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Novas opções, antigos dilemas PDF

16 Pages·2005·0.15 MB·English
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ISSN 1413-389X Temas em Psicologia da SBP—2004, Vol. 12, no 1, 2– 17 Novas opções, antigos dilemas: mulher, família, carreira e relacionamento no Brasil Maria Lúcia Rocha-Coutinho Universidade Federal do Rio de Janeiro Resumo Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa que vimos desenvolvendo acerca da identidade da mulher brasileira de classe média urbana e de como elas estão percebendo a maternidade, os relaciona- mentos afetivos, a sexualidade, o casamento e a carreira profissional, entre outros aspectos importantes de suas vidas. Foram entrevistadas 25 estudantes universitárias de 18 a 28 anos, inscritas em diferentes cursos. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra e os textos delas resultantes foram submetidos a uma análise do discurso a partir das seguintes categorias: maternidade; sexualidade; família; relacionamen- tos; relação com o corpo e aparência física; carreira e profissão. A análise das entrevistas apontou para o fato de que novas atitudes e comportamentos por parte das mulheres são vistos por elas, não só como possí- veis mas também desejáveis. Contudo, sua aceitação ainda esbarra nos antigos discursos definidores das identidades feminina e masculina, resultando na coexistência de discursos contraditórios e, muitas vezes, conflitantes. Para nossas entrevistadas, a mulher de hoje deve ser múltipla: profissional competente, culta, inteligente, boa dona de casa, mãe zelosa, sem deixar de cuidar da aparência e investir na saúde. Palavras chave: discurso, identidade, gênero New options, old dilemmas: women, close relationships, marriage, and career in Brazil Abstract This paper presents part of the results of a research project on the identity of the urban middle class Brazilian women, and on how they perceive maternity, close relationships, sexuality, marriage and career, among other aspects of their lives. We interviewed 25 university students, aged 18 to 28, and enrolled in different courses of private and public universities of Rio de Janeiro, Brazil. The interviews were taped recorded and transcribed and the resulting texts were analyzed according to the following categories: maternity; sexuality; family; close relationships; physical appearance; professional career. The discourse analysis pointed to the fact that new attitudes and behaviors on the part of women are seen as not only possible, but also as desirable. However, their acceptance conflicts with old discourses that used to define women’s and men’s identities. As a result, for our interviewees, contemporary women should be multiple if they want to fulfill theirs and society’s expectations: a competent professional, a cult, intelligent and sensuous woman, a good housekeeper and mother, and an affectionate companion. Key words: discourse, identity, gender. _________________________________________________________________________________ Trabalho apresentado no Simpósio Relações Sociais de Gênero: Possibilidades e Perspectivas de Análise Psicossoci- al, na XXX Reunião Anual de Psicologia das Sociedade Brasileira de Psicologia, Brasília, DF, 2000. Endereço par correspondência: R. Engenheiro Cortes Sigaud, 187 apto. 401. Leblon, Rio de Janeiro, 22450-150 . E- mail: [email protected] 3 M. L. Rocha-Coutinho A Cinderela dos anos 90 formas como temos sido representados nos Este artigo apresenta parte dos resulta- sistemas culturais que nos rodeiam. Sujeitos dos de uma pesquisa que vimos desenvolvendo que fazem parte de grupos marginalizados – acerca da identidade da mulher brasileira de tais como as mulheres, os negros, os índios, classe média urbana e de como elas estão per- entre outros – sempre tiveram suas identidades cebendo a maternidade, os relacionamentos construídas pelo seu Outro, o “colonizador”, e, afetivos, a sexualidade, o casamento e a carrei- portanto, só podem vir a se representar através ra profissional, entre outros aspectos importan- da recuperação de suas histórias, há muito es- tes de suas vidas. condidas por trás do discurso do “colonizador”. A identidade está sendo tomada aqui não Um importante papel exercido pelos mo- como algo fixo, imutável, mas, ao contrário, vimentos de liberação contemporâneos – tais como um construto, historicamente elaborado, como o Movimento Feminista e o Movimento que dissolve as heterogeneidades, as diferen- Negro, por exemplo – tem sido a desconstrução ças, através do uso de um discurso que organi- da identidade que foi, para estes grupos, cons- za características fragmentadas em um todo truída pelo seu Outro “colonizador” (no caso coerente que acaba por definir uma instância das mulheres, pelos homens no patriarcado) e mais geral, como é o caso da feminilidade ou a as tentativas de reconstrução de uma identida- masculinidade. Assim, características espera- de, ou melhor, de identidades que melhor se das, ou próprias de algumas mulheres, tais co- adeqüem a seus modos de ser, a suas próprias mo “fragilidade”, “intuição”, “abnegação”, narrativas. Desta forma, mais recentemente, “altruísmo”, “docilidade”, “sensibilidade”, en- como assinalou Hall (1997): tre outras, acabam por definir a chamada The emergence of new subjects, new “identidade feminina”, isto é, acabam por ser