NOTAS DE VARIA´VEL COMPLEXA JORGE MUJICA IMECC-UNICAMP SEGUNDO SEMESTRE DE 2008 SUMA´RIO 1. Fun¸co˜es holomorfas ..............................................................1 2. S´eries de potˆencias ...............................................................5 3. Integra¸ca˜o sobre curvas.......................................................13 4. Teorema de Cauchy em abertos convexos ...........................21 5. Teorema de Liouville e teorema de Morera ........................30 6. Zeros de fun¸co˜es holomorfas ...............................................33 7. Teorema da aplica¸ca˜o aberta ..............................................41 8. Teorema do mo´dulo ma´ximo...............................................47 9. Singularidades isoladas .......................................................52 10. Residuos .............................................................................58 11. As equa¸co˜es de Cauchy-Riemann .......................................67 12. Fun¸co˜es harmoˆnicas ............................................................71 13. O nu´cleo de Poisson e o problema de Dirichlet...................78 14. Espa¸cos topolo´gicos de fun¸co˜es cont´ınuas ..........................83 15. Espa¸cos topolo´gicos de fun¸co˜es holomorfas ........................89 16. O plano estendido ...............................................................91 17. Transforma¸co˜es de Mo¨bius .................................................95 18. Teorema de Runge ............................................................100 19. Teorema de Cauchy em abertos arbitra´rios ......................110 20. S´erie de Laurent................................................................116 21. Homotopia e homologia ....................................................124 22. Abertos simplesmente conexos .........................................128 23. Teorema da aplica¸ca˜o de Riemann ...................................132 Bibliografia .............................................................................137 1. Func¸˜oes holomorfas A menos que digamos o contr´ario, U e V denotara˜o subconjuntos abertos na˜o vazios de C. Dados a ∈ C e r > 0, denotaremos por D(a;r) o disco aberto com centro a e raio r. Denotaremos por D(a;r) o disco fechado correspondente. Ou seja D(a;r) = {z ∈ C : |z −a| < r}, D(a;r) = {z ∈ C : |z −a| ≤ r}. Denotaremos por D o disco aberto unita´rio, ou seja D = D(0;1). 