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Neuroética: o cérebro como órgão da ética e da moral PDF

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Neuroética: o cérebro como órgão da ética e da moral Raul Marino Júnior Resumo Este artigo discorre sobre o substrato anatômico e neurofisiológico no cérebro desperto que estabelece a normalidade ou o patológico de nossos atos, escolhas, decisões, resolução de dilemas éticos, caráter, emoções e consciência moral, os quais dependem de sistemas e áreas específicas. Para isso, utiliza pesquisas da moderna neuroimagem e testes neuropsicológicos que mapeiam as áreas cerebrais. Dentre essas, os lobos frontais, o sistema límbico, o giro cíngulo, a amígdala temporal e o hipocampo, cuja análise neurofisiológica demonstra que regulam o controle da normalidade psíquica, o autocontrole e, também, o controle da agressividade, violência, livre-arbítrio, responsabilidade e doença mental. Conclui que, se lesadas, essas áreas produzirão respostas anormais ou patológicas nos âmbitos da cognição, julgamento moral e pensamento ético. Palavras-chave: Ética. Neuroética. Neurociências. Julgamos oportuno trazer este tema aos médicos brasileiros, por meio desta revista, no intuito de rever alguns conceitos básicos, muitas vezes esquecidos, sobre os mecanismos cere- brais ou neuropsiquiátricos que regem a consciência, a inte- ligência, o comportamento e a conduta: nosso cérebro – e não o coração, como querem os literatos e os poetas –, o Raul Marino Júnior qual é, sem dúvida, a sede do que consideramos ser a nossa Professor titular emérito de humanidade, nossa pessoalidade, bem como da ética, da Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da USP, professor livre- moral, das emoções e sentimentos, do que é certo ou errado, docente de Bioética da Faculdade bom ou mau. O cérebro nos torna únicos como indivíduos de Medicina da USP - Instituto Oscar Freire, membro da e nos empresta nossa personalidade, individualidade, cará- Neuroethics Society (USA) e ter, ideais, memórias, habilidades criativas e nosso Eu ou presidente do Instituto Brasileiro de Ética e Bioética (Ibraeb) self, nossa mente e tantas outras funções. Vários artigos têm sido publicados sobre o papel de determi- nadas áreas cerebrais também como sede do comportamen- to ético e moral, na solução dos dilemas éticos, na manipu- lação do cérebro por meio de drogas, intervenções neuroci- rúrgicas, sua estimulação elétrica ou magnética, estudando, inclusive, a neurobiologia da dependência de drogas e fár- macos 1, 2. Revista Bioética 2010; 18 (1): 109 - 120 109 A nova disciplina da neuroética, ultimamen- O neurocientista Gazzaniga acrescenta que a te também denominada de encefaloética, neuroética é mais do que uma bioética para o segundo sugere Jonsen3, pode ser considerada cérebro: ela é a reflexão e o exame das implica- importante extensão da bioética aplicada, ções sociais das doenças, normalidade, mortali- especificamente, ao estudo do tratamento de dade, estilo de vida e a filosofia de vida, informa- problemas relacionados a essas funções cere- dos nosso entendimento dos seus mecanismos brais. Esses estudos vêm atraindo o pensa- cerebrais subjacentes 5. Trata-se, portanto, de mento bioético para setores que compreen- um esforço para estudar bioeticamente a filo- dem desde a filosofia, passando pela psiquia- sofia da vida em bases cerebrais: é o cérebro tria, neurologia, direito, até interesses públi- humano estudando seu próprio funcionamen- cos, políticos e sociais. Essa nova especialida- to, tornando a boa ciência ainda melhor com de vem sendo criada por eminentes cientistas, uma boa ética 6. que trabalham sobre o mais complexo órgão de nosso corpo. Esses pesquisadores se sen- Assim, a moderna neurociência tem permitido tem responsáveis pelo entendimento que os a instauração de novos tratamentos