genders, new ethnicities, new regions, vistas como parte de uma “natureza feminina”. new communities, hitherto excluded Esta identidade social unificada, nos pa- from the major forms of cultural rece, é, e sempre foi, uma abstração, embora representation, unable to locate desempenhe importante papel na construção themselves except as decentered or das identidades individuais. Segundo Hall subaltern, have acquired through (1997): struggle, sometimes in very the notion that identity has to do with marginalized ways, the means to speak people that look the same, feel the same, for themselves, for the first time. And call themselves the same is nonsense. the discourses of power in our society, As a process, as a narrative, as a the discourses of the dominant regimes, discourse, it is always told from the have been certainly threatened by this position of the Other”1 (p. 49). de-centered cultural empowerment of the marginal and the local (p. 34). Assim, para este autor, a identidade de um indivíduo “is always in part a narrative, Nas sociedades contemporâneas, em que always in part a kind of representation. It is mudanças rápidas e constantes vêm ocorrendo, always within representation ... It is that which os sistemas globais de significado e de repre- is narrated in one’s self”2(p. 49). sentação cultural, que coexistem com os siste- Identidades, portanto, são, na verdade, mas locais (a esse respeito, ver, por exemplo, continuamente formadas e transformadas em Ianni, 1997; Ortiz, 1994), propagam-se a uma relação aos nossos Outros, de acordo com as ——————————— ——————————— 3. A emergência de novos sujeitos, novos gêneros, 1. A noção de que identidade tem a ver com pessoas ndoesv,a ast ée tennictãidoa edxecsl, uníodvasa sd raesg piõriensc, inpoavisa fso crommasu ndied a- que se parecem, sentem a mesma coisa, se chamam representação cultural, incapazes de localizar-se, a o mesmo não tem sentido. Como um processo, co- não ser como descentrados ou subalternos, foi ad- mo uma narrativa, como um discurso. Ela sempre é quirida por meio da luta, algumas vezes de maneiras contada da posição do Outro. muito marginalizadas, dos meios de falar por si 2. é sempre em parte uma narrativa, sempre é em mesmas, pela primeira vez. E os discursos do poder parte uma espécie de representação. Ela sempre está em nossa sociedade, os discursos dos regimes domi- na representação… É aquilo que é narrado no eu de nantes, certamente foram ameaçados por esse poder alguém cultural de-centrado e local. 4 Novas opções, antigos dilemas velocidade incrível, tornando a ilusão de uma sional. identidade unificada ainda mais intrincada. Contudo, o que se pode observar é que as mulheres continuam a sofrer discriminação, . Os sujeitos contemporâneos confrontam-se ainda que velada, no espaço público: geralmen- com uma multiplicidade de identidades possí- te seus salários são mais baixos do que os dos veis e mutáveis, com as quais eles podem, pe- homens, elas têm menor acesso do que eles às los menos de forma provisória, se identificar. garantias trabalhistas, com freqüência não ocu- O sujeito, assim, que costumava viver a ilusão pam postos de chefia, e continuam sendo, de de uma identidade unificada e estável, está ex- certa forma, segregadas em “guetos” ocupacio- perimentando agora, nem sempre de forma nais, isto é, a maioria ainda está ligada a traba- consciente, uma identidade fragmentada, com- lhos educacionais, assistenciais e à prestação posta, não de uma identidade unitária, mas sim de serviços. Para muitos pesquisadores, inclu- de múltiplas e, freqüentemente contraditórias, sive, é o caráter complementar e secundário da identidades. atividade feminina na esfera produtiva – cará- A definição da identidade feminina sem- ter este muitas vezes reforçado pelas próprias pre caminhou paralelamente a uma maciça dis- mulheres -, aliado, é claro, à inexistência de criminação das mulheres. Isto porque, a partir infra-estrutura de apoio, como creches, que, em dela, foram negadas às mulheres todas as capa- grande parte, permite e legitima esta condição cidades socialmente valorizadas e que sempre discriminatória no mercado de trabalho. garantiram a primazia dos homens na vida pú- Acreditamos que, de forma diferente da blica. Assim, perspicácia intelectual, pensa- discriminação aberta do passado, os mecanis- mento lógico, capacidade e interesses profis- mos de exclusão hoje em dia são freqüente- sionais e políticos, por exemplo, traços geral- mente mais sutis. Estudos como os que foram mente associados aos homens, sempre foram realizados por Crosby (1982, 1984) e Tsui e vistos como antifemininos, afastando as mulhe- Gutek (1984), por exemplo, mostram que, mes- res das esferas de poder e influência social. mo em países onde a discriminação contra a Embora importantes transformações no mulher, quando comprovada, pode ser severa- papel e na posição da mulher em nossa socie- mente punida, como é o caso dos Estados Uni- dade tenham ocorrido nos últimos anos, é pre- dos, o salário médio das mulheres ainda é infe- ciso não superestimar a profundidade dessas rior ao salário de homens que exercem a mes- mudanças, nem tampouco acreditar que as de- ma função e o número de mulheres ocupando sigualdades entre homens e mulheres nos espa- posições de maior poder e prestígio nas empre- ços público e privado tenham sido erradicadas. sas é também inferior ao número