1.1. Definic¸˜ao. Seja f : U → C, e seja a ∈ U. O limite f(z)−f(a) f(cid:48)(a) = lim , z→a z −a se existir, ´e chamado de derivada de f em a. Diremos que f ´e holomorfa ou anal´ıtica se existir a derivada f(cid:48)(a) para cada a ∈ U. Denotaremos por H(U) o conjunto de todas as fun¸co˜es holomorfas f : U → C. 1.2. Proposic¸˜ao. Cada fun¸ca˜o holomorfa f : U → C ´e cont´ınua. Demonstrac¸˜ao. Para cada a ∈ U tem-se que (cid:20) (cid:21) f(z)−f(a) lim[f(z)−f(a)] = lim (z −a) = f(cid:48)(a)·0 = 0. z→a z→a z −a Se X ´e um espa¸co topol´ogico, denotaremos por C(X) o conjunto de todas as fun¸c˜oes cont´ınuas f : X → C. 1.3. Proposic¸˜ao. Sejam f,g ∈ H(U), e seja c ∈ C. Enta˜o f +g, cf e fg pertencem a H(U). Para cada z ∈ U tem-se que (f +g)(cid:48)(z) = f(cid:48)(z)+g(cid:48)(z), (cf)(cid:48)(z) = cf(cid:48)(z), (fg)(cid:48)(z) = f(cid:48)(z)g(z)+f(z)g(cid:48)(z). Em particular H(U) ´e uma a´lgebra, ou seja H(U) ´e um espa¸co vetorial e um anel, e a multiplica¸ca˜o do anel ´e uma aplica¸ca˜o bilinear. 1 A demonstra¸ca˜o desta proposi¸ca˜o´e an´aloga ao caso de func¸˜oes de vari´avel real, e ´e deixada como exerc´ıcio. 1.4. Teorema (regra da cadeia). Sejam f ∈ H(U) e g ∈ H(V), com f(U) ⊂ V. Enta˜o g ◦f ∈ H(U) e (g ◦f)(cid:48)(z) = g(cid:48)(f(z))f(cid:48)(z) para cada z ∈ U. Primeira demonstrac¸˜ao. Fixado a ∈ U, temos que (cid:20) (cid:21) g(f(z))−g(f(a)) g(f(z))−g(f(a)) f(z)−f(a) lim = lim · z→a z −a z→a f(z)−f(a) z −a g(w)−g(f(a)) f(z)−f(a) = lim · lim = g(cid:48)(f(a))f(cid:48)(a). w→f(a) w−f(a) z→a z −a Esta demonstrac¸˜ao ´e muito natural, mas infelizmente n˜ao ´e va´lida em geral. Ela s´o vale se soubermos que f(z) (cid:54)= f(a) quando z (cid:54)= a. Em particular esta demonstra¸c˜ao ´e v´alida se a fun¸c˜ao f for injetiva. Para demonstrar o teorema em geral, ou seja sem qualquer restri¸c˜ao sobre f, precisamos ser mais cuidadosos. Segunda demonstrac¸˜ao. Fixado a ∈ U, seja φ : U → C definida por f(z)−f(a) φ(z) = −f(cid:48)(a) se z (cid:54)= a, φ(z) = 0 se z = a. z −a De maneira ana´loga, seja ψ : V → C definida por g(w)−g(f(a)) ψ(w) = −g(cid:48)(f(a)) se w (cid:54)= f(a), ψ(w) = 0 se w = f(a). w−f(a) Por defini¸ca˜o de derivada, limφ(z) = 0 = φ(a), lim ψ(w) = 0 = ψ(f(a)). z→a w→f(a) Segue que g(f(z))−g(f(a)) = [g(cid:48)(f(a))+ψ(f(z))][f(z)−f(a)] = [g(cid:48)(f(a))+ψ(f(z))][f(cid:48)(a)+φ(z)](z −a), 2 e portanto g(f(z))−g(f(a)) lim = g(cid:48)(f(a))f(cid:48)(a). z→a z −a De maneira ana´loga podemos provar o teorema seguinte. 1.5. Teorema (regra da cadeia). Seja I um intervalo aberto em R, e seja U aberto em C. Seja γ : I → C uma fun¸ca˜o deriva´vel, e seja f : U → C uma fun¸ca˜o holomorfa tais que γ(I) ⊂ U. Enta˜o f ◦γ : I → C ´e deriva´vel e (f ◦γ)(cid:48)(t) = f(cid:48)(γ(t))γ(cid:48)(t) para cada t ∈ I. 1.6. Teorema. Seja U aberto e conexo em C, e seja f ∈ H(U). Se f(cid:48)(z) = 0 para todo z ∈ U, enta˜o f ´e constante. Demonstrac¸˜ao. Fixemos a ∈ U, e seja A = {z ∈ U : f(z) = f(a)}. Basta provar que A ´e aberto e fechado