nas doen- leigos poderão vir a ter em relação a tais pes- ças do cérebro e, também, o surgimento de quisas e sua importância em nossos assuntos, surpreendentes e inesperadas aplicações do passando a denominá-las como ética das ciên- progresso tecnológico neurocientífico, no nível cias do cérebro, conforme uma de suas defini- individual e da medicina em geral, afetando, ções 3: a neuroética é o estudo das questões inclusive, a percepção de novos condicionantes éticas, legais e sociais que surgem quando os culturais em função de novas tecnologias. Em achados científicos são levados à prática médi- função desses progressos, vem se tornando ca, interpretações legais, saúde e normas sociais necessária a definição de novos aspectos nos que englobam achados no campo da genética, julgamentos éticos quanto à prática médica neuroimagens, diagnóstico e previsão de doen- dessas aplicações em relação ao funcionamen- ças, quer sejam examinadas por médicos, advo- to cerebral na saúde e nas doenças. gados, juízes, seguradoras ou legisladores e o público em geral ao lidar com esses fatos 4. Notemos que a bioética, desde suas origens, vem se dedicando, progressivamente, a pro- Cunhado pelo presidente da Dana Foundation, blemas relacionados a diferentes órgãos parti- William Safire, o termo neuroética é definido culares: a era atual da bioética começou com como o exame do que é certo ou errado, bom ou a análise dos transplantes de rim e sua asso- mau, em relação ao tratamento do cérebro huma- ciação à diálise, movendo-se depois na direção no, seu aperfeiçoamento, sua boa invasão, ou dos transplantes cardíacos, ressuscitação de manipulação preocupante, incluindo a neuroima- paradas cardíacas, interrupção do suporte pul- gem, a robótica, interfaces entre o cérebro e o com- monar e respiratório, não nos olvidando dos putador, psicofarmacologia e neuroestimulação problemas ligados à morte encefálica na sele- aumentativa das funções cerebrais normais 4. ção de doadores 7. 110 Neuroética: o cérebro como órgão da ética e da moral Surge, assim, a ética do cérebro, a encefaloéti- normas sociais. Existiriam diferenças, então, ca, com o estudo dos problemas surgidos entre pacientes que sofrem dano ou trauma quando sondamos e atuamos sobre esse órgão, cerebral tardiamente em suas vidas, e perde- nas circunstâncias em que são usados fárma- ram a capacidade de cumprir as regras sociais cos e analisadas neuropsicologicamente suas e controlar seu comportamento, e pacientes funções mais elevadas, nobres e mesmo subli- que sofreram dano encefálico quando crianças mes 8. Dessa classe de estudo surgem áreas e se tornaram incapazes de aprender as mes- como, por exemplo, a moderna neuroteologia mas regras ou fazer escolhas certas. e a neurofilosofia – essa última como impor- tante desenvolvimento que agrega o estudo Essas questões levam a pensar seriamente na das neurociências e da filosofia da mente que, antiga teoria de Aristóteles sobre o pragma- segundo P. Churchland 9, procura por uma tismo das virtudes como a mais compatível teoria unificada sobre a mente e o cérebro. com as modernas aquisições das neurociên- cias. De acordo com essa teoria, nossas ações Essas modernas disciplinas, hoje bastante particulares são avaliadas como reflexos do desenvolvidas por meio dos conhecimentos caráter do indivíduo, uma certa disposição neurofisiológicos que dispomos, sobretudo da para agir de determinada maneira, baseada neuroimagem, nos permitem entender como em julgamentos morais e intuições 10. Nosso as decisões éticas e morais e os valores são cérebro, como vemos, tornou-se um sistema modulados em nosso cérebro. O papel do sis- evoluído, um instrumento de tomar decisões, tema límbico e das emoções nas escolhas que interage com o ambiente e nos permite o morais, bem como o da razão e cognição no aprendizado de regras que governam suas