Nelson “Trágico” Rodrigues Nelson “Trágico” Rodrigues C S ARLA OUTO EDITORA ÁGORA DA ILHA 1 Carla Souto F ICHACATALOGRÁFICA SOUTO, Carla Nelson “Trágico”Rodrigues / Carla Cristina Fernandes Souto Rio de Janeiro, abril de 2001 166 páginas Editora Ágora da Ilha ISBN 86854 Literatura brasileira CDD-869B COPYRIGHT: CARLA CRISTINA FERNANDES SOUTO TEL.: 0 XX 21 - 458-1746 [email protected] DIREITOS DESTA EDIÇÃO RESERVADOS À AUTORA, CONFORME CONTRATO COM A EDITORA. É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTA OBRA SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DA MESMA. Nelson “Trágico”Rodrigues - LITERATURA BRASILEIRA FOTOS DA CAPA: RIO DE JANEIRO, ABRIL DE 2001 EDITORA ÁGORA DA ILHA TEL.: 0 XX 21 - 3393-4212 [email protected] 2 Nelson “Trágico” Rodrigues Dedicado ao meu pai, João, meu “anjo eterno”, à minha mãe, Ana, minha “senhora dos cuidados”, e ao meu pri- mo Marcus Vinicius, a melhor página do meu “álbum de família”. 3 Nelson “Trágico” Rodrigues S UMÁRIO Prefácio ............................................................................9 Introdução ......................................................................11 1 - O mar próximo e profético..............................................23 2 - A cama quebrada ...........................................................35 2.1 - Origem e destruição ..........................................................44 3 - O espelho sem imagem ...................................................51 3.1 - As botinas desabotoadas ...................................................67 4 - A única e primeira família ...............................................73 5 - Os muros que se alimentam da solidão............................93 6 - As mãos iguais.............................................................113 7 - A casa sem quartos.....................................................131 Conclusão.......................................................................149 Bibliografia..................................................................... 159 5 Nelson “Trágico” Rodrigues A s senhoras me diziam: “Eu queria que seus personagens fossem como todo mun- do.” E não ocorria a ninguém que, justa- mente, meus personagens são como todo mundo: e daí a repulsa que provocam. Todo mundo não gosta de ver no palco suas ín- timas chagas, suas inconfessas abjeções. *NELSON RODRIGUES - Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações. – O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o pon- to de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é infer- no, e preservá-lo, e abrir espaço. **ITALO CALVINO - Cidades invisíveis 7 Nelson “Trágico” Rodrigues P REFÁCIO A importância de Nelson Rodrigues já não se mede hoje, na cultura brasileira, com seu lado tipicamente local, por aquilo que fornece em termos de informação sobre a alma carioca e suas peculiaridades. Há muito se percebe o papel desbravador que realizou no sentido de alargar e aprofundar conhecimentos que, sem ele, teriam ficado ocultos ou apenas suspeitados. O tempo deu-lhe uma dimensão de larga fertilidade. Estava tudo lá, nos textos. Mas foi preciso o resultado de um levantamento crítico e uma espécie de amadurecimento para alcançar os horizontes reais do que legou. De súbito, constatamos que, a cada vez que se efetua um balanço no autor de Boca de ouro, o que se supunha solucionado abre lacunas ou caminhos de investigação que merecem reflexões. Estamos longe de um nome esgotado. Pode-se dizer, a seu respeito, que o Brasil não o conhece o bastante. Estudos e montagens demonstram, a cada etapa, a necessidade de novos estudos e montagens. Ao mesmo tempo, Nelson se transformou numa personalidade insubstituível quando precisamos recorrer a algo de nosso sem tergiversar. Por alguma opção desconcertante, sempre que o fazemos, costumamos seguir o percurso evidente, o mais tranqüilo, o mais consagrado, como se deixássemos para mais tarde o que deveríamos procurar. Grandes encenadores chegaram a ele por essa via. Alguns (e logo nos surge o nome de Antunes Filho) foram longe na tarefa de decifrá-lo. Trouxeram a público um teatro criativo, cheio de fertilidade, como se sabia, mas também cheio de som e de fúria. A ousadia valeu para provar, com um gosto amargo, o que de trágico se mantinha, esvaziados os efeitos do humor, 9 Carla Souto nas situações e personagens que criou, fosse qual fosse o estilo com que muitas vezes elevava o volume da indignação. As entranhas do elemento humano surgiram cruas, quentes e incômodas, carregadas de dores e incertezas. Tudo a ver com a profundidade das questões. A exacerbação rodrigueana, convém registrar, aproxima e ajuda a situar os problemas no espaço que consideramos nosso. Por outro lado, é dessa aproximação por vezes excessiva que nos distanciamos de nós próprios, rindo-nos