de homens, A verdade é, de fato, bem mais comple- mesmo quando as mulheres aparentemente re- xa e muito trabalho necessita ser levado adian- cebem mais promoções do que os homens, o te. É nosso ponto de vista que uma melhor que aponta, inclusive, para o fato de que o efei- compreensão das mulheres da geração atual – to real das promoções para as mulheres pode, que estão constituindo ou por constituir família em muitos casos, ser relativamente pequeno. e ingressando em faculdade ou profissão – po- Parece assim que, ainda hoje, as mulhe- de contribuir para alterar mitos e estereótipos a res continuam a enfrentar barreiras em sua bus- respeito da mulher brasileira hoje. ca por empregos melhores e mais gratificantes. Sem dúvida, como conseqüência do Estas barreiras, em grande parte, são decorren- questionamento da limitação da mulher aos tes de estereótipos tradicionais de gênero que, papéis de esposa, mãe e educadora, e com a apesar de terem sofrido mudanças nos últimos entrada da mulher, especificamente a da classe anos, parecem ainda reforçar a idéia de que média, no mercado de trabalho – uma vez que mulheres e homens têm características distintas a mulher das classes populares quase sempre e foram “talhados” para tipos diferentes de tra- trabalhou para garantir a sua sobrevivência e a balho. Além disso, elas podem ser provenien- sobrevivência da família -, a identidade femini- tes também de dificuldades estruturais por par- na teve que ser alterada, não sem grandes difi- te das próprias mulheres em contrabalançar culdades, para incluir este novo papel: o de carreira e maternidade, esta última um dos pila- trabalhadora e pessoa com uma carreira profis- 5 M. L. Rocha-Coutinho lares da antiga identidade feminina4. e multiplicar, carregando, como suas mães, Isto é, é bem possível que as mulheres uma imensa culpa por não estar se desempe- atuais, assim como suas mães e avós, ainda nhando como gostaria nas duas esferas, culpa relutem em abandonar o controle e poder que esta difícil de ser resolvida. sempre tiveram, mantendo e reforçando a idéia de que a mãe é insubstituível no cuidado de Método seus filhos porque só ela, que os gerou e pariu, Com essas questões em mente, entre- sabe como desempenhar bem esta tarefa (a esse vistamos 25 mulheres universitárias do Rio de respeito, ver Rocha-Coutinho, 1994). Janeiro, com idades variando entre 18 e 28 De qualquer forma, na prática, o que se anos, com o objetivo de observar, entre outras pode observar é que o discurso social, apesar coisas, como as contradições presentes no dis- de ter incorporado este novo papel – o de pro- curso social acerca do papel e da posição da fissional interessada e competente – à identida- mulher na sociedade vão se apresentar nas de feminina e de ter, até certo ponto, questiona- suas expectativas com relação à família do a doutrina da maternidade como essência, (maridos e filhos), à casa, ao trabalho e a si mudou muito pouco a sua definição de mulher. mesmas. Isto é, ele continuou e, nós acreditamos, conti- Optamos por entrevistar universitárias nua a atribuir à mulher todos os encargos com vinculadas a diferentes cursos, por nós agru- a casa e a família, tributário ainda a caracterís- pados em: área bio-médica; área tecnológica; ticas que, no fundo, a sociedade considera até área de ciências humanas e sociais; área de agora como essencialmente femininas. Ou se- letras e artes; e área de ciências jurídicas e ja, na verdade, a identidade feminina não foi econômicas. Com isso, estamos incluindo não substancialmente alterada, mas sim ampliada apenas campos profissionais em que a mulher para incluir este novo papel da mulher. vem atuando regularmente, como é o caso das Como conseqüência da incorporação letras e artes e das ciências humanas e sociais, deste discurso, para muitas mulheres brasileiras como também áreas tradicionalmente masculi- a família permanece uma prioridade, mesmo nas, em que ela tem tido pouca participação, que para isso elas tenham que sacrificar possí- como é o caso das engenharias. veis satisfações em termos de crescimento pro- As mulheres foram entrevistadas em fissional. Desta forma, freqüentemente sem se separado, nos locais e horários de sua conve- dar conta, a mulher continua a contribuir para a niência. As entrevistas tiveram uma estrutura- preservação do esquema machista que prevale- ção invisível, ou seja, apesar de os tópicos ceu na sociedade tradicional e contra o qual ela abordados terem sido estruturados a priori, própria, ainda que amiúde apenas no nível do nenhum roteiro escrito foi utilizado e a ordem discurso, se rebelou. Assim, é possível que a de emergência destes tópicos foi determinada mulher atual continue a ser levada a se dividir pelo próprio fluxo da conversa. Todavia, sempre que a entrevistada não abordava es- ——————————– 4. Em trabalho que objetivou comparar as caracte- pontaneamente algum destes tópicos, o entre- rísticas estereotípicas associadas à mulher e ao ho- vistador formulava perguntas a ele relaciona- mem brasileiros no passado, no presente e no futu- das. ro, por exemplo, Ferreira (2000) observou “uma tendência sistemática de mudanças na grande maio- Fizemos uso de entrevistas abertas por ria das características atribuídas ao estereótipo da acreditarmos que, ao se assemelharem a con- mulher, no sentido das características tradicional- mente masculinas estarem