res- autocontrole e na ação criminosa ou imoral, postas, felizmente automáticas. Entretanto, é o que atualmente os neurocientistas procu- os neurocientistas não podem acusá-lo de ram identificar, como base neurocientífica culpabilidade, do mesmo modo que um relo- para o raciocínio ético, que será a principal joeiro não pode culpar um relógio. As neuro- função da neuroética. ciências jamais conseguirão encontrar a cor- relação do cérebro com a responsabilidade, Com vistas a responder tais problemas, nos porque ela é algo que atribuímos ao humano parece que o comboio neuroético partiu de e não aos cérebros; pois a responsabilidade é sua estação com destino conhecido, rumo às uma escolha social. Os comportamentos éti- explicações sobre nossos raciocínios morais – cos são um subgrupo dos comportamentos o decantado livre-arbítrio, a responsabilidade sociais, pois não é possível conceber a ética moral e legal – e capacidades mentais que per- fora da sociedade. mitem controlar o comportamento, guiando a atenção, pensamentos, emoção e ações con- Como seres conscientes, inteligentes e criati- forme nossas intenções e objetivos, bem como vos, habitando determinado ambiente cultu- a capacidade de agir de acordo com regras e ral, nós, humanos, fomos capazes de criar as Revista Bioética 2010; 18 (1): 109 - 120 111 regras e normas da ética, codificá-las em leis emoções sociais tais como vergonha, humi- e modelar a aplicação das mesmas, chaman- lhação, culpa, compaixão, solidariedade etc., do-as de justiça; a cultura fazendo o resto, fato que prejudica seus mecanismos de toma- estabelecendo certo grau de liberdade que per- da de decisões, necessários para o desempe- mite ao indivíduo o livre-arbítrio. Mas o que nho social adequado. Tal comprometimento, hoje chamamos de ética dependerá do bom consequentemente, dificulta novos aprendi- funcionamento de certos sistemas cerebrais. zados desse tipo de cognição social, prejudi- Note-se que não falamos de centros, e sim de cando a qualidade de seu comportamento, sistemas, que mantêm interações complexas conduta e escolhas, formação do caráter, do entre si, das quais surgem comportamentos e temperamento e o que chamaríamos de cará- cognições a eles relativas, tais como tipos par- ter moral ou neuroconsciência (sic), a qual de ticulares de memórias, tomada de decisões ou algum modo está profundamente ligada aos criatividade, onde atitudes éticas e morais são sistemas de gratificação-punição: aquela maravilhoso subproduto. No entanto, isso pequena voz que Sócrates afirmava lhe dizer, também pode significar que danos cerebrais no íntimo, para não fazer coisas imorais, bem possam resultar em prejuízos morais. como a capacidade de avaliar as consequên- cias de tais atos 10. Assim, certos pacientes com lesões cerebrais, em determinadas áreas, podem aprender, evo- Tal como o tráfego é o resultado da interação car e preservar sua linguagem, lidar com a física de veículos, a responsabilidade é o pro- lógica, lembrar-se de convenções sociais e duto obtido quando as pessoas interagem. A regras de conduta social, porém não mais são responsabilidade pessoal é um conceito social capazes de aplicá-las na realidade, em termos (ou público) que só pode existir em grupo de cognição moral. Por exemplo, alguns pes- social, e não apenas num indivíduo. Se quisadores têm sugerido que grande propor- alguém fosse a única pessoa no planeta, não ção de condenados, nos corredores da morte, existiria qualquer conceito de responsabilida- pode ter cérebros lesionados, o que poderia de pessoal. Portanto, responsabilidade é um modificar nossos pontos de vista sobre a res- conceito relacional que se tem sobre os atos ponsabilidade moral e legal dessas criaturas, de outras pessoas e delas a nosso respeito. fatos que vêm sendo estudados pela neuro- Nossos cérebros são automáticos, governa- imagem funcional dos cérebros humanos. dos por leis do mundo físico e químico, Afinal, o que poderia distinguir o funciona- determinados e governados por regras, mento entre o cérebro de um serial killer, de enquanto pessoas são agentes pessoalmente um Hitler ou de uma Madre Teresa? 