio: não haverá mais nada desse gênero. Mãos à obra: se bem que não há nada mais complicado do que empreender alguma coisa, talvez, até, qualquer coisa. II Começo, quer dizer, gostaria de começar minhas notas a partir de dezenove de setembro do ano passado, isto é, exatamente no dia em que pela primeira vez encontrei… Mas explicar quem encontrei, assim, de antemão, quando ninguém sabe de nada, seria vulgar; acho que até esse tom seria vulgar; depois de ter dado a mim mesmo a palavra de evitar floreios literários, estou resvalando nesses floreios desde a primeira linha. Além disso, parece que só a vontade não basta para escrever a contento. Observo apenas que em nenhum idioma europeu parece ser tão difícil escrever como em russo. Acabo de reler o que escrevi e percebo que sou bem mais inteligente que isso que acabo de escrever. Como pode acontecer que um homem inteligente enuncie algo bem mais tolo do que aquilo que seu espírito contém? Já reparei isto mais de uma vez em mim e nas conversas que mantive com as pessoas durante todo esse último ano fatal, e isso me deixou muito angustiado. Embora comece pelo dia dezenove de setembro, para que seja compreensível ao leitor e a mim mesmo, coloco umas duas palavras para dizer quem sou, onde estava antes e, consequentemente, o que ao menos em parte podia ter em mente naquela manhã de dezenove de setembro. III Eu havia concluído o curso colegial (Até a Revolução de 1917, o ensino médio na Rússia era cursado numa instituição chamada gimnázia, diferente do nosso ginásio, que compreendia apenas o que hoje chamamos de ensino fundamental. Daí a tradução de colégio em vez de ginásio. (N. do T.)), agora já caminho para os vinte e um anos. Meu sobrenome é Dolgorúki, e meu pai legítimo é Makar Ivánovitch Dolgorúki, ex-servo doméstico dos senhores Viersílov. De sorte que sou um filho legítimo, embora seja ilegítimo no mais alto grau e minha origem não deixe a mínima dúvida. Aconteceu assim: vinte e dois anos atrás o senhor de terras Viersílov (este sim é meu pai), então com vinte e cinco anos, visitou sua fazenda na província de Tula. Suponho que naquela época ele ainda fosse bastante desprovido de originalidade. O curioso é que esse homem, que tanto me impressionou desde minha infância, que exerceu uma influência tão fundamental em todo o meu modo de ser e até, talvez, contaminou todo o meu futuro — em numerosíssimos aspectos esse homem continua sendo até hoje um completo enigma para mim. Bem, mas deixemos isto para depois. Não dá para narrá-lo de qualquer jeito. Seja como for, esse homem vai mesmo preencher toda a minha narrativa. Foi justo por aqueles tempos que ele enviuvou, isto é, aos vinte e cinco anos. Era casado com uma mulher da família Fanariótov, da alta sociedade mas sem grande riqueza, e tinha com ela um filho e uma filha. As informações que tenho sobre essa esposa que tão cedo o deixou são bastante incompletas e estão dispersas entre os meus dados; ademais, muitas das circunstâncias particulares da vida de Viersílov me escapam, de tão orgulhoso, fechado, presunçoso e displicente que ele sempre foi comigo, apesar de momentos de certa humildade impressionante diante de mim. Contudo, menciono isto para antecipar que ele dilapidou três fortunas em sua vida, e até bastante grandes, num total de quatrocentos e tanto mil rublos, talvez até mais. Hoje, é claro, não possui um copeque… Naquele tempo viera ao campo “sabe Deus por quê”, pelo menos foi o que me disse mais tarde. Os filhos pequenos não moravam com ele, como é de praxe, mas com seus familiares; assim ele agiu a vida inteira com todos os seus filhos, legítimos e ilegítimos. Naquela fazenda havia um número consideravelmente grande de criados