sendo incorporadas ao versas, permitem que os sujeitos se sintam estereótipo feminino, e das características tradicio- mais à vontade e descontraídos, possibilitando nalmente femininas estarem diminuindo a sua im- portância na configuração desse estereótipo” (p. que se tornem visíveis certos processos ínti- 136). Tal fato, contudo, não quer dizer que as mu- mos que, por não serem muitas vezes consci- danças percebidas pelos sujeitos entrevistados te- nham sido de todo incorporadas ao discurso social. entes, são freqüentemente desconhecidos dos Diferentes visões podem conviver, especialmente próprios entrevistados. Além disso, elas per- em períodos de mudanças, como assinalamos ante- riormente, em um mesmo momento nos diferentes mitem que os entrevistadores, a qualquer mo- discursos sociais, especialmente em sociedades mento, esclareçam suas dúvidas ou levem os complexas como as sociedades ocidentais moder- nas. entrevistados a ampliar e desenvolver mais 6 Novas opções, antigos dilemas suas respostas através de perguntas. só então nos expandirmos para fora dela. Foi, Todas as entrevistas foram gravadas e então, a partir dos discursos das entrevistadas transcritas na íntegra, preservando-se, de forma que tentamos inferir comportamentos espera- o mais fiel possível, o que foi dito (como, por dos e/ou desejados e os sistemas ideológicos exemplo, erros gramaticais, expressões colo- subjacentes a estes comportamentos (ver, a quiais, gírias e palavrões, pausas, hesitações e esse respeito, Schiffrin, 1996; Rocha-Coutinho, ênfases). Além disso, foram inseridos comen- 1998). tários, sempre que importantes para nossos ob- A utilização de histórias orais – quer sob jetivos, acerca do que ocorreu nas situações de a forma de histórias de vida, quer sob a forma entrevista, como risos, tosse, nervosismo na de entrevistas abertas que se assemelham a um fala, gesticulação exagerada, pausas, ênfases, “bate-papo”, como as que utilizamos –, bem entre outros. como o uso da análise do discurso para inter- Depois de transcritas as entrevistas, pro- pretar os textos delas resultantes, tem se mos- cedeu-se à análise do discurso a partir das se- trado especialmente útil nos estudos sobre mu- guintes categorias: maternidade; sexualidade; lheres. Se quisermos melhor entender como as família; relacionamentos; relação com o corpo ideologias dominantes – refletidas e reforçadas e aparência física; carreira e profissão. Tais pelos diferentes tipos de discurso a que as pes- categorias resultaram, em grande parte, da pró- soas estão expostas – estruturam as instituições pria fala dos entrevistados, isto é, apesar de e moldam a vida cotidiana das pessoas, é ne- termos em mente algumas questões de análise, cessário ouvir não apenas o que as pessoas as categorias interpretativas emergiram dos dizem de suas vidas concretas, mas também próprios textos resultantes das transcrições das como elas falam sobre suas vidas. entrevistas, o que foi se tornando mais claro à A história oral se apresenta como umas medida que ouvimos e lemos repetidas vezes a das melhores formas de fazer com que as pes- fala dos entrevistados. soas falem sobre suas vidas porque permite que O critério básico adotado para analisar- o pesquisador explore tanto fatos e atividades mos os dados foi o de selecionar os segmentos, como também a experiência emocional de seus ao longo de toda a entrevista, em que os sujei- sujeitos a esse respeito. Ao falar, as pessoas tos faziam referência, direta ou indireta, a cada articulam suas experiências e refletem sobre os uma dessas categorias. A seleção dos trechos significados destas experiências para si pró- de discurso utilizados na análise baseou-se, prias e para os outros. Deste modo podemos sem dúvida, em aspectos estabelecidos a priori obter um quadro mais amplo de como a entre- no projeto de pesquisa, isto é, nas questões vistada se percebe no mundo, de como e a quê mais relevantes para nosso estudo. Contudo, ela atribui valor, e do significado particular por como afirmamos acima, o foco final da análise ela atribuído a suas ações e a seu lugar no mun- emergiu dos textos resultantes das entrevistas5. do. Este tipo de análise nos pareceu mais Este ponto tem se mostrado especial- apropriado, uma vez que vai ao encontro de mente importante nos estudos de mulheres. nossa postura básica em análise do discurso Para elas, a habilidade de valorizar seu próprio que vê o texto sempre como ponto central de pensamento e sua experiência é, muitas vezes, qualquer análise e, assim, qualquer interpreta- bloqueada por dúvidas e hesitações quando sua ção é, em grande parte, limitada por ele. Deste experiência pessoal não está de acordo com os modo, embora nossa interpretação seja, sem mitos e valores que dizem respeito a como uma dúvida, influenciada e direcionada por nossas mulher “deve” se comportar e sentir. Uma a- posições teóricas e ideológicas, procuramos ler nálise mais atenta da linguagem e dos signifi- e analisar os discursos de dentro, a partir dos cados de palavras importantes por elas utiliza- significados codificados na própria fala, para das para descrever suas experiências nos per- mite melhor compreender como as mulheres ——————————— estão se adaptando à cultura na qual estão inse- 5. Para uma discussão mais aprofundada a respeito ridas. da construção de entrevistas e da análise do discur- Tal fato parece estar ligado à situação so delas resultante, ver Rocha-Coutinho, 1998. 