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Notas sobre o conceito de Ação Comunicativa PDF

26 Pages·2014·0.565 MB·Portuguese
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1 HABERMAS, Jürgen. “Notas sobre o conceito de ação comu- nicativa”. [Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury]. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 40, pp. 1-25, abril de 2015. ISSN 1676-8965 ARTIGO http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html Notas sobre o conceito de ação comunicativa* Jürgen Habermas Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury Recebido: 08.01.2015 Aprovado: 01.02.2014 Resumo: Neste importante texto o autor faz uma revisão das teorias da ação nas ciên- cias sociais para neles estabelecer um parâmetro crítico onde situa as bases do conceito de ação comunicativa no interior de sua teoria da ação comunicativa. Palavras-chave: teorias da ação, ação comunicativa, mundo, mundo da vida *Tradução feita a partir do artigo de Habermas, Jürgen. Remarks on the concept of communicative action. In: G. Seebass e T. Tuomela (Orgs). Social action. Boston: D. Reidel, 1985, pp. 151-177. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.14, n. 40, abril de 2015 - HABERMAS 2 Para as teorias sociológicas da que este se limita a analisar os conceitos ação importa clarificar o conceito de de ação social apenas em conexão com ação social. Um caso exemplar de ação os conceitos relativos à ordem social. social se encontra, certamente, na coo- Isso explica algumas das dife- peração entre (pelo menos) dois atores renças mais marcantes entre a teoria que coordenam as suas ações instru- sociológica da ação e a teoria filosófica mentais para a execução de um plano de da ação. A primeira pressupõe o que a ação comum. Portanto, de acordo com segunda converte em tema: especial- este modelo, por exemplo, podem ser mente, o esclarecimento da estrutura da analisados casos elementares do traba- atividade teleológica (e os conceitos lho social. Mesmo nas sociedades sim- relacionados de agência ou de capaci- ples, contudo, o trabalho é apenas um dade de ação e de escolha racional). dos vários casos típicos de interação. Além disso, a teoria sociológica da ação Então, se parte aqui da questão geral de não se interessa por esses problemas como se torna possivel a ação, enquanto básicos relativos à liberdade de vontade social. A pergunta: "Como a ação social e oportunidade, à relação entre mente e se torna possível" é apenas o reverso de corpo, à intencionalidade, etc, que são outra pergunta: “Como a ordem social susceptíveis de serem esclarecidos no se torna possível?”. Uma teoria da ação contexto da ontologia, da teoria do co- que tente responder a estas questões nhecimento e da teoria da linguagem, deve ser capaz de identificar as condi- como na teoria filosófica da ação. Atra- ções sob as quais o alter pode “conec- vés da tarefa de explicar uma ordem tar” as suas ações com as ações do ego. social intersubjetivamente comparti- Esta expressão revela um inte- lhada, a teoria sociológica da ação, em resse pelas condições da ordem social, última instância, não tem escolha senão na medida em que estas condições se a de se utilizar também das premissas encontram no nível de análise das inte- da filosofia da consciência. Portanto, ela rações simples. Para a teoria sociológica não está vinculada, com a mesma inten- da ação, assim, importa não só as carte- sidade que a teoria analítica da ação, ao rísticas formais da ação social em geral, modelo de um sujeito solitário, capaz de mas, também, os mecanismos de coor- conhecimento e de ação, que se enfrenta denação da ação que permitam uma frente à totalidade de estados de coisas concatenação regular e estável das inte- existentes e pode se referir a algo do rações. mundo objetivo, mediante a percepção, Os padrões de interação são bem como intervir nele. Uma teoria da formados, apenas, quando as sequências ação abordada em termos de uma teoria de ação, onde distintos atores fazem a da intersubjetividade pode, por sua vez, sua contribuição, não se quebrem de melhor contribuir para reformular as forma contingente e sejam coordenadas questões que a filosofia até então havia de acordo com regras. Isto se aplica, considerado como de seu domínio também, tanto para o comportamento (BLAU, 1964). estratégico quanto para o comporta- Com os rótulos “acordo” e “in- mento cooperativo. A busca por