6 responsáveis, livres para tomar suas próprias decisões e resolver seus dilemas. Assim, nos- Embora alguns dos portadores de lesões sai- sos cérebros são instrumentos deterministi- bam o que é certo e errado, bom ou mau, camente programados, enquanto os seres estão prejudicados em certos aspectos de suas humanos seguirão suas regras e normas 112 Neuroética: o cérebro como órgão da ética e da moral quando viverem em conjunto – e por meio das ondas cerebrais é registrado. Ao medir a dessa interação nasce o conceito de liberdade atividade cerebral, o pesquisador notou que de ação ou livre-arbítrio. antes da realização dos movimentos da mão, cerca de 500 a 1.000 milissegundos, surge Esses aspectos da nossa pessoalidade não estão uma onda de atividade cerebral por ele deno- em nossos cérebros, existem apenas nas rela- minada como potencial de prontidão ou de pre- ções produzidas quando nossos cérebros auto- paração, que representaria a decisão conscien- maticamente interagem com outros cérebros te de mover a mão: o tempo t. também automáticos. Os que seguem o con- ceito filosófico de indeterminismo, que acredi- Libet observou que antes do tempo t, quando tam na presença de um fantasma na máquina, o paciente toma a consciência de sua decisão representado pela alma, mente ou espírito, que de fazer o movimento, seu cérebro já fora ati- permitiriam fazer escolhas e determinar as vado pelo potencial de preparação ou pronti- ações e mesmo o destino através da ação e dão, o que em média levava 300 milissegun- modificações no mundo físico no qual existi- dos. Isso significa que se esse potencial cere- mos, contrastam com os assim chamados bral se instala antes de estarmos conscientes deterministas, que não aceitam o livre-arbítrio, da decisão de mexer as mãos, nossos cérebros crendo que vivemos num mundo predetermi- já conhecem nosso intuito antes mesmo de nado, que preestabelece o destino por intermé- estarmos conscientes dele. O autor concluiu dio de um hardware genético que tornaria cada que se leva de 50 a 100 milissegundos para o ação inevitável, não podendo ser alterada pela sinal neural percorrer o trajeto do cérebro à vontade, educação, ambiente ou cultura. mão, para que essa se mova; 100 milissegun- dos são deixados para o self consciente con- Considerações neurofisiológicas cordar com a decisão inconsciente ou então vetá-la. Esse seria o momento em que a livre Os experimentos de Benjamin Libet, publica- vontade adquiriria seu poder de veto e que, dos em 1999 11, vieram lançar novas luzes analisado segundo a teoria de Locke sobre o sobre a neurociência do determinismo e da livre-arbítrio, implicaria dizer que nossas liberdade da vontade. Nessa experiência Libet mentes conscientes não teriam a liberdade de mediu a atividade cerebral de pacientes decisão, mas sim de não decisões 10. enquanto faziam um movimento consciente e voluntário da mão, usando a técnica conheci- Portanto, uma pessoa normal jamais comete- da como event-related potentials ou ERP: o ria uma violência, crime ou teria comporta- sujeito fica a olhar um relógio e no mesmo mento violento. Esses seriam cometidos em momento toma a decisão de dobrar o pulso, pacientes portadores de alterações antissociais fixa a atenção num ponto negro, comunican- da personalidade (AAP), condição caracteriza- do-o ao examinador, o qual correlaciona esse da por desonestidade, impulsividade, agressivi- movimento com o instante em que o ERP dade e falta de remorso ou culpa. Àqueles aco- Revista Bioética 2010; 18 (1): 109 - 120 113 metidos por tal condição faltaria esse meca- ponsáveis