em U. Para provar que A ´e fechado em U, seja (b ) uma sequ¨ˆencia em A que n converge a um ponto b ∈ U. Segue que f(b) = limf(b ) = f(a), e portanto n b ∈ A. Para provar que A´e aberto em U, seja b ∈ A, seja r > 0 tal que D(b;r) ⊂ U, e seja c ∈ D(b;r). Se definimos γ(t) = b+t(c−b) se 0 ≤ t ≤ 1, enta˜o segue do Teorema 1.5 que (f ◦γ)(cid:48)(t) = f(cid:48)(γ(t))γ(cid:48)(t) = f(cid:48)(γ(t))(c−b) = 0 se 0 < t < 1. Segue que f ◦γ ´e constante, e portanto f(c) = f(γ(1)) = f(γ(0)) = f(b) = f(a). Logo c ∈ A, e portanto D(b;r) ⊂ A. Exerc´ıcios 1.A. Prove a Proposi¸c˜ao 1.3. 3 1.B. Sejam f,g ∈ H(U), e seja V = {z ∈ U : g(z) (cid:54)= 0}. Prove que o quociente f/g pertence a H(V) e que para cada z ∈ V tem-se que (cid:18)f(cid:19)(cid:48) f(cid:48)(z)g(z)−f(z)g(cid:48)(z) (z) = . g [g(z)]2 1.C. Prove que a fun¸c˜ao f(z) = zn ´e holomorfa em C para cada n = 0,1,2,.... Prove que f(cid:48)(z) = 0 se n = 0, e f(cid:48)(z) = nzn−1 se n = 1,2,3,... 1.D. Prove que a func˜ao f(z) = 1/zn ´e holomorfa no aberto U = {z ∈ C : z (cid:54)= 0} e f(cid:48)(z) = −n/zn+1 para cada n = 1,2,3,... 1.E. Prove o Teorema 1.5. 1.F. Seja a ∈ D, seja U = {z ∈ C : z (cid:54)= 1/a}, e seja φ : U → C definida a por z −a φ (z) = . a 1−az (a) Prove que D ⊂ U, φ ∈ H(U), φ (0) = −a e φ (a) = 0. a a a (b) Prove que: 1 φ(cid:48)(0) = 1−|a|2, φ(cid:48)(a) = . a a 1−|a|2 4 2. S´eries de potˆencias 2.1. Teorema de Abel. Para cada s´erie de potˆencias P∞ c (z −a)n n=0 n em C, existe R ∈ [0,∞] tal que: (a) A s´erie P∞ c (z−a)n ´e absolutamente convergente se |z−a| < R. n=0 n A convergˆencia ´e uniforme em cada disco D(a;r), com 0 < r < R. (b) A s´erie P∞ c (z −a)n ´e divergente se |z −a| > R. n=0 n Diremos que R ´e o raio de convergˆencia da s´erie. Demonstrac¸˜ao. Seja R ∈ [0,∞] definido por 1 p (1) = limsup n |c |. n R n→∞ Provaremos que este R verifica (a) e (b). A fo´rmula (1) ´e conhecida como fo´rmula de Cauchy-Hadamard. (a) Seja 0 < r < R, e seja r < s < R. Enta˜o 1 1 p > = lim sup n |c |. n s R m→∞n≥m p Como a sequ¨ˆencia (sup n |c |)∞ ´e decrescente, existe m ∈ N tal que n≥m n m=0 p 1 sup n |c | < . n s n≥m Para z ∈ D(a;r) tem-se que ∞ ∞ X X(cid:16)r(cid:17)n |c (z −a)n| < < ∞. n s n=m n=m Logo a s´erie P∞ c (z−a)n converge absolutamente e uniformemente para n=0 n z ∈ D(a;r). (b) Seja z ∈/ D(a;R), e suponhamos que a s´erie P∞ c (z − a)n seja n=0 n convergente. Enta˜o a sequ¨ˆencia (c (z−a)n)∞ converge a zero, e ´e portanto n n=0 limitada. Logo existe M > 0 tal que |c (z −a)n| ≤ M para todo n ≥ 0. n 5 Segue que √ p n M n |c | < para todo n ≥ 0, n |z −a| e portanto p 1 1 limsup n |c | ≤ < , n |z −a| R n→∞ contradi¸ca˜o. 2.2. Definic¸˜ao. Diremos que f : U → C ´e representa´vel por s´eries de potˆencias se para