meca- fluência” se começaa aqui por caracteri- nismos de “conexão” não significa uma zar dois mecanismos de coordenação predecisão em favor de uma abordagem subjacentes aos conceitos mais impor- em pról de uma teoria do consenso ver- tantes da ação social (1). Estes concei- sus uma abordagem relativa a uma teo- tos de ação também decidem sobre ria do conflito. No entanto, a ótica tipi- como se pode pensar a ordem social. Os camente adotada pelo sociólogo é a de conceitos de sociedade neles inerentes prejulgar a teoria da ação, na medida em caracterizam, por seu turno, a suposi- RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.14, n. 40, abril de 2015 - HABERMAS 3 ções que hoje competem entre si, a sa- teorias da ação se distinguem porque ber: a teoria da troca social e o funcio- atribuem ao ator um conhecimento so- nalismo sistêmico; a teoria da ação li- bre a estrutura proposicional. O ator gada aos papéis e a fenomenologia da deve ser capaz de repetir in foro íntimo autorrepresentação ou da apresentação os enunciados de um observador - (Por que o sujeito faz de si; e, finalmente, o exemplo: ‘A’ acredita ou pensa, quer ou interacionismo simbólico e a etnometo- pretende, deseja ou teme, que ‘p’) - e os dologia (2). As unilateralidades e as dirige a si mesmo. Finalmente, as teo- debilidades destas abordagens teóricas rias sociológicas da ação exigem para os são aqui tomadas como uma oportuni- participantes da interação ao menos um dade de introduzir os conceitos de ação conhecimento concordante: as suas in- comunicativa e de mundo da vida (3). terpretações da situação devem se Estas considerações intuitivas necessi- manter suficientemente dissimuladas. tam de uma explicação que, no contexto Por conseguinte, todas estas abordagens deste artigo, não é possível tentar dar. permitem ou admitem também a comu- Mas, é possível enumerar e anotar aqui, nicação linguística, ou, em todo caso, a pelo menos programaticamente, os pas- troca de informações. Além do mais, as sos que precisariam ser dados para tal abordagens sobre teoria da ação se dis- explicação, passos estes desenvolvidos tinguem segundo o acordo postulado pelo autor no livro Teoria da Ação Co- pela coordenação da ação, ou seja, um municativa (4). Em duas digressões se conhecimento comum, ou, simples- adentrará, por um lado, na questão sobre mente, as influências externas de uns qual é a relação que, no que diz respeito atores sobre os outros. à teoria da sociedade, mantêm as cate- Um conhecimento "comum" gorias de "ação estratégica" e de "ação deve satisfazer condições bastante rigo- comunicativa", assim como as catego- rosas. Pois, não apenas se estar ante um rias de “sistema” e de “mundo da vida”; conhecimento "comum" quando os par- e, por outro lado, para apontar os pro- ticipantes concordam em algumas opi- blemas filosóficos cujos esclarecimen- niões; tão pouco, quando sabem que tos podem servir a uma teoria da ação concordam com elas. Chama-se aqui de abordada em termos de uma pragmática comum a um conhecimento que funda formal (5). um acordo, tendo tal acordo como termo de um reconhecimento intersub- 1 - Os mecanismos de coor- jetivo de pretensões de validade susce- denação da ação. As teorias sociológi- tíveis de crítica. Um acordo significa cas da ação acima mencionadas coinci- que os participantes aceitam um conhe- dem em algumas decisões básicas. Em cimento como válido, ou seja, como primeiro lugar, optam por uma análise intersubjetivamente vinculante. So- que parte da perspectiva interna dos mente, graças a este, pode um conheci- agentes. Uma ação pode ser entendida mento comum, atender e cumprir - na como a realização de um plano de ação, medida em que contêm componentes ou que se baseia em uma interpretação da implicações relevantes para uma se- situação. O ator, ao levar adiante o seu quência de interações, - as funções de plano de ação, domina uma situação. A coordenação da ação. As vinculações situação da ação constitue um frag- recíprocas apenas surgem de convicções mento de um ambiente interpretado pelo intersubjetivamente compartilhadas. Em ator. Este fragmento se constitui à luz contrapartida, o influxo externo (no das possíbilidades de ações que o ator sentido de influência causal) sobre as percebe como relevantes para a execu- convicções do outro participante da in- ção do seu plano de ação. Das aborda- gens sobre teoria do comportamento as RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.14, n. 40, abril de 2015 - HABERMAS 4 teração tem apenas um caráter unilate- engano, não pode se contar subjetiva- ral. mente como acordo. A sua capacidade As convicções compartilhadas de coordenar a ação perde, assim, sua intersubjetivamente vinculam os parti- eficácia. Um acordo perde o caráter de cipantes da interação em termos de re- convicções comuns quando o afetado se ciprocidade; o potencial de razões asso- dá conta de que este acordo é resultado ciado às convicções constitue, então, de influência externa que outro exerceu uma base aceita, em que se pode estar sobre ele. para apelar para o bom senso do outro. Um ator só pode intentar tal Este efeito de vínculo não pode estar intervenção se na execução do seu plano presente em uma convicção onde um se de ação adota uma atitude objetivante limita a induzir no outro (por meio de em direção ao seu entorno e se orienta uma mentira, por exemplo). As convic- diretamente pelas consequencias que a ções monológicas, ou seja, aquelas que, sua ação terá, quer dizer, se orienta di- em seu foro íntimo, cada um possui retamente para o êxito de sua ação. Em como verdadeiro ou correto, só podem contrapartida, os participantes da intera- afetar as atitudes próprias de cada um. ção que tratam de coordenar de comum No modelo do influxo ou da influência acordo os seus respectivos planos de unilaterais (ou de uma influência recí- ação e só os executam sob as condições proca) as razões, por melhores que se- do acordo alcançado, adotam a atitude jam, não podem constituir instância de realizativa (performativa) de falantes e apelação. Neste modelo, as boas razões ouvintes, e se entendem entre si, uns aos não ocupam nenhuma posição privilegi- outros, sobre a situação dada e a forma ada. Não é o tipo de meios que conta, de dominá-la. A atitude de orientação mas o êxito da influência sobre as deci- para o êxito isola o agente dos outros sões de um oponente, mesmo que se atores que encontra em seu entorno; deva tal êxito ao dinheiro, à violência, porque, para ele, as ações de seus ad- ou às palavras. versários, assim como o resto dos in- Acordo e influência são meca- gredientes da situação, são simples nismos de coordenação da ação que se meios e restrições para a realização do excluem um ao outro, ou, ao menos, a seu próprio plano de ação; os objetos partir do ponto de vista dos participan- sociais não se distinguem neste aspecto tes. Os processos de compreensão não dos objetos físicos. A atitude de orien- podem se realizar simultaneamente com tação para a compreensão, ao contrário, a intenção de chegar a um acordo com torna os participantes da interação de- um participante da interação e de exer- pendentes um dos outros. Estes depen- cer influencia sobre ele, quer dizer, de dem das atitudes de afirmação ou de obrar causalmente algo nele. Na pers- negação de seus destinatários, porque só pectiva do participante, um acordo não podem chegar a um consenso com base pode ser forçado, não pode ser imposto no reconhecimento intersubjetivo das por uma parte ou pela outra - seja ins- pretensões de validade. trumentalmente, por intervenções dire- 2 - O conceito de ação teleo- tas na situação de ação do outro, seja lógica ocupa, desde Aristóteles, o cen- estrategicamente, por meio de um im- tro da teoria filosófica da ação. O ator pacto calculado sobre as atitudes do realiza os seus fins ou faz com que se próximo. Objetivamente, é verdade que produza o estado desejado elegendo, em um acordo pode vir forçado ou indu- uma determinada situação dada, os zido; porém, o que a olhos vistos se meios que ofereçam perspectivas de produz por influência externa, através êxito, e os aplicando de forma ade- de recompensas, ameaças, sugestão ou quada. Central nesse processo é o plano RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.14, n. 40, abril de 2015 - HABERMAS 5 de ação apoiado na interpretação de enquanto as teorias não empiristas da uma situação e endereçado à realização ação substituem os processos de influ- de um fim, plano de ação este que per- ência por processos de compreensão (b). mite uma decisão entre as alternativas (a) O modelo teleológico da de ação. Esta estrutura teleológica é ação se amplia e se converte em um constitutiva de todos os conceitos de modelo de ação estratégica quando, no ação, porém, os conceitos de ação social cálculo que o agente faz do seu próprio se distinguem pelo modo