7 M. L. Rocha-Coutinho mesma das mulheres na sociedade que, como oscilação entre a aceitação e a não aceitação, assinalam Anderson, Armitage, Jack e Wittner entre a valorização e a desvalorização dos (1990) é, de certo modo, especial: de um lado, estereótipos que as definem e que são negati- com freqüência, elas têm, pelo menos no nível vamente avaliados na sociedade mais ampla. aparente, aceitado os estereótipos que as defi- Uma escuta mais cuidadosa das entrevistas nem como dependentes, passivas, voltadas para que temos realizado com mulheres e uma a- os outros e gentis e, de outro, estes traços são tenção maior à forma por elas empregada em valorizados negativamente na sociedade mais suas respostas tem nos mostrado que, em suas ampla na qual se inserem e é muito difícil, se- falas, elas julgam não apenas a maneira como não quase impossível, para elas viver de acordo estão agindo, pensando e sentindo a respeito com estes estereótipos. Assim, os conceitos de algo, como também se referem a como que dão forma às experiências pessoais das elas deveriam se comportar, pensar e agir de mulheres freqüentemente diminuem e alienam acordo com as expectativas da cultura mais as mulheres e são, desta forma, muitas vezes, ampla7. ao mesmo tempo, valorizados e desvalorizados Resultados pelas mulheres em suas falas, em uma tentativa Análise dos discursos de rejeitar e, ao mesmo tempo, se enquadrar no De maneira geral, podemos afirmar que que delas é esperado e aceito socialmente. O o discurso social que exalta a igualdade de padrão que, em suas mentes, elas continuamen- direitos e deveres convive, na fala de nossas te repelem e, ao mesmo tempo, almejam alcan- entrevistadas, com imensas disparidades em çar é a imagem idealizada de como as mulheres relação aos papéis sociais exercidos por ho- devem pensar e sentir, imagem esta continua- mens e mulheres. Esta questão perpassou to- mente reforçada pela cultura mais ampla e por dos os campos de atuação abordados nas en- suas próprias famílias. trevistas: a maternidade, a vida profissional, o Deste modo, não nos parece suficiente relacionamentos amorosos, o exercício da se- saber, através de uma análise do conteúdo, que xualidade e a própria relação com o corpo e a temas dominam a entrevista. Como observa imagem de si. Nancy Cott (em Anderson, Armitage, Jack e Uma das formas encontradas pelas en- Wittner, 1990): trevistadas para conciliar o antigo discurso The meaning which women ascribe to sobre o feminino com o discurso mais moder- their own behavior is reducible neither no e atual foi situar as questões em termos de to the behavior itself nor to the dominant “escolhas pessoais”. Isto é, as pessoas não ideology. It is derived from women’s mais precisam se submeter a papéis pré-esta- consciousness which is influenced by the ideas and values of men, but is ——————————— nevertheless uniquely situated, reflective 7. Mulheres entrevistadas acerca de sua separação, em que, de uma forma ou de outra, tenham of women’s concrete position within the “expulsado” seus maridos de casa (pedindo para patriarchal power structure6 (p. 103). ele sair ou, até mesmo, pondo os pertences deles do lado de fora da casa e trocando a fechadura), É preciso, assim, ir além do conteúdo de por exemplo, podem começar sua fala afirmando “Meu marido me abandonou”. Esta contradição suas falas, explorando também a forma mesma aparente em seus discursos e sua importância para de seus discursos e o significado das palavras uma melhor compreensão das mulheres e da “duplicidade” de suas mentes a que nos referimos, empregadas por nossas entrevistadas se quiser- só pode, a nosso ver, ser mais bem trabalhada por mos melhor dar conta desta “duplicidade” uma análise que leve em conta não somente o con- teúdo, mas também a forma e a função do discur- mental de nossos sujeitos mulheres, isto é, sua so. Como se pode observar neste exemplo, não apenas “Meu marido me abandonou” é diferente ——————————— de “Pus meu marido para fora de casa” como tam- 6. O significado que as mul heres atribuem a seu pró- bém de “Fui abandonada pelo meu marido”. No 2º prio comportamento não redutível ao comportamen- caso, a mulher é agente da ação, enquanto que no to em si ou à ideologia dominante é derivado da 1º e no 3º o marido é o agente e ela o paciente da consciência das mulheres que é influenciada pelas ação, diferindo, estas duas, na ênfase dada ao a- idéias e valores dos homens, mas está, ainda assim, gente (na 1º) e ao paciente (na 3º). Uma das fun- situada de maneira única na concreta posição refle- ções do uso da 1ª frase pode ser situar-se na posi- xiva das mulheres na estrutura patriarcal. ção de vítima, esperada das e reforçada nas e pelas próprias mulheres. 