domésticos; entre eles figurava o jardineiro Makar Ivánovitch Dolgorúki. Direi uma coisa aqui para me livrar para sempre do assunto: é difícil que alguém tenha sentido tanta raiva de seu sobrenome como eu senti em toda a minha vida. É claro que isso era uma tolice, mas aconteceu assim. Sempre que eu entrava em alguma escola ou me defrontava com pessoas a quem, em virtude de minha idade, devia esclarecimentos sobre mim, em suma, a cada professora, preceptora, inspetor, pope — quem quer que me perguntasse por meu sobrenome e ouvisse que eu era Dolgorúki, achava forçoso acrescentar: — Príncipe Dolgorúki*? *Trata-se do príncipe Iúri Vladímirovitch Dolgorúki (1099-1157), que fundou a cidade de Moscou em 1147. (N. do T.) E todas as vezes eu era obrigado a esclarecer a toda aquela gente ociosa: — Não, simplesmente Dolgorúki. Ao fim e ao cabo, esse simplesmente começou a me deixar louco. Observo, como um fenômeno, que não me lembro de uma única exceção; todos perguntavam. Alguns, ao que parece, não tinham nenhuma necessidade de perguntar; aliás, nem sei por que diabos alguém precisaria perguntar isso. Mas todos perguntavam, todos, sem exceção. Ao ouvir que eu era simplesmente Dolgorúki, o interrogador costumava me medir de cima a baixo com um olhar obtuso e cheio de uma parva indiferença, prova de que ele mesmo ignorava por que perguntara, e ia embora. Meus colegas de colégio eram os mais ofensivos nas perguntas. Como um colegial questiona um novato? Desnorteado e confuso em seu primeiro dia na escola (em qualquer uma), o calouro é a vítima comum: recebe ordens, é provocado, tratado como um lacaio. Um garoto forte, gordo, para de repente diante de sua vítima e por alguns instantes a observa à queima- roupa com um olhar demorado, severo e arrogante. O calouro ficar parado diante dele em silêncio, olha atravessado, se não é medroso, e espera o que vai acontecer. — Qual o teu sobrenome? — Dolgorúki. — Príncipe Dolgorúki? — Não, simplesmente Dolgorúki. — Ah, simplesmente! Imbecil. E ele tem razão: não há nada mais tolo do que alguém se chamar Dolgorúki sem ser príncipe. Essa tolice eu carrego comigo sem culpa. Mais tarde, quando já passei a me zangar muito com isso, à pergunta “És príncipe?” sempre respondia: — Não, sou filho de um servo doméstico, ex-servo da gleba. Depois, quando eu já chegava ao auge da fúria, ao me perguntarem “O senhor é príncipe?”, respondia com firmeza: — Não, sou simplesmente Dolgorúki, filho ilegítimo do meu antigo amo, o senhor Viersílov. Inventei isso já no sexto ano do colégio, e embora tivesse rapidamente me convencido de que era uma tolice, ainda assim não abandonei de pronto essa tolice. Lembro-me de que um dos professores — aliás, foi o único — achou que eu “estava cheio de ideias de vingança e de civismo”. De modo geral, interpretavam essa extravagância com uma contemplatividade que me ofendia. Por fim, um de meus colegas, um rapaz muito sarcástico e com quem conversei apenas uma vez no ano, disseme com ar sério, mas olhando um pouco para o lado: — Tais sentimentos o honram, é claro, e sem dúvida o senhor tem de que se orgulhar; em seu lugar, não obstante, eu não festejaria muito por ser filho ilegítimo… e o senhor está como que comemorando. Desde então deixei de me gabar de ser filho ilegítimo. Repito, é muito difícil escrever em russo: eis que escrevi três páginas inteiras sobre como passei a vida zangado com meu sobrenome, e enquanto isso o leitor na certa já concluiu que fico zangado justo por não ser príncipe, mas simplesmente Dolgorúki. Explicar-me de novo e justificar-me seria humilhante para mim. IV Pois bem, entre aqueles servos domésticos, que já eram muito numerosos, além de Makar Ivánov, havia uma