como pro- êxito, pode entrar expectativas sobre as põem a coordenação das ações indivi- decisões de pelo menos outro ator, que duais. Uma primeira classificação deve também é agente e atua orientando-se à se iniciar a partir do ponto de vista se as consecução de seus fins. Este modelo de abordagens sobre a teoria da ação con- ação é muitas vezes interpretado nos tam com a influência empírica do ego termos utilitaristas; então, se supõe que sobre o alter, ou com o estabelecimento o ator escolhe e calcula os meios e fins de um acordo racionalmente motivado a partir do ponto de vista da maximiza- entre ego e alter. Pois, de acordo com ção de utilidade ou de expectativas de que se conte com um ou com o outro, os utilidade. Mas, desse conceito de ação participantes da interação adotam uma estratégica não se pode obter um con- atitude orientada para o êxito ou adotam ceito de ordem social se não se juntam a uma atitude orientada para a compreen- ele outros presupostos adicionais. Da são. Presupõe-se aqui, além, que estas interpenetração de cálculos egocêntricos atitudes também podem se identificar, de utilidade só podem resultar padrões em circunstâncias apropriadas, recor- de interação, ou seja, concatenações rendo ao conhecimento intuitivo dos regulares e estáveis de interações desde participantes. que as preferências dos atores envolvi- O modelo estratégico de ação dos se complementem e as respectivas se satisfaz com a explicitação das regras constelações de interesses se equili- da ação orientada para o êxito, enquanto brem. os outros modelos de ação especificam Os dois casos exemplares, para condições de consenso e acordo, sob os os quais, em termos gerais, isso pode quais os participantes da interação po- levar a supor, são as relações de inter- dem executar seus respectivos planos de câmbio que se estabelecem entre ofer- ação. A ação regulada por normas pres- tantes e demandantes que competem supõe um consenso valorativo entre os livremente entre si, bem como as rela- participantes, a ação dramatúrgica se ções de poder que, no marco das rela- apoia na relação consensual entre um ções de dominação admitidas, se esta- "ator" que de forma mais ou menos im- belecem entre os que mandam e os que pressionante coloca-se entre o palco e obedecem. Na medida em que as rela- seu público, e a interação linguistica- ções interpessoais entre sujeitos que mente mediada que exige o estabeleci- atuam visando o seu próprio êxito vêm mento de um consenso, seja por assumir reguladas pela troca e pelo poder, a so- o papel do tipo interpretativo e uma ciedade se apresenta como uma ordem projeção ou execução do papel do tipo instrumental. Esta especializa as orien- criativo, ou através de processos coope- tações da ação em termos de concorrên- rativos de interpretação. As teorias de cia por dinheiro e por poder e coordena poder e de intercâmbio desenvolvidas a as decisões por meio de relações de partir do modelo de ação orientada para mercado ou de relações de dominação. o êxito pressupõem que os participantes Chamo de instrumentais as ordens pu- da interação coordenam as suas ações ramente econômicas ou abordadas ex- através de influências recíprocas (a), clusivamente em termos de política de RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.14, n. 40, abril de 2015 - HABERMAS 6 poder, porque surgem de relações inter- Tal meio possui as proprieda- pessoais, nas quais os participantes da des de um código com cuja ajuda se interação se instrumentalizam uns aos transmitem as informações do emissor outros como meios para atingir os seus ao receptor. Mas, ao contrário do que próprios fins. acontece com as expressões gramaticais Pois bem, Durkheim, Weber e de uma língua, as expressões simbólicas Parsons insistiram, repetidas vezes, que de um meio de regulação ou de con- as ordens instrumentais não podem ser trole, por exemplo, os preços, levam estáveis, e que as ordens sociais, exclu- incrustada algo assim como uma estru- sivamente assentadas sobre a interpene- tura de preferências - podem informar o tração de constelações de interesses, não receptor sobre uma oferta e, simultane- podem ser duradouras. E, de fato, as amente, motivá-lo a aceitar a oferta. Um teorias sociológicas do poder e da troca meio de regulação ou de controle possui não sabem se ajustar sem tomar alguns uma estrutura tal, que as ações do alter empréstimos do conceito de uma ordem permanecem conectadas