8 Novas opções, antigos dilemas belecidos. Elas têm liberdade de escolher co- mãe ao filho, pelo menos nos primeiros tempos mo querem viver suas vidas, fazendo o que for de vida, traz à tona uma contradição, já obser- melhor para elas. Este ponto aparece na deci- vada no discurso das mulheres da geração de são de ter ou não filhos, casar ou não casar, suas mães, entre a antiga visão da maternidade, investir ou não em uma carreira profissional, que confinava a mulher no espaço privado do tomar ou não a iniciativa nos relacionamentos lar, e a nova ênfase que é dada, no discurso amorosos, entre outras. As pessoas, assim, social e no discurso das próprias mulheres en- tanto podem escolher repetir o discurso anteri- trevistadas, à inserção da mulher na esfera pú- or, “antigo”, como optar pelo “moderno”. Mas blica, ao investimento em uma carreira profis- a opção das entrevistadas foi, geralmente, pelo sional. Ou seja, apesar de uma suposta escolha meio termo, uma tentativa de conciliação entre aberta às mulheres, o imperativo da indepen- os dois. Ou seja, o discurso da “escolha” situa dência financeira e da realização profissional a mulher entre possibilidades que causam im- confronta-se, na verdade, com o antigo discur- passes que não são vistos como tal. so que reafirma a importância da permanência A maternidade foi definida pela maioria da mulher no espaço doméstico e que identifica das entrevistadas como a essência da condição maternidade e maternação (cuidados com os do ser mulher (“O que é ser mulher... primeiro filhos). é ser mãe” A3; “Mãe é mulher, é mulher mãe” O resultado, como no caso de suas mães, K6), e a inscrição da maternidade no seu corpo é uma tentativa de conciliação dos diferentes serve de base para o discurso que a situa em campos de atuação da mulher, conciliação esta uma posição de maior “capacidade”, maior que, apesar de ser sentida como difícil, é sem- predisposição para cuidar dos filhos e de crian- pre vista como possível e natural, conforme se ças, de maneira geral. Nesse contexto, mesmo pode observar no trecho de discurso a seguir: quando a importância na criação dos filhos é Eu já sei que eu não vou ser boa em tu- atribuída a ambos os pais, a responsabilidade do porque não tem a menor condição. pelo cuidado deles é vista em uma relação assi- Quer dizer, boa em tudo dá prá ser, não métrica em que ao homem parece ser destinado dá prá ser excelente, porque se eu for apenas o papel coadjuvante de auxiliar nessa excelente de um lado vai ser difícil ser tarefa: excelente do outro. Mas, assim, eu que- Apesar de eu achar que pai e mãe têm ro compartilhar, viver todas essas coi- que estar junto sempre e tal, acho que sas, mas de forma, assim, não privilegi- por a criança ter nascido de dentro dela, ar um lado mais do que o outro, mas ela tem uma ligação maior. O filho tem viver todas harmoniosamente, entendeu? uma confiança maior na mãe, entendeu? (entrevistada P1). do que no pai... É óbvio que uma mãe Vemos aí como o discurso atual da tem um papel maior perante o filho do “escolha” parece colocar a mulher diante de que o pai, mesmo por causa daquela impasses que não são por ela percebidos en- coisa simbólica do cordão umbilical, quanto tal, levando-a a buscar, de forma indivi- que se rompeu, mas não rompe nunca, dual, como afirmado por diversas de nossas mais ou menos assim (K2). entrevistadas, uma vivência “harmoniosa” de Filho, a mãe sempre cuida mais, eu acho todas essas suas múltiplas atribuições. Como que, é instinto, né?... eu acho que a mu- no caso de suas mães, as soluções para este lher mesmo ela, ela quer assumir aquilo, impasse são encaradas por essas mulheres co- ela, ela se sente responsável... Ela que mo individuais e não sociais: quer. Já é aquele instinto mãe, eu tenho que proteger, é meu, e o homem não tem Quando os filhos são pequenos, numa isso, né? o homem até ajuda, né? o ho- idade até... Numa idade que não dê prá mem até ajuda a cuidar, e tal mas aque- você colocar numa creche... até pelo le negócio de ficar querendo, sempre do menos uns dois ou três anos ..., eu acho lado, eu acho que é mais mãe (P2). que a mulher tem que parar de trabalhar sim, e ficar em casa (S7). A expectativa da dedicação ilimitada da 9 M. L. Rocha-Coutinho Reduzir um pouco o turno [de trabalho] ela... já está com uma estabilidade prá nos anos iniciais... de crescimento dos que ela possa dar mais atenção ao be- filhos (S6). bê, ao filho.... Estabilidade financeira, emocional, ela já está madura, ela já Aí eu acho que ela tem que organizar o sabe que é isso que ela quer (S1). tempo dela com o tempo dela com o tem- po dos filhos ou enquanto ela tá traba- Ninguém ia conseguir, no auge da mi- lhando os filhos estão na creche, na es- nha carreira de repente me convencer colinha. Quando ela chegar, tem que que aquilo era hora “porque quero ter arrumar um esquema dela sozinha, ou um filho” e bater o pé. Ia ser um pro- dela com o marido, dependendo, se tiver blema.... Até prá poder pensar em ter – de repente é mãe solteira –, organizar filhos, em tudo isso eu acho que você um tempo para que ela consiga fazer a precisa ter segurança financeira (S2). comida, ou o marido ajude, vá buscar as Tem que ter estabilidade, né? prá en- crianças, vá fazer um trabalhinho com gravidar, prá você ter um filho tem que elas, dê atenção a elas, carinho e tal. ter uma estabilidade, mesmo que você Ela tenta conciliar o tempo que tem com não queira casar, não queira o marido, o dos filhos da melhor forma possível você quer ter o filho sozinha, você tem (K3). que ter essa condição de estabilidade Ah, eu... olha... é muito difícil cuidar de financeira (P2). filho trabalhando... Deve tentar concili- E, aqui, cabe assinalar a recorrência da ar as coisas. Tem tempo prá tudo. Tem- idéia de estabilidade financeira como pré- po a gente faz. Esse negócio de não te- condição para a maternidade no discurso das nho tempo, tempo a gente faz, entendeu? entrevistadas. Para a maioria delas, a mulher (N1). só deveria