pelo entendimento de certos atos e nismo inibitório ou de veto, usualmente asso- ações, bem como pelo entendimento das ações ciado a uma disfunção dos lobos frontais do de outras pessoas, permitindo imitá-las. cérebro, importante para o desempenho nor- mal do comportamento social. Assim, sem o A estimulação magnética transcraniana, hoje funcionamento do lobo frontal, existiria um em voga nos estudos neuroéticos e comporta- prejuízo na capacidade de utilizar as não deci- mentais, é utilizada como meio de estudar as sões ou veto contra as más decisões e escolhas, habilidades necessárias na imitação de ações, como ocorreria no caso do cérebro de crimi- movimentos e comportamentos, que constituem nosos ou assassinos em série, incapazes de o sistema de base para o aprendizado por imita- inibir seus impulsos violentos em função de ção, ativado por complexo mecanismo neuro- lesões envolvendo a porção orbital ventrome- nal16. Como precursor evolutivo da linguagem dial e inferior de seus lobos frontais 11,12,13,14. – desde a gestual –, representações de significa- dos e a própria fala tal mecanismo é fundamen- Neurônios em espelho tal na pesquisa da biologia do raciocínio moral, pois pode revelar como o cérebro consegue Em seus trabalhos neurofisiológicos Rizzolat- entender o mundo. Todos e cada um desses ti e colaboradores 15 descreveram como o har- aspectos são necessários ao pleno desenvolvi- dware cerebral faz funcionar o software de mento e uso das faculdades morais e do julga- simulação mental. Esse mecanismo nos per- mento de nossas próprias ações: se forem permi- mite decidir se é permitido causar dano a um tidas moralmente, obrigatórias ou proibidas. semelhante, imaginando, antes, como seria ser ferido ou observar o resultado de alguém Esses achados têm permitido a outros cientis- ferindo a seu próximo (a famigerada regra de tas estudar lesões nessas áreas, por meio de ouro). Denominaram a essa circuitaria cere- estimulação magnética transcraniana sobre os bral de sistema dos neurônios em espelho, que lobos frontais. Alguns desses trabalhos mos- representa papel crítico nos julgamentos tram que pacientes com tais lesões manifes- morais e no senso rawlsiano de justiça. Esse tam incapacidade de controlar ou inibir as sistema não é exclusivo da espécie humana emoções, tais como raiva, agressão, violência em relação à moralidade, consistindo no pri- etc. Se indivíduos normais são capazes de meiro a desencadear as emoções morais. controlar esses sentimentos, psicopatas não o conseguem e, inclusive, fracassam em estabe- Esses autores conseguiram replicar em huma- lecer a distinção entre transgressões morais e nos os mesmos estudos de registro elétrico da sociais, tratando-as como parecidas, mostran- atividade dos neurônios corticais premotores do-se também incapazes de resolver conflitos já realizados em macacos, demonstrando défi- éticos ou dilemas e convenções, situações que cits de resposta, sobretudo em autistas. Suge- muitas vezes poderão ser contornadas por tra- riram, assim, que tais mirror neurons são res- tamento psiquiátrico farmacológico 15,16. 114 Neuroética: o cérebro como órgão da ética e da moral Considerações neuroanatômicas lhantes às dos voluntários normais, demons- trando que a área cerebral estudada é crítica Importantes estudos recentemente publicados para julgamentos normais entre o certo e o por Koenigs, Damásio e seu grupo 14 demons- errado, dando suporte ao importante papel traram que lesões no córtex cerebral pré-fron- das emoções na geração de tais julgamentos, tal prejudicaram os julgamentos morais. Tra- constituindo um substrato neural crítico para ta-se de áreas límbicas e, portanto, relaciona- os julgamentos morais intuitivo-afetivos, mas das ao mecanismo das emoções, particular- não para os conscientes-racionais, donde se mente necessárias para a geração normal das pode