com as ações normativa. Assim, por exemplo, P. Blau do ego evitando os riscos que os proces- (1964) complementa as categorias uti- sos de formação de consenso compor- litaristas básicas de sua teoria da troca tam. Este automatismo se produz por- introduzindo idéias de justiça, sobre que o código do meio só vale: cuja base os atores podem avaliar como Para uma classe bem delimi- mais ou menos "justo" o que recebem tada de situações padrões, de outras pessoas em troca do que lhes Que vêm definidas por uma dão; e, em sua teoria do conflito, por constelação unívoca de inte- outro lado, R. Dahrendorf (1959) com- resses preende a dominação no sentido inte- gralmente weberiano de um poder ins- Que as orientações de ações titucionalizado que necessita legitima- dos participantes vêm afixa- das por um valor generali- ção. Ambos, em seus esforços teóricos, zado; fornecem componentes normativos que alteiam uma ordem concebida, de outro Que o alter só pode decidir modo, em termos instrumentais, mas, no basicamente entre duas op- modelo de ação estratégica que sustenta ções alternativas; ambas as teorias, se tratam de corpos Que o ego pode controlar es- estranhos. sas posturas ou opções do Uma solução mais consequente alter por meio de ofertas e é oferecida pelo funcionalismo sistê- Que os atores só podem se mico que substitui o conceito de ação orientar através das conse- estratégica pelo de interação regida por quências que suas ações pos- meios. A ordem social é entendida de sam ter, quer dizer, eles pos- antemão conforme o modelo de siste- suem a liberdade de tomar mas que conservam os seus limites, ou suas decisões, exclusiva- seja, com independência da perspectiva mente, a partir de um cálculo sobre as probabilidades de conceitual de uma teoria da ação. Me- êxito de sua ação. lhor dito, o conceito de ação social é, por seu turno, cortado no molde de um No caso exemplar do dinheiro, conceito de meio de comunicação ou de a situação padrão vem definida pelo meio de regulação, erguido nos termos processo de troca de produtos. Os parti- da teoria dos sistemas (HABERMAS, cipantes no processo de troca se atêm 1980). aos interesses econômicos, tratando de otimizar, no emprego de recursos escas- RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.14, n. 40, abril de 2015 - HABERMAS 7 sos para fins alternativos, a relação en- algo a outro por meio de sinais, o que tre gasto e rendimento. A utilidade aqui indiretamente provoca este outro, atra- é o valor generalizado, ou seja, signifi- vés de uma elaboração inferencial da cando o termo generalizado aquilo que percepção da situação, para uma idéia liga por igual, em todos os lugares e em particular ou para conceber uma inten- todos os momentos, todos os atores que ção específica; ou porque um ator, com participam das operações monetárias. O base em uma prática cotidiana de co- código dinheiro esquematiza as possí- municação já estabelecida, logre atar o veis tomadas de posição de alter, de outro a seus próprios fins, quer dizer, o modo que este pode aceitar ou recusar a motive, através da manipulação dos oferta de troca de ego e, com ele, adqui- meios linguísticos, a adotar o compor- rir uma posse ou renunciar a esta aqui- tamento desejado, instrumentalizándo-o, sição. Sob estas condições, os partici- portanto, para o próprio êxito de sua pantes da troca podem condicionar as ação. Só que o uso da linguagem orien- suas ofertas através de suas tomadas de tado às consequências a que se pre- posição recíprocas, sem ter que se tende, perde o telos (inscrito na própria apoiar na disponibilidade à cooperação, linguagem) de um acordo a que os par- que é o pressuposto da ação comunica- ticipantes da interação podem alcançar tiva. O que se espera dos atores é, antes, entre si sobre algo. uma atitude objetivante frente à situação (b) Os modelos de ação não es- da ação e uma orientação racional para tratégica pressupõem como componente as consequências da ação. A rentabili- essencial da coordenação da ação um dade constitui o critério no qual se cal- uso da linguagem orientado ao enten- culam as chances de êxito da ação. dimento, mesmo sob aspectos unilate- O conceito de uma interação rais de acordo com o tipo de ação em regida pelo meio dinheiro surge da idéia questão. Na ação regulada por normas o de ação estratégica mediada pelo mer- entendimento serve como uma atualiza- cado, ao mesmo tempo em que a subs- ção de um acordo