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Música popular brasileira experimental: Itamar Assumpção, a vanguarda paulista e a tropicália PDF

12 Pages·2010·0.96 MB·Portuguese
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sean strouD tradução de saulo adriano Música popular brasileira experimental: Itamar Assumpção, a vanguarda paulista e a tropicália SEAN STROUD é PhD em Música Popular Brasileira pela universidade de Londres e autor de The Defence of Tradition in Brazilian Popular Music (ashgate). RESUMO este artigo examina a fase inicial da carreira de Itamar assumpção no começo dos anos 1980 do ponto de vista de como sua música desafiadora e sua atitu- de não conformista foram recebidas pela imprensa brasileira e pela indústria fonográfica na época. apesar da aclamação crítica tremendamente positiva, assumpção não conseguiu alcançar o sucesso comercial e a ampla exposição popular. esse insucesso – e o de outros expoentes da vanguarda paulista, como arrigo Barnabé e o Grupo rumo – em abrir caminho para o sucesso comercial foi marcadamente dissimilar à trajetória da maioria dos artistas associados ao movimento da tropicália do fim dos anos 1960, apesar de os tropicalistas terem apresentado também um desafio radical à música popular contemporânea. Palavras-chave: música experimental, indústria fonográfica, Itamar assumpção, vanguarda paulista. ABSTRACT This article examines the early phase of Itamar Assumpção’s career at the start of the 1980s from the point of view of how his challenging music and his non- conformist attitude were received by the Brazilian press and music industry at that time. Despite overwhelmingly positive critical acclaim Assumpção failed to achieve commercial success and widespread popular exposure. This failure (and the failure of the other leading lights of the vanguarda paulista such as Arrigo Barnabé and Grupo Rumo) to break through to commercial success was markedly dissimilar to the trajectory of the majority of the artists associated with the tropicália movement of the late 1960s, despite the fact that tropicália also set out to radically challenge the style of contemporary popular music. Keywords: experimental music, record industry, Itamar Assumpção, vanguarda paulista. VANGUARDA PAULISTA N o final dos anos 1970 e início Sou extremamente grato à LeverhulmeT rust por seu apoio dos anos 1980 vários novos financeiro por meio do fundo Study Abroad Studentship elementos começaram a (2005-06), o qual me possibili- tou conduzir esta pesquisa. florescer na música popular brasileira. À medida que as restrições da censura política e cultural foram parcialmen- te afrouxadas, uma reserva acumulada de frustração e criatividade foi desencadeada. No momento em que aos olhos de muitos observadores a MPB parecia ter perdido o fôlego, surgiu na cidade de São Paulo uma nova tangente ou “movimento” dentro da música popular, que veio a ser conhecido como vanguarda paulista. Um número grande e diverso de grupos e músicos – inclusive Itamar Assumpção, Grupo Rumo, Arrigo Barnabé, Língua de Trapo e Premeditando o Breque – galvani- zou a cena musical de São Paulo com uma atitude inovadora e desafiadora à música popular, que rapidamente conquistou um séquito fiel na cidade e gerou uma cober- tura intensa da mídia, especialmente em São Paulo. Esses grupos criativamente sobrepuseram formas tradicionais de can- ções populares e samba juntamente com o rock, reggae, elementos de humor e música experimental. Embora seja de certa forma um exagero se referir à vanguarda paulista como um movimento (não havia nenhum objetivo central ou uma identidade unifi- cadora entre os vários grupos que surgiram Abaixo, Itamar sob sua bandeira), ela rapidamente provocou contrato de gravação com um grande selo Assumpção e comparações na mídia com o movimento musical. Frustrado com esse revés, ele foi da tropicália do final dos anos 1960. Todos obrigado a voltar-se para as únicas saídas banda Isca de esses grupos mencionados receberam uma disponíveis para divulgar sua