moça, e ela já estava com dezoito anos quando o cinquentão Makar Dolgorúki revelou de repente a intenção de desposá- la. Como se sabe, durante o regime de servidão os casamentos entre servos domésticos se realizavam com a permissão dos senhores e às vezes até por sua ordem expressa. Na época encontrava-se na fazenda uma tia; quer dizer, não era minha tia e sim a própria fazendeira; não sei por que razão a chamaram de tia a vida inteira, não só de minha tia, mas tia de modo geral, e também na família de Viersílov, de quem ela quase chegava a ser parenta de fato. Era Tatiana Pávlovna Prutkóva. Na época ela ainda possuía na mesmo província e no mesmo distrito trinta e cinco almas (Assim eram chamados os servos na Rússia. (N. do T.)). No fundo ela não administrava a fazenda de Viersílov (onde havia quinhentas almas), mas a vigiava como vizinha, e essa vigilância, como ouvi dizer, valia tanto quanto a vigilância de um administrador formado. Pensando bem, nada me importam os seus conhecimentos; quero apenas acrescentar, descartando qualquer ideia de lisonja ou bajulação, que essa Tatiana Pávlovna é uma criatura nobre e até original. Eis que ela não só não rejeitou as propensões matrimoniais do sombrio Makar Dolgorúki (dizem que na época ele andava sombrio) como, ao contrário, ainda as estimulou no mais alto grau. Sófia Andrêievna (a serva doméstica de dezoito anos, isto é, minha mãe) era órfã de pai e mãe havia muitos anos; seu falecido pai, que nutria uma extraordinária estima por Makar Dolgorúki e lhe devia alguma obrigação, também fora servo doméstico e, estando seis anos antes em seu leito de morte, dizem até que a quinze minutos do último suspiro (o que, em último caso, poder-se-ia até tomar por delírio se ele já não estivesse juridicamente incapacitado como servo), chamou Makar Dolgorúki na presença de toda a criadagem e de um padre e legou-lhe em voz alta e em tom insistente, apontando para a filha: “Acaba de criá-la e toma-a para mulher”. Todos ouviram isto. Quanto a Makar Dolgorúki, não sei que sentido ele imprimiu mais tarde ao casamento, isto é, se se casou com grande prazer ou apenas cumprindo uma obrigação. O mais provável é que tenha aparentado total indiferença. Era um homem que naquele tempo já sabia “mostrar do que era capaz”. Não é que fosse um conhecedor de teologia (embora conhecesse o serviço religioso na íntegra e especialmente a hagiografia de alguns santos, se bem que mais por ouvir narrá- las) ou um letrado, não é que fosse, por assim dizer, um servo dado a sentenças; era simplesmente teimoso por natureza, às vezes até ousado; era vaidoso ao falar, definitivo em seus julgamentos e, para concluir, “vivia de modo respeitoso”, segundo sua surpreendente expressão — eis como ele era naquela época. É claro que ganhara o respeito geral, mas dizem que ninguém o suportava. Outra coisa foi quando deixou a condição de servo: então não era lembrado senão como um tipo de santo e alguém que sofrera muito. Isto eu sei com certeza. Quanto ao caráter de minha mãe, apesar da insistência do administrador em enviá-la a Moscou para estudar, Tatiana Pávlovna a manteve em sua casa até os dezoito anos, e deu-lhe alguma educação, isto é, ensinou-lhe corte e costura, postura de moça no andar e até a ler um pouco. Minha mãe nunca aprendeu a escrever direito, e o fazia de modo sofrível. A seus olhos o casamento com Makar Ivánov era assunto há muito resolvido, e ela achou tudo excelente e o melhor que podia lhe acontecer, e caminhou para o altar com o ar mais tranquilo que poderia ter em tais circunstâncias, de sorte que na ocasião a própria Tatiana Pávlovna a chamou de “peixe”. Tudo o que diz respeito ao caráter de minha mãe naquela época ouvi da