grupal normativo já titui, e se encaixa a um conceito de so- vigente na ação dramatúrgica, que se ciedade articulado nos termos da teoria refere a uma autorepresentação para um dos sistemas, que não precisa ser com- público, onde os "atores" se impressio- plementado por quaisquer princípios ou nam uns aos outros. Utiliza-se aqui es- por conceitos básicos do tipo normati- ses dois conceitos tal como eles foram vistas. introduzidos, respectivamente, por Par- As interações estratégicas tam- sons (1949) e Goffman (1959; 1967). bém são entendidas, normalmente, O conceito de ação regulada como linguisticamente mediadas, mas, por normas não se refere ao comporta- dentro deste modelo os atos de fala mento de um ator em princípio solitário, mesmo são assimilados como ações que encontre a sua volta outros atores, orientadas ao êxito. Pois, para os sujei- mas, a membros de um grupo social que tos que atuam estrategicamente, que orientam sua ação através de valores labutam diretamente, quer dizer, sem comuns. O ator particular segue uma qualquer mediação, para a realização de norma (ou a transgride), no interior de seus planos de ação, a comunicação uma dada situação, onde se estabelecem linguística é um meio, como qualquer as condições nas quais a norma se outro, que se serve da línguagem para aplica. As normas expressam um acordo provocar efeitos perlocutórios. Sem dú- vigente em um grupo social. Todos os vida que existem numerosos casos de membros de um grupo, em que norma entendimento indireto: seja no caso, por se aplica, tem o direito de esperar uns exemplo, em que um ator dá a entender dos outros que, em determinadas situa- RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.14, n. 40, abril de 2015 - HABERMAS 8 ções, executem ou omitam as ações a A ação regulada por normas que a norma se refere. O conceito cen- responde a uma ordem social entendida tral de observancia de uma norma signi- como um sistema de normas reconheci- fica o cumprimento de uma expectativa das ou de instituições vigentes. E, cer- generalizada de comportamento. Um tamente, nas instituições que se conside- comportamento esperado não possui o ram mais sólidas e melhor integradas sentido cognitivo da expectativa de um permanecem as orientações valorativas sucesso prognosticado, mas, o sentido normativamente exigidas através das normativo de que os membros do grupo constelações de interesses. têm o direito de esperar um determinado Este conceito de sociedade é comportamento. Este modelo normativo posto, no entanto, em termos tão estrei- de ação é o que se encontra subjacente à tos que não deixa espaço para as opera- teoria do papel social. ções construtivas do próprio ator; se O conceito de ação dramatúr- expondo, então, à objeção de pressupor gica não se refere primariamente a ne- um sujeito de ação "supersocializado" nhum ator solitário, nem a um determi- (D. Wrong). Em vez disso, o ator pres- nado membro de um grupo social, mas, suposto na ação dramatúrgica se encon- aos participantes da interação que cons- traria “subsocializado”. Neste último tituem um público, uns para os outros, modelo de ação não há lugar categorial onde realizam apresentações de si mes- ou conceitual para as ordens institucio- mos. O ator suscita em seu público uma nais. O modelo conta, em vez disso, determinada imagem e uma certa im- com uma pluralidade de identidades que pressão de si, revelando a sua subjetivi- se afirmam a sí mesmas, e que se co- dade de forma mais ou menos calculada munica entre si por meio da autoapre- no sentido de uma imagem com que sentação. quer si apresentar. Todo agente pode Certamente este modelo expres- controlar o acesso público à esfera de sivista outorga um espaço às operações suas próprias intenções, pensamentos, criativas do ator, mas, revela deficiên- atitudes, desejos e sentimentos, etc, a cias que resultam simétricas às debili- que só ele tem acesso privilegiado. dades do modelo normativista. En- Na ação dramatúrgica os parti- quanto os sujeitos supersocializados se cipantes aproveitam essa circunstância e limitam a reproduzir as mesmas estrutu- controlam a sua interação por meio da ras institucionalizadas na ordem social; regulação e do controle do acesso recí- as identidades, tão ricamente facetadas, proco à subjetividade de cada um. O conceito central da autorrepresentação autoapresentação varia desde a comunicação significa, portanto, não um comporta- sincera das