com o que somos quando, talvez, devêssemos estancar apavorados. Nelson escandalizou e chocou, ao longo da vida. Suas intenções confundiam. Não pretendia, contudo, o sucesso passageiro e fácil. Queria chegar às alturas onde se situam os conhecedores do comportamento e juntar-se a eles pelo mesmo tipo de postura. Suas tragédias provêm dessa ambição. Anjo negro, Dorotéia, Álbum de família, Senhora dos afogados, enquadram-se como um desafio para o estudioso. O que realmente significam? De que modo nos revelam? São nossas, apenas nossas, ou nos ultrapassam? Ao se acercarem do nosso teatrólogo, os europeus (aconteceu em Paris), como se quisessem quebrar os hábitos, começaram à procura do universal. Carla Cristina Fernandes Souto, como eles, aventura-se pelo que se manteve à espreita e agora começa a surgir. Com uma leitura aguda e corajosa, testada pelos debates acadêmicos, avança sem temer. Valeu a pena: trouxe ao primeiro plano, por fim, o que ficara de lado, não por razões de qualidade, pela seriedade do que corta como faca. Esse tipo de alimento, as pessoas, como as nações, só digerem aos poucos. É preciso confiança, a segurança de poder parar – e olhar. Aqui temos um livro que efetua tal reviravolta. Com ele, e graças a ele, veremos como, a despeito do sol que aqui brilha e das aves que aqui gorjeiam, continuamos brasileiros na universalidade. É a nossa tragédia. Ronaldo Lima Lins - Professor Doutor em Teoria Literária da Faculdade de Letras da UFRJ. 10 Nelson “Trágico” Rodrigues I NTRODUÇÃO E sta obra pretende investigar a estruturação das per- sonagens das chamadas tragédias ou peças míticas de Nel- son Rodrigues: Álbum de família, Anjo negro, Senhora dos afogados e Dorotéia. A hipótese que tentaremos desenvolver é a de que as personagens dessas tragédias não podem alcançar a felicida- de por causa de suas limitações. Elas são seres incompletos e mutiladas naquilo que seria essencial para atingir a realiza- ção plena, e, assim, seu caminho natural é a tragédia. Pode- mos ver claramente como se processa no indivíduo essa sen- sação de ausência através da autobiografia de Althusser: Sentia-me como que impotente, que se tome esta palavra em seu sentido mais amplo: impotente de amar, sem dúvida, mas também impotente, pri- meiro em mim mesmo, e antes de tudo em meu próprio corpo. É como se me tivessem retirado aquilo que poderia constituir minha integridade física e psíquica. Pode-se aqui falar, legitimamen- te, de amputação, portanto de castração: quando alguém retira uma parte de você, que definitiva- mente fará falta à sua integridade pessoal.1 As personagens das peças vivem então uma relação de ausência com os seus desejos, só podendo realizá-los atra- vés de sua falta, de sua amputação, de sua morte, sendo in- capazes de torná-los presentes. Isso é impossível para elas, que foram usurpadas no seu íntimo, no seu desejo mais pro- fundo. E para a realização pessoal é preciso que o indivíduo não esteja limitado na liberdade do seu ser nem seja tocado na integridade do seu corpo. 11 Carla Souto Utilizaremos a imagem da “casa sem teto”, presente em Anjo negro, e a da “casa sem quartos”, observada em Dorotéia, como símbolos da mutilação e como elementos de ligação em nossa análise. Se em uma “casa sem teto” a noite poderia pene- trar no coração das pessoas, numa “casa sem quartos” o sonho seria impedido de entrar nos corações. As imagens escolhidas podem ser entendidas como a amputação sofrida pelas persona- gens, impedindo-lhes a felicidade, conferindo-lhes o caráter trá- gico e imprimindo-lhes, ainda, uma marca. Outra imagem que também será utilizada é a dos “mu- ros que crescem à medida que aumenta a solidão”. Esta vai mostrar como a amputação das personagens vai conduzi-las ao seu destino trágico, através do isolamento a que são con- denadas pelas suas limitações. Sem a comunicação verdadeira com o outro não há nada que possa impedir a realização do destino trágico ao qual as personagens são compelidas. Em Álbum de família, por exemplo, temos a perso- nagem Nonô – filho do casal Jonas e Senhorinha – que vive nu, gritando e uivando como um animal selvagem. O próprio Jonas é marcado por uma certa semelhança que possui com Cristo. Nesta peça, as personagens não são dotadas dos me- canismos de censura moral, adquiridos pelos homens com o advento da civilização e que tornam possível o convívio so- cial. Portanto, regem seus atos os instintos e sentimentos mais primários, o que resulta inevitavelmente em tragédia, já que as leis sociais e morais foram criadas para regular os confli- tos entre as pessoas, como vemos abaixo: GUILHERME – Nós somos diferentes dos outros. Deixa eu olhar para você. GLÓRIA (querendo se evadir) – Papai que não vem! GUILHERME – Que é que tem papai? NUM LUGAR DECENTE, PA- PAI ESTARIA NUMA JAULA. Papai até já matou gente! 12