ter filhos quando pudesse, sozinha Numa tentativa de, em grande parte, mi- ou com seu companheiro, dar a eles tudo a- nimizar os efeitos dessas múltiplas exigências e quilo de que necessitam ou que elas acredi- da sobrecarga por elas acarretada, várias entre- tam ser importante. Parte dessa ênfase na vistadas apontaram como recurso o adiamento estabilidade parece estar relacionada a sonhos da maternidade para quando a vida profissional da classe média, como proporcionar aos fi- estiver mais estabilizada e, assim, a mulher não lhos cursos de inglês, informática, natação, precisar estar batalhando nas duas frentes ao etc.. Contudo, a estabilidade financeira fun- mesmo tempo, podendo se dedicar mais inte- ciona, para a maioria das entrevistadas, como gralmente à sua função de mãe: um instrumento facilitador da tão almejada conciliação entre família e trabalho. Um e- Eu acho que tudo tem o seu momento, a xemplo disso seria a viabilização de se ter em hora que você olhou e falou assim: “Eu casa uma empregada e/ou uma babá. cumpri a minha missão com a minha Quanto à opção de ser mãe, a maior carreira”. Quer dizer, “Eu fiz o que eu parte das entrevistadas situou a questão em tinha que fazer, eu cheguei num ponto termos de “escolha pessoal”, uma vez que, em que eu, agora, eu acho que eu preci- segundo elas próprias, outras opções e neces- so ser mãe (P2). sidades, como investir numa carreira profis- Aliada a esta realização profissional, sional, estão abertas atualmente para a mu- surge a importância de uma estabilidade finan- lher. É possível, portanto, pelo menos no ceira para que a mulher possa fazer sua opção plano do discurso, que a mulher opte por não pela maternidade. O melhor momento para ser ter filhos e, mais do que isso, é um direito mãe é, portanto, aquele em que estas duas con- dela, até porque a maternidade, nessa visão dições são, pelo menos em parte, satisfeitas: idealizada que ainda sobrevive, implica numa Eu acho que a hora ideal... meu Deus do disponibilidade muito grande por parte da céu... eu acho que (ri)... na minha opini- mulher. ão, eu acho que a hora ideal é depois É interessante observar, no entanto, que que a mulher tá formada, que ela, que a maioria das entrevistadas afirmou ser a ma- 10 Novas opções, antigos dilemas ternidade sua escolha pessoal, mencionando, outro imperativo, o de que a mulher deve ser inclusive, a impossibilidade de sua realização responsável pela gestão da vida doméstica, sem filhos (“Eu, pessoalmente, jamais me rea- incluindo-se aí o cuidado com os filhos. Tal lizaria sem ter um filho [ri], S2). Parece, por- fato traz conseqüências, tanto para as condi- tanto, que o discurso social, e de suas próprias ções de trabalho que vão ser por elas buscadas mães, acerca da importância da maternidade - uma forma que procura conciliar as diferen- para a vida da mulher foi incorporado por nos- tes “prioridades” (como, por exemplo, a esco- sas entrevistadas. Assim, não ter filhos, mes- lha de Endocrinologia ou Oftalmologia pelas mo para aquelas que afirmaram não gostar estudantes de medicina, áreas que não envol- muito de criança, é associado à frustração, à vem tantos plantões nos finais de semana, o falta de uma realização plena como mulher. Já que impossibilitaria o freqüente e regular in- começa a aparecer também no discurso de vestimento na família, como se pode ver nos algumas mulheres a possibilidade de uma discursos a seguir) -, quanto para a definição “produção independente”, ou seja, ter filhos do momento em que se deve abrir mão do in- sem necessariamente ter um marido ou compa- vestimento em uma delas, o trabalho, para fa- nheiro. vorecer a outra, a família: O discurso social que privilegia a inser- Vou fazer Endocrinologia, porque, como ção da mulher no mercado de trabalho, um dos falei, a minha primeira meta... é a famí- signos da “igualdade” entre os sexos, parece lia. Eu quero me dedicar à família, ma- ocupar também posição central no discurso das rido, filhos. E a Endocrinologia é uma entrevistadas, seja na unânime importância área bem clínica, sem muita emergência, dada ao exercício profissional, seja no descré- sem muito plantão (A4). dito concedido à limitação da atuação da mu- Porque Pediatria você não tem sábado, lher à esfera privada. domingo, feriado, Natal, Ano Novo, na- Eu acho que a pessoa não cresce enfia- da disso. E eu pretendo ter a minha fa- do dentro de casa, lá naquela vidinha mília. Então, eu quero ter o sábado e o dela, só sai prá ir ali na rua, fazer com- domingo prá ficar em casa, sem ter que pras e voltar (K3). sair toda hora, sem ter que fazer plan- Eu acho assim que deve ser horrível vo- tão, emergência. Em Oftalmologia, não cê ficar em casa, sabe? fazendo a mes- tem emergência (A3). ma coisa, todo dia, e, ainda, mais que Fica, então, um pouco mais clara a ra- isso, não ser reconhecida e não ser valo- zão pela qual é apontado por elas, em diferen- rizada (K5). tes níveis, que o casamento interfere no exercí- Aspectos como realização, felicidade, cio profissional: com ele vêm maiores respon- crescimento pessoal e satisfação são situados sabilidades com a casa, necessidade de maior em estreita correlação com o trabalho “fora de disponibilidade de tempo para dedicação ao casa”, trabalho este que, no entanto, apresenta marido, e, depois, aos filhos. Como disse uma algumas peculiaridades, fruto de sua coexis- de nossas