própria Tatiana Pávlovna. Viersílov chegou à fazenda exatamente meio ano depois desse casamento. V Quero dizer apenas que nunca pude adivinhar e descobrir a contento por onde mesmo começou o caso dele com minha mãe. Como ele mesmo me assegurou no ano passado, corando, apesar de contar tudo com a maior descontração e “espirituosidade”, estou plenamente propenso a acreditar que não houve nenhum romance e que tudo aconteceu por acaso. Acredito que foi por acaso, e essa expressão por acaso é magnífica; ainda assim sempre tive vontade de saber por onde mesmo a coisa pôde começar lá entre eles. Em toda a minha vida eu mesmo sempre detestei e continuo detestando todas essas indecências. É claro que isto não se reduz a uma curiosidade desavergonhada de minha parte. Observo que até um ano atrás eu quase não conhecia absolutamente minha mãe; desde minha infância fui entregue a estranhos, para o conforto de Viersílov, sobre o que, aliás, falarei depois; e, de mais a mais, não consigo imaginar como seria o rosto dela naquela época. Se não era nem um pouco bonita, então com que conseguiu seduzir um homem como o Viersílov daquele tempo? Esta questão me é importante por desenhar um aspecto por demais curioso desse homem. Pergunto por isso, e não movido por libertinagem. Com aquela encantadora simplicidade que o diabo sabe de onde tirava (como que do bolso) ao perceber que era necessário, esse homem sorumbático e fechado me disse, ele mesmo, que naqueles idos era um “fedelho bastante tolo”, não propriamente um sentimental, mas um sei lá o quê; acabara de ler Anton Goriemika e Polinka Saks (Anton Goriemika, novela de Dmitri V. Grigoróvitch (1822-1899) publicada pela primeira vez em 1847 na revista Sovremiênnik (O Contemporâneo), aborda a dura vida do camponês servo. Polinka Saks, novela de Aleksandr V. Drujínin (1824-1864), publicada pela mesma Sovremiênnik em 1847, foi influenciada pelas ideias de George Sand (1824-1876) e tematiza os direitos da mulher. (N. da E.)), duas obras literárias que então exerceram entre nós uma influência incalculável sobre a nova geração. Acrescentou que viera então para o campo talvez por causa de Anton Goriemika — e acrescentou isto com uma extraordinária seriedade. De que forma esse “fedelho tolo” pôde começar seu caso com minha mãe? Acabo de imaginar que se eu tivesse ao menos um leitor, na certa ele desataria a rir de mim como do adolescente mais ridículo que, tendo conservado sua tola ingenuidade, mete-se a refletir e decidir sobre coisas que não compreende. Realmente ainda não compreendo, e o confesso sem nenhum orgulho, porque sei quão tola é essa falta de experiência num homenzarrão de vinte anos de idade; mas vou dizer e mostrar àquele senhor que ele mesmo não compreende isso. É verdade que nada entendo de mulher, e aliás não quero entender, porque vou passar a vida inteira me lixando para isso, e até dei minha palavra. Sei, porém, e ao certo, que um tipo de mulher seduz num piscar de olhos com sua beleza ou seja lá com que for; outro tipo a gente precisa passar meio ano ruminando até saber o que ela tem; e para estudar este tipo e apaixonar-se por ela não basta contemplá-la nem simplesmente estar disposto a qualquer coisa, ainda se precisa ter algum talento. Disto estou convencido, apesar de não saber nada, mas se fosse o contrário seria preciso reduzir de uma

Description:
O adolescente, publicado em 1875, é um dos cinco grandes romances de maturidade de Dostoiévski, ao lado de Crime e castigo, O idiota, Os demônios e Os irmãos Karamazov. Mesmo sendo o menos conhecido dentre eles - devido à incompreensão da crítica do século XIX, que não entendeu sua estrutur
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