música, as Polícia, Beleléu, exposição considerável na mídia, e esse mais apresentações ao vivo e os festivais de mú- Leléu, Eu, Lira recente renascimento musical foi saudado sica eventuais. Porém, a abertura do teatro Paulistana,1980 por muitos jornalistas brasileiros devido Lira Paulistana em 1979 proporcionou um à sua crença de que a MPB passava pelo novo espaço que era favorável à música que consideravam um de seus períodos de popular mais experimental. “crise” criativa. Entretanto, na época em O Lira Paulistana tornou-se o lar espi- que as gravadoras consideravam de vital ritual do movimento da vanguarda paulista importância a busca por novos talentos, a porque muitos que vieram sob seu manto indústria fonográfica brasileira entrava em tocaram lá e consolidaram suas reputações um de seus declínios periódicos e arrochos no pequeno clube localizado num porão1. O financeiros, o que indicava que subitamen- sucesso comercial do Lira Paulistana per- te havia pouco dinheiro para investir no mitiu a seu proprietário fundar seu próprio negócio arriscado de patrocinar artistas selo musical (Lira Paulistana) em 1979, e desconhecidos. Seja por considerarem que foi esse selo que ofereceu a Assumpção sua não havia alternativa, ou, em alguns outros primeira oportunidade para gravar. casos, por razões ideológicas, muitos artis- tas, inclusive Itamar Assumpção, voltaram- se então para as gravadoras independentes BELELÉU, LELÉU, EU 1 O livro de Oliveira, Em para levar sua música a um público, por um Porão em São Paulo: o menor que fosse. Lira Paulistana e a Produção Alternativa, fornece uma Apesar da crescente reputação de As- A liberdade criativa concedida pelo excelente pesquisa sobre a sumpção como um intérprete inovador e proprietário do selo Lira Paulistana a As- importância do Lira Paulis- tana como um ponto focal sensacional no circuito de música ao vivo sumpção resultou no lançamento do LP para a vanguarda paulista. de São Paulo, ele não logrou conseguir um Beleléu, Leléu, Eu em 1980, uma mistura altamente inovadora de rock, funk, reggae e MPB. Apesar da pequena escala desse primeiro lançamento, a reputação de As- sumpção como um intérprete vibrante nas apresentações ao vivo indicava que ele estava construindo uma reputação para si, e seu primeiro LP recebeu críticas positivas unânimes na imprensa a tal ponto que, em 1981, ele foi saudado pela revista Veja como “um dos maiores talentos da música brasileira do momento” (Souza, 1981). A reação da imprensa a Assumpção foi es- trondosamente laudatória, com jornalistas quase sempre se referindo a ele como um contraponto original à natureza medíocre e enfadonha da MPB contemporânea. É possível notar que muitos desses jorna- listas (especialmente os que trabalhavam para os jornais de São Paulo) estavam ansiosos para dar seu apoio a um novo rumo dentro da música popular brasileira que tinha sua base em São Paulo, porque era uma tendência que poderia ser ligada 90 REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 86-97, setembro/novembro 2010 à herança do experimentalismo de curta apreciação do público majoritário. Negus duração da tropicália. também enfatiza que a música inicialmente O que é bem intrigante é como essa apro- percebida como não comercial pode se vação unânime da imprensa da música de tornar comercial com o passar do tempo. Assumpção estava diametralmente oposta à Entretanto, em sua visão, a principal maneira como ele foi rejeitado categorica- maneira pela qual as gravadoras superam mente por inúmeros grandes selos musicais essa incerteza é por meio da criação de durante o final dos anos 1970. Essa rejeição séries de hierarquias dentro da indústria centrava-se na percepção da falta do elemen- fonográfica nas quais a música potencial- to comercial em sua música e no fato de os mente comercial é sistematizada, e certos executivos fonográficos serem incapazes tipos de música recebem um tratamento de classificá-la adequadamente. Segundo o mais favorável (Negus, 1995, p. 331). próprio Assumpção, quando fazia audições É