entrevistadas, “se você não tiver tência com outra “prioridade”, a família. E é uma estrutura, você não vai conseguir exercer justamente nessa interseção entre as duas bem a sua profissão e dar conta bem da sua “prioridades” (“Eu não posso priorizar só meu casa”, a não ser que a mulher se case com um trabalho ou só minha família, porque assim eu homem especial, que seja companheiro e com- não consigo ir bem com nenhum deles”, A1) preensivo. Podemos, assim, verificar aqui que que vão se configurar os impasses que a mu- nossas entrevistadas parecem manter e refor- lher enfrenta em seu percurso singular de atua- çar – ainda que sem se dar conta – a tão falada ção que, por si só, já a situam bem distante da “dupla jornada” de trabalho feminina. pretensa “igualdade”. Não dividindo ainda responsabilidades O trabalho fora de casa ganha, para nos- no espaço doméstico, o homem continua a ser sas entrevistadas, o estatuto de pré-condição visto como o grande provedor. Assim, do para qualquer possibilidade de realização, algo mesmo modo que ela vê a participação do ho- próximo a um imperativo, que coexiste com mem em casa como uma “ajuda”, ela vê tam- 11 M. L. Rocha-Coutinho bém sua participação na economia doméstica ser, mesmo que ela queira, de repente como um auxílio, especialmente na atual con- tenha que, é, viajar quatro dias e largar juntura econômica do país, que inviabiliza que a casa. Agora, se ela não tiver um ma- apenas um membro do casal trabalhe fora: rido compreensivo, vai ser, vai ser difí- cil práquelas profissões diferentes (K3). Eu acho que isso não foi tanto uma con- quista feminina; não, é uma necessidade O impasse com o qual as mulheres se mesmo. Tudo hoje em dia está muito defrontam parece estar relacionado a uma caro... Aqui é divisão de despesas mes- “infração à norma social”. Ou seja, podemos mo, por causa daquele grande problema ver aí, a permanência do antigo discurso soci- que eu já te falei: necessidade... Tem al, que não considera “normal” que as mulhe- que dividir, senão não dá (S5). res ganhem mais ou se dêem melhor em suas Contudo, mesmo que não se sintam inteira- carreiras do que seus companheiros. mente responsáveis pelo sustento da casa e da No que diz respeito à relação com o família, as mulheres entrevistadas, diferente- corpo e a aparência física, parece que a preo- mente da maioria das mulheres das gerações cupação com a beleza foi distorcida e funda- anteriores, desejam exercer a profissão. A mentada por uma via mais indireta, a da mai- importância concedida ao campo profissional or valorização da saúde e dos meios que a foi, quase sempre precedida, no discurso das promovem: entrevistadas, por uma desvalorização do tra- O corpo é uma máquina. Então, a gen- balho doméstico, ou melhor, por uma desvalo- te tem que saber cuidar dele. Então, rização da dedicação exclusiva a essa ativida- não só pela estética, mas pelo que a de, vista por elas como “limitadora dos hori- gente desempenha, né? (A2). zontes” femininos. Aspectos como realização, É construída, eu acho que se você for felicidade, crescimento pessoal e satisfação educado prá, assim, educado, fisica- são vistos em estreita correlação com o traba- mente, você vai fazer exercícios, não lho fora de casa, e comparados com a peque- prá ficar bonito, mas prá ter saúde nez e a limitação da “vidinha” de dona de ca- (K1). sa. Ou seja, a valorização do corpo pelo Ainda a respeito do exercício profissio- viés do discurso social da importância da saú- nal e da legitimação da atuação da mulher no de surge em oposição ao mero “culto ao cor- mercado de trabalho, nossas entrevistadas vê- po”, que evidencia somente seu caráter estéti- em como difícil a aceitação, por parte de seus co, definido no discurso das entrevistadas companheiros, de que seu salário ou cargo seja pela negativa. Isto porque a preocupação maior ou mais importante do que o deles: estética é por elas situada como um padrão Tem homens que se sentem assim ultra- em grande parte delimitado externamente, ou jados, “pô, já pensou, você é um execu- seja, se impõe à mulher como uma exigência tivo, a sua mulher começa a ganhar do outro, reforçando a antiga imagem da mu- mais que você, pô, alguma coisa tem de lher tomada como objeto. errado comigo, não é porque é ela que A antiga preocupação com a beleza começou a ganhar mais, mas poxa, eu física, a sensualidade e a “boa aparência” pa- também tenho que fazer por onde”. Ti- recem, no entanto, mesmo que de forma con- po assim, ele sente é... pequeno ao lado traditória, ainda fazer parte da vida da mu- dela (K1). lher: A inexistência de problemas, neste caso, Eu acho que tem um pouquinho de im- entre o casal parece condicionado, novamente, portância sim, sabe? gosto de me sentir a características especiais do homem, como bonita, prá me sentir desejável...Eu ser sensível, compreensivo, aberto ao diálogo: vejo que às vezes a mulher quer cum- Depende do marido que ela vai ter. Se prir aquele papel, aquele modelo de ela tiver um marido compreensível, ela mulher perfeita em termos estéticos vai poder fazer a profissão que ela qui- (K5).

Description:
da mulher brasileira de classe média urbana e de como elas estão Brazilian women, and on how they perceive maternity, close relationships, sexuality, As a result, for our interviewees, contemporary women should be multiple.
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