concluir que as emoções morais são cru- emoções do tipo social, localizadas bilateral- ciais para a cognição moral 13,14. mente na parte ventromedial do córtex pré- frontal, zona que integra essas emoções e sen- Sabemos que o córtex pré-frontal é funda- timentos à consciência. mental para outras importantes faculdades, como planejamento, tomada de decisões, Assim, os portadores de lesões nessa área tive- emoções, atenção, memória espaço-temporal ram tendência a pensar e resolver dilemas éti- e reconhecimento de uma combinação entre cos de maneira mais utilitária em testes neu- intenção e execução. Assim, à ressonância ropsicológicos tais como ter de sacrificar um magnética funcional (fMRI) em sujeitos nor- filho ou uma vida a fim de salvar outras vidas. mais, a apresentação de cenas que evocam Os sujeitos escolhiam, da maneira mais fria, a emoções morais produz ativação na área ven- decisão que prejudicasse o menor número de tromedial e no sulco temporal superior. Não pessoas, como no caso do conhecido dilema se deve esquecer, porém, que o funcionamen- imaginário de famílias vivendo num porão, to adequado de todo o sistema límbico, em escondendo-se de soldados nazistas que os pro- seu conjunto, é crucial para o julgamento curavam para matar. Um bebê começa a cho- moral normal 6. rar e a única maneira de calá-lo para evitar que todos sejam encontrados é tapar a respiração A amígdala, por exemplo, integra o complexo da criança por tempo suficiente para matá-la. circuito límbico do lobo temporal, relaciona- O que fazer? Para os portadores da lesão estu- da com o circuito de gratificação das emoções dada, a decisão correta seria matar a criança. positivas, modulando a armazenagem cerebral Que mãe permitiria isso? Nesse estudo, que permanente de memórias de eventos impor- afere o peso da emoção nos julgamentos morais, tantes, relacionados à sobrevivência, e provo- os autores concluíram que esse tipo de lesão cando emoções específicas, cruciais para a leva os pacientes a exibir menos empatia, culpa, recuperação de expressões faciais familiares. compaixão, vergonha e arrependimento. O hipocampo é essencial para o aprendizado No entanto, para situações sem dilemas, as e a lembrança de eventos específicos, embora respostas dos lesionados foram bastante seme- as memórias permanentes possam estar loca- Revista Bioética 2010; 18 (1): 109 - 120 115 lizadas em outros centros corticais, em asso- humana? Devemos ou não tomar uma deci- ciação com o córtex hipocampal, área entorri- são frente a esse astronômico dilema moral, nal e perirrinal, as quais, nos julgamentos pois não tomá-la seria ilógico. Afinal, pelo que morais, podem facilitar as lembranças cons- vimos até o momento: somos o nosso cérebro! cientes de fatos e memórias que permitem que Dessa última noção nasceu o moderno con- eventos passados afetem decisões presentes. ceito de morte encefálica, tão importante no caso dos transplantes10. O córtex do giro cíngulo possui uma série de subregiões com funções diferentes, tais como Que dizer da morte a longo prazo que provo- regulação da atenção, motivação, detecção de camos cotidianamente? O padecimento crôni- más intenções e execução, associadas ao córtex co e insidioso que a humanidade vem infligin- anterior desse giro. Sua ativação rostral, em do a si mesma por meio da poluição diária da associação com o núcleo accumbens, núcleo atmosfera, mananciais, mares e do próprio caudado e ventromedial e o córtex órbito-fron- solo. Da mortífera liberação de gases e produ- tal, é necessária para o comportamento coope- tos tóxicos no ar que respiramos, na água que rativo entre sujeitos submetidos a certos dile- bebemos, nos vegetais que nos alimentam, que, mas morais. Esse giro é também crucial nos pela atividade industrial e agricultura agressiva, casos em que o organismo necessita de rápido e provocam doenças