exatamente essa hierarquia de valores para os executivos fonográficos, eles com que foi firmemente estabelecida dentro frequência lhe perguntavam se não tinha da música popular brasileira no final dos “alguns sambas” em seu repertório, além anos 1970, com a MPB conservadora e da música mais idiossincrática que tocava superficial em seu topo. Apesar disso, a para eles (Ribeiro, 1981). Essa ideia de indústria fonográfica brasileira entrou em que a música de Assumpção carecia de um outro período de crise no início dos anos potencial apelo comercial levanta a questão 1980 e, segundo as reportagens da mídia, de até que ponto as expectativas do público estava desesperada por uma injeção nova de música popular podem ser expandidas de talento para reativar as vendas. A reação para absorver o trabalho de artistas deter- entusiasmada a seus shows demonstrou minados a explorar um caminho inovador que obviamente existia um mercado para ou experimental dentro das fronteiras da a música de Assumpção, embora não um música popular. Um dos exemplos mais mercado de massa, e por isso é curioso que aclamados dessa questão no Brasil ocorreu as gravadoras tenham relutado em lhe ofe- em 1972 com o lançamento do LP Araçá recer um contrato. Parte do problema pode Azul, obra amplamente experimental de ter sido por causa do caráter confrontador Caetano Veloso. A vasta maioria dos com- de Assumpção, algo que discutirei neste pradores desse disco extraordinário deve texto. Porém, é significativo observar que ter imaginado que seria semelhante ao ele não estava sozinho no que se refere anterior, o LP folclórico-popular Transa. a essa questão, pois, entre seus contem- Aparentemente eles não tinham ouvido o porâneos da vanguarda paulista, apenas LP anteriormente, porque o devolveram às Arrigo Barnabé conseguiu um contrato lojas em um número recorde e exigiram um com um grande selo, e apenas por um reembolso. Apesar do histórico anterior de período curto. Veloso de lançar música popular audaciosa, Araçá Azul era obviamente uma ponte muito distante para o público em geral. PROBLEMAS DE DISTRIBUIÇÃO A indústria fonográfica no geral tem sido tradicionalmente assombrada pelo E MARKETING medo de investir em talentos que não recuperarão seus gastos financeiros. Po- rém, conforme observou Keith Negus, as Por não ter conseguido convencer a gravadoras estão em um dilema perpétuo indústria fonográfica tradicional da viabili- porque estão constantemente à procura de dade comercial de sua música, a decisão de um novo talento “inovador” para aumentar Assumpção de promovê-la como um artista sua fatia no mercado ao mesmo tempo em independente fez com que o caminho para que estão atentas ao fato de que tal música o reconhecimento público generalizado se inovadora pode ser “difícil” demais para a tornasse infinitamente mais difícil. Apesar da 91 REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 86-97, setembro/novembro 2010 reação positiva da imprensa ao seu primeiro A POSTURA DE ITAMAR LP, a única maneira que o público tinha de ouvir sua música na época era ir a seus shows ASSUMPÇÃO EM RELAÇÃO À e ouvir as rádios FM de público minoritá- rio, como a Cultura FM. A natureza quase INDÚSTRIA MUSICAL amadora e improvisada da promoção de seus discos significava que eram quase totalmente vendidos com a técnica do “boca a boca” em O comportamento por vezes imprevi- seus shows e no teatro Lira Paulistana, porque sível de Assumpção e sua atitude quase poucas lojas de discos os tinham em seus sempre desafiadora (mesmo para com os que estoques. Essa situação precária contrastava o conheciam pessoalmente) o levaram a ser brutalmente com o marketing mais sofisti- chamado de maldito por parte da imprensa. cado de artistas associados à fase de maior Esse aspecto de seu caráter – geralmente sucesso comercial da tropicália. Embora os visto como uma atitude hostil e não coo- números das vendas dos LPs lançados em perativa para com a indústria fonográfica e 1968 e 1969 por Caetano Veloso, Gilberto seus representantes – foi outra das