próprias intenções, desejos e mento expressivo espontâneo, mas, a sentimentos, etc, até a uma manipulação cínica estilização da expressão de suas pró- das impressões que um ator provoca nos outros. prias experiências, realizadas visando à Ainda mais, tais impressions manegement imagem que alguém quer dar de si a um subsumem sob o conceito de ação dramatúrgica, quando parece estar dirigida a um público que, espectador. Este modelo de ação dra- candidamente,quer dizer, sem dar-se conta de matúrgica serve, em primeiro lugar, intenções estratégicas, se imagina estar para descrições de interação orientada assistindo a una representação orientada para o em termos fenomenológicos; porém, até entendimento. Caso contrário, é uma forma sutil o momento não tem sido desenvolvido de exercício simbólico-expressivo do poder, ou seja, de uma versão especial de ação orientada em uma abordagem teórica capaz de ao êxito, de onde se pode deduzir (um bom fazer generalizações1. exemplo desse segundo caminho pode ser encontrado nos trabalhos de Pierre Bourdieu) 1Ademais, Goffman faz um uso equivocado um conceito correspondente de sociedade deste modelo de ação. A escala de articulado em relação a uma teoria do poder. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.14, n. 40, abril de 2015 - HABERMAS 9 fazem exibição de si mesmas, e são A partir desta perspectiva, a or- concebidas como seres que estão acima dem social se esfuma em uma sequência da sociedade ou que, por assim dizer, contingente de ficções geradas inter- penetram-na de fora. subjetivamente, que só emergem da Estas deficiências comple- corrente de interpretações para, a seguir, mentares são superadas pelo interacio- de novo desmoronar. No interior de nismo simbólico. Por assumir e desem- cada sequência de interação os intér- penhar papéis se entende o mecanismo pretes renovam a aparência de uma so- de um processo de aprendizagem que ciedade normativamente estruturada, um neófito constrói o mundo social du- mas, na verdade, não fazem mais do que rante o desenvolvimento de sua própria tatear a partir de um frágil consenso identidade. instantâneo para outro. Porém, uma Este conceito de assunção e de- ação comunicativa que se torne asse- sempenho de papéis, ou role-taking, melhada à hermenêutica de um eterno permite compreender a individuação diálogo, que dá volta sobre si mesma, só como um processo de socialização e fornece, na melhor das hipóteses, um vice-versa, a socialização como um pro- conceito de ordem social que coincide cesso de individuação. O interacionismo sociedade com proteção, reflexivamente simbólico suprime a oposição abstrata refratada, das tradições culturais. entre as ordens institucionais e a plura- Começar-se-á mostrando por lidade de identidades individuais, e isso que o interacionismo simbólico e a et- em um processo de formação circular nometodologia falham na sua tarefa de que constitui por igual a ambas as par- desenvolver um conceito de ação social tes, isto é, as ordens sociais e os atores. em que a construção linguística de um Este modelo reage com estas inovações consenso cumpra a função de coordenar conceituais às já mencionadas deficiên- a ação. Esta explicação serve como um cias de conceituação da ordem social, conceito-chave da ação comunicativa, porém, sem renovar, no entanto, o con- cuja fertilidade será demonstrada em ceito mesmo de ação social. No intera- uma teoria da sociedade, já desenvol- cionismo simbólico todas as ações soci- vida, em detalhe, em outro lugar (HA- ais são compreendidas de acordo com o BERMAS, 1987)2. modelo de interações socializadoras; 3 - Tanto o interacionismo mas, não se encontra nele explicado simbólico quanto a etnometodologia como a linguagem pode funcionar como de inspiração fenomenológica assu- um meio de socialização. mem a tarefa de esclarecer o meca- As abordagens fenomenológi- nismo de coordenação linguística da cas e hermenêuticas, especialmente a ação orientada ao entendimento; mas, etnometodologia fundada por H. Gar- com os conceitos de role-taking e inter- finkel têm abordado este problema. En- pretação, causam um redemoinho à tenden as ações sociais como processos análise se direcionando para outros fins, cooperativos de interpretação em que os e apresentam a ação comunicativa como participantes da interação negociam um meio pelo qual vagueiam os proces- definições comuns da situação para co- sos de socialização ou se fingem ordens ordenar os seus planos de ação. Essas normativas. Este desvio da finalidade abordagens, porém, se concentram de original da teoria da ação, no entender forma exclusiva sobre as operações in- do autor, tem o seu começo na falta de terpretativas dos atores, o que faz pare- cer que as ações se dissolvem nos atos de fala, e as interações sociais tacita- 2No que se segue, não se apontará como mente se dissolve nas conversações. citações as reproduções literais de conceitos desenvolvidos pelo autor em outros trabalhos. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.14, n. 40, abril de 2015 - HABERMAS 10 cuidado das tradições de pesquisa, que sujeitos que atuam comunicativamente, se iniciam a partir de G. H. Mead e A. (b) se se reformula o conceito de situa- Schütz, em distinguir entre os conceitos ção a partir da perspectiva da ação ori- de mundo e mundo da vida; isto é, entada à compreensão, como forma de aquele no qual os participantes da inte- distinguir, nas contribuições do mundo ração se entendem entre si, não deve ser da vida, entre contribuições formadoras contaminado com o a partir de onde os de contexto e contribuições constituti- participantes iniciam e discutem suas vas, e (c) se se abandona, no final, a operações interpretativas. perspectiva do ator, para ver qual é a A ação orientada ao entendi- contribuição que a ação comunicativa mento é reflexiva, daí que as ordens permite, por seu lado, à manutenção e à institucionais e as identidades dos su- geração do mundo da vida. jeitos agentes apareçam em dois pontos. (a) As relações com o mundo. A Como ingredientes tematizaveis da situ- partir de Frege e do primeiro Wittgens- ação da ação, podem se tornar explici- tein um conceito semântico de mundo tamente conscientes pelos agentes. como totalidade foi imposto. Ao se Como recursos para gerarem o processo acrescentar ainda o conceito interven- de comunicação em si, permanecem em cionista de lei e de causalidade (WRI- segundo plano e, deste modo, igual aos GHT, 1971), desenvolvido a partir de padrões de interpretação culturalmente Peirce, se pode prover o mundo objetivo acumulados, só se encontram presentes de um índice temporal e definí-lo como como conhecimento implícito. Certa- totalidade dos estados de coisas conec- mente o interacionismo e a fenomeno- tados conforme às leis, que existem ou logia elegeram uma abordagem que os que podem surgir em um determinado obriga a distinguir entre temas e recur- tempo, ou pode se produzir por inter- sos, quer dizer, em manter separados os venção. planos que representam o conteúdo e a No plano semântico, tais esta- constituição dos processos de entendi- dos de coisas são considerados como mento. Contudo, como analiticamente representados pelo conteúdo ou como não desenvolvem tais complexos sufici- conteúdo proporcional das orações entemente, em cada um dos casos acaba enunciativas ou das orações de intenção. por autonomizar um destes aspectos. Os pressupostos ontológicos relaciona- Em um caso, cobra primazia ao dos ao modelo da atividade teleológica ponto de vista da constituição. A estru- introduzido acima pode ser explicitados, tura de perspectivas inscritas nos papéis então, com a ajuda deste conceito de sociais ocupa tanto a atenção que a ação mundo. comunicativa se encolhe e reduz a di- Para poder entender um pro- mensão relevante para os processos de cesso como uma ação teleológica, se socialização, ou seja, a dimensão da deve atribuir ao ator (pelo menos impli- assução de papéis. No outro caso, a ela- citamente) a capacidade de formar opi- boração cooperativa de temas passa niões e de submetê-las à apreciação, para o primeiro plano, tanto que, tudo o assim como de conceber intenções e as que resta como recurso é o conheci- executar. Com esta atribuição se pode mento cultural; e a ordem social, por supor que o ator pode adotar, em princí- assim dizer, submerje em diálogos. pio, duas relações com o mundo obje- A reprodução cultural do tivo: pode conhecer os estados de coisas mundo da vida só pode ser conceituada existentes e pode trazer à existência os adequadamente se (a) se identifica as estados de coisas desejados. referências ao mundo ou as relações As mesmas premissas ontoló- com o mundo onde se encontram os gicas também se aplicam ao conceito de RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.14, n. 40, abril de 2015 - HABERMAS

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