pulmonares, pneumoconio- eficiente controle de seu comportamento ético- ses, doenças autoimunes como tireoidite, escle- moral, ou no raciocínio moral abstrato 2. rose múltipla, lupus sistêmico, dermatites, artrite reumatóide e até neoplasias incuráveis? Essas e outras considerações permitem cog- nominar a neuroética como a ciência de nos- O que falar da derrubada desenfreada de sos dilemas morais, tal a quantidade de meca- milhares de quilômetros quadrados mensais nismos neurais que servem de substrato ao de matas, que produzem o oxigênio que respi- processamento desses fenômenos, que culmi- ramos? Ou das usinas nucleares que imitam nam na atual bioética, com os seus tópicos Chernobyl? Tais fatos dariam azo a outro multidisciplinares e transdisciplinares que nos artigo nesta revista. Felizmente, já existem demandam grande esforço para construir uma em nosso idioma textos que alertam contra filosofia de vida baseada em nosso cérebro, esses perigos, como o monumental trabalho rumo a uma ética universal, global, eclética, do jurisconsulto J.R. Nalini: Ética ambien- planetária. Consideremos um exemplo quase tal17, cujo estudo deveria ser obrigatório em absurdo: sabemos o que bombas atômicas e todas as escolas, sobretudo nas universidades, nucleares podem fazer, mas por que continua- bem como pelos parlamentares, pois vem mos a construí-las? Eis um verdadeiro dilema demonstrar, à saciedade, o suicídio dos que ecumênico para o futuro próximo de uma desprezam Gaia e o ambiente em que vive- sociedade moral. Qual seria a neuro lógica mos: como será a neuroética desses cérebros, desse fato ante a decantada santidade da vida que nos submetem a um futuro infernal? 116 Neuroética: o cérebro como órgão da ética e da moral Em consequência, quer nos parecer que uma Como podemos concluir, há uma multidão de ética universal é possível e imperativa. Afinal, questões e poucas respostas. No futuro, a todos os cérebros são iguais neuroanatômico ética tornar-se-á verdadeiro fórum, com a e neurofisiologicamente. Resta-nos procurá-la participação global de todos – um convite ao e entendê-la. Afinal, estamos certos de que profissional e ao leigo à procura de uma ree- nossa espécie, há séculos, busca acreditar na ducação ou neuroalfabetização do público e da utopia de alguma ordem natural do humano mídia. Assim, nos julgamentos de diversas – uma bioética global 10. morais, que agora sabemos serem gerados por determinadas áreas cerebrais, a neuroética Considerações finais deverá ser tão vital quanto a genética, pois envolve a mente humana, permitindo: estu- Em razão dos citados progressos neuropsi- dar as bases neurais do pensamento ético e a cológicos obtidos nos últimos 30 anos, esses experiência moral do dever; esclarecer as bases fatos ensejaram o surgimento de novo espe- biológicas do livre-arbítrio e da responsabili- cialista: o neuroeticista. Essa nova especia- dade; identificar a predisposição a uma psico- lidade nos levará a estudar as implicações patia ou à violência; verificar o papel dos neu- éticas de nossas intervenções sobre o cére- rologistas, neurocientistas e neurocirurgiões bro: os presentes e futuros desafios a moni- nas decisões sobre terminalidade da vida, torar, mapear, estimular ou alterar as fun- morte cerebral e transplante; disciplinar ou ções cerebrais por meio de imagens radioló- definir se o cérebro é causa ou consequência gicas, fármacos ou técnicas neurocirúrgicas das propriedades da mente, atribuídas à gené- avançadas, que modificam nossa cognição, tica, ao ambiente, ou a ambos; entender humor, afetividade e, até mesmo, invadem a melhor as doenças mentais e a mente dos in- privacidade de nossos pensamentos – como divíduos normais; prever a possibilidade de os modernos detectores de mentira empre- ocorrer uma doença degenerativa do tipo gados em assuntos forenses ou em grupos Alzheimer, Huntington