cada a ∈ U existem um disco D(a;r) ⊂ U e uma s´erie de potˆencias P∞ c (z −a)n tais que n=0 n ∞ X f(z) = c (z −a)n para cada z ∈ D(a;r). n n=0 2.3. Teorema. Se f : U → C ´e representa´vel por s´eries de potˆencias, enta˜o f ´e holomorfa e f0 tamb´em ´e representa´vel por s´eries de potˆencias. Se ∞ X (2) f(z) = c (z −a)n para cada z ∈ D(a;r), n n=0 enta˜o ∞ X (3) f0(z) = nc (z −a)n−1 para cada z ∈ D(a;r). n n=1 As duas s´eries de potˆencias tem o mesmo raio de convergˆencia. Demonstrac¸˜ao. Sejam R e R0 os raios de convergˆencia das s´eries em (2) e (3), respectivamente. Para provar que R ≥ R0, seja |z −a| < R0. Pelo Teorema de Abel ∞ X |nc (z −a)n−1| < ∞, n n=1 e portanto ∞ ∞ X X |c (z −a)n| ≤ |z −a| |nc (z −a)n−1| < ∞. n n n=1 n=1 6 Pelo Teorema de Abel R ≥ |z −a|, e portanto R ≥ R0. Para provar que R0 ≥ R, seja |z −a| < R. Pelo Teorema de Abel ∞ X |c (z −a)n| < ∞. n n=0 Se |z − a| = 0, enta˜o ´e claro que P∞ |nc (z − a)n−1| < ∞. Suponhamos n=1 n que 0 < |z −a| < R, e sejam |z −a| < r < s < R. Como 1 1 p > = lim sup n |c |, n s R m→∞n≥m existe m ∈ N tal que p 1 n |c | < para todo n ≥ m. n s √ Como lim n n = 1, sem perda de generalidade podemos supor que n→∞ √ s n n < para todo n ≥ m. r Segue que X∞ 1 X∞ (cid:18)|z −a|(cid:19)n |nc (z −a)n−1| ≤ < ∞. n |z −a| r n=m n=m Pelo Teorema de Abel R0 ≥ |z −a|, e portanto R0 ≥ R. Falta provar que f0 ∈ H(U) e que a s´erie em (3) representa f0 em D(a;r). Seja ∞ X g(z) = nc (z −a)n−1 para cada z ∈ D(a;r). n n=1 Para completar a demonstra¸ca˜o provaremos que f0(b) = g(b) para cada b ∈ D(a;r). Sem perda de generalidade podemos supor que a = 0. Sejam z,b ∈ D(0;r), com z 6= b. Enta˜o ∞ ∞ X X f(z)−f(b) = c (zn −bn), g(b) = nc bn−1. n n n=1 n=1 7 Logo f(z)−f(b) X∞ (cid:18)zn −bn (cid:19) −g(b) = c −nbn−1 n z −b z −b n=2 Notemos que zn −bn −nbn−1 = [zn−1+zn−2b+zn−3b2+...+z2bn−3+zbn−2+bn−1]−nbn−1 z −b = (zn−1 −bn−1)+(zn−2 −bn−2)b+...+(z2 −b2)bn−3 +(z −b)bn−2 = (z −b)[zn−2 +zn−3b+...+zbn−3 +bn−2] +(z −b)[zn−3 +zn−4b+...+zbn−4 +bn−3]b +...+(z −b)(z +b)bn−3 +(z −b)bn−2 = (z −b)[zn−2 +2zn−3b+...+(n−2)zbn−3 +(n−1)bn−2] Seja |b| < s < r. Para |z| < s temos que (cid:12) (cid:12) (cid:12)zn −bn (cid:12) (cid:12) −nbn−1(cid:12) ≤ |z −b|[sn−2 +2sn−2 +...+(n−1)sn−2] (cid:12) z −b (cid:12) (n−1)n = |z −b| sn−2. 2 Segue que (cid:12) (cid:12) ∞ (cid:12)f(z)−f(b) (cid:12) |z −b| X (cid:12) −g(b)(cid:12) ≤ n(n−1)|c |sn−2. n (cid:12) z −b (cid:12) 2 n=2 Como s < r ≤ R, segue da primeira parte da demonstra¸ca˜o que ∞ ∞ ∞ X X X |c sn| < ∞, |nc sn−1| < ∞ e |n(n−1)c sn−2| < ∞. n n n n=0 n=1 n=2 Segue que (cid:12) (cid:12) (cid:12)f(z)−f(b) (cid:12) lim(cid:12) −g(b)(cid:12) = 0, z→b(cid:12) z −b (cid:12) e portanto f(z)−f(b) f0(b) = lim = g(b). z→b z −b 8