etc.; identificar os antiterroristas. efeitos da psicocirurgia, cirurgia das epilep- sias, doença de Parkinson e cirurgias da dor e Futuramente, essa nova ciência bioética deve do sofrimento; pesquisar a ética da implanta- também se tornar uma neurociência da ética, ção de células-tronco, tecidos fetais ou tecido que, sob a perspectiva das funções cerebrais nervoso (substância negra, por exemplo) no cada vez mais conhecidas, deverá envolver-se cérebro; estabelecer a interface entre cérebro com noções filosóficas como livre-arbítrio, e máquinas ou próteses de membros ou autocontrole, violência, identidade pessoal e órgãos; estudar os mecanismos moleculares intenção, como fruto de novo e melhor da memória e fármacos que a estimulam; conhecimento sobre a cognição moral, no decifrar o mistério do que nos torna humanos intento de procurar respostas para muitas e impedir que sejamos desumanizados; estu- perguntas futuras. dar drogas que alcançam alvos e estruturas Revista Bioética 2010; 18 (1): 109 - 120 117 cerebrais e suas consequências, e moléculas cos e das neurotecnologias no lugar correto e como a DMT (N,N-Dimetiltriptamina), e afastar medos desnecessários em relação aos finalmente entender as bases neurais da espi- mesmos, ajudando a discernir sobre o uso da ritualidade, a chamada neuroteologia 8. Quan- neuroimagem na tomografia computadoriza- to à DMT, a qual, como as endorfinas, é pro- da (CT scanner), ressonância magnética, posi- duzida pela glândula pineal do homem, trata- tron emission tomography (PET scanner), sin- se de verdadeira substância psicodélica endó- gle photon emission computerized tomography crina, também chamada de a molécula do (Spect), mapeamento cerebral, magnetic elec- espírito. Esta, pode produzir estados psicológi- troencephalography (MEG) etc., na neurotec- cos de tipo espiritual, associados a experiên- nologia clínica ou cirúrgica e na farmacologia cias de morte ou de quase morte, cuja função psiquiátrica 1. é manter nosso cérebro sintonizado em seu “canal normal” como o de uma TV 18. A Não se pode deixar de mencionar que em melatonina, outro neurotransmissor, também 2006 foi fundada a Neuroethics Society, pre- produzido pela pineal, tem importante papel sidida pelo professor Steven Hyman, um dos nos mecanismos de sono, no câncer, no enve- diretores da Universidade de Harvard. Essa lhecimento, no jet lag e nos sonhos – a qual, recém instituída sociedade vem publicando infelizmente tem sido pouco estudada. seus suplementos no The American Journal of Bioethics (Ajob) e sua missão, segundo o atual Nesse sentido, cabe ressaltar o papel do neu- presidente, é a de promover o desenvolvimen- roeticista. Como já visto, a ética também to e a aplicação responsável das neurociências sofre evolução a partir da tecnologia. Em e de seu progresso sem precedentes, alcança- consequência, os neuroeticistas terão respon- dos nas últimas décadas nas ciências básicas sabilidade especial no novo debate bioético, já do cérebro e da mente. Assim, espera-se con- que existe uma bioética para o cérebro, ajudan- tribuir no tratamento das desordens psiquiá- do o público em geral não somente a evitar tricas e neurológicas, por intermédio da parti- concepções errôneas sobre o que a neurociên- cipação de pesquisadores acadêmicos, cientis- cia pode fazer, mas também entender o que tas e clínicos interessados nas implicações ela não pode fazer. Serão responsáveis por sociais, legais, éticas e políticas produzidas colocar o contexto dos avanços neurocientífi- pelos avanços das neurociências. 118 Neuroética: o cérebro como órgão da ética e da moral

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Resumo Este artigo discorre sobre o substrato anatômico e neurofisiológico no cérebro desperto que estabelece a normalidade ou o patológico de
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