causas Gil, Gal Costa e Os Mutantes tenham sido re- principais de seu fracasso em alcançar um lativamente fracos2, é evidente que a música sucesso comercial maior. Talvez a rejeição desses artistas alcançou um público nacional sofrida nas mãos da indústria fonográfica por meio da difusão pelas rádios tradicionais. no início de sua carreira tenha moldado Sua música era apresentada em programas sua atitude combativa e, de fato, parece ter de TV no horário nobre, e, acima de tudo, intensificado sua determinação de não ceder suas respectivas gravadoras (principalmente em relação à maneira pela qual sua música a Philips) concediam um alto status a ela no seria comercializada. O tratamento recebido que se refere à apresentação estética (capas das mãos da polícia em várias ocasiões sem caras e de produção esmerada, com ilustra- dúvida também ajudou a forjar o caráter de ções elaboradas e inclusão no prestigioso Assumpção. selo Série Luxo, da Philips). Todos esses Mesmo alguns de seus admiradores fatores denotavam uma atenção aos detalhes e amigos mais íntimos admitem que por parte da Philips e um reconhecimento Assumpção não era uma pessoa de levar tácito de que esses discos tropicalistas eram desaforo para casa, e que era sempre tem- objetos de valor cultural importante e po- peramental e polêmico3. Numa época em tencialmente vendáveis, de fato capazes de que as gravadoras do Brasil eram menos atingir um mercado de massa não obstante inclinadas a satisfazer os desejos de seus a música “experimental” contida dentro da artistas contratados do que haviam sido capa de seus discos. nos mais tolerantes anos 1970, essa talvez É preciso que se lembre também que não tenha sido a estratégia apropriada a se parte do raciocínio por trás da decisão da adotar. Porém, a rebeldia de Assumpção Philips de dispensar em abundância tal foi além de uma mera tomada de posição: atenção aos lançamentos tropicalistas jazia sua postura era uma parte fundamental de no fato de que a maioria desses artistas não como ele via sua música e como desejava era composta de novatos desconhecidos. controlar pessoalmente sua interação com Eles já haviam lançado discos antes da fase a mídia e a indústria da música. tropicalista. Alguns deles (Caetano Veloso, Talvez o que ilustre esse fato de maneira 2 Entre cinco e dez mil cópias de cada lançamento. Fonte: Gal Costa e Nara Leão) também começaram mais apropriada seja sua apresentação no Midani, 2008, p. 116. suas carreiras trabalhando sobretudo com o festival de música MPB-Shell de 1982, 3 Isso foi confirmado nas idioma da bossa nova; e já tinham, portanto, organizado pela TV Globo e televisionado entrevistas que fiz com Ar- rigo Barnabé (9/9/06), Luiz recebido o louvor e o respeito dispensados ao vivo. Assumpção deixou pasmos os Chagas (17/7/06) e Suzanna aos artistas associados à música situada no milhões de telespectadores com a inter- Salles (14/9/06), os quais ápice da hierarquia de valores da música pretação de sua composição “Denúncia conheceram Assumpção intimamente. popular brasileira de então. dos Santos Silva Beleléu”, a qual não só se 92 REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 86-97, setembro/novembro 2010 referia a Beleléu, a personalidade rebelde e em 1968. Essas apresentações tropicalistas ameaçadora criada por ele em seu primeiro há muito têm sido veneradas na história LP, como também criticava liricamente a cultural brasileira como marcadoras de um razão de ser do próprio festival de música momento distinto de rebelião e busca por do qual participava. Essa canção delibera- um modelo cultural alternativo para uma damente complexa contava com um coro sociedade brasileira em rápida transfor- feminino no papel de narrador e uma letra mação, apesar de essas repercussões não que se referia à própria participação de serem tão óbvias para muitos observadores Assumpção no festival. Porém, o momento na época4. O pequeno momento semelhante mais audacioso da apresentação chegou de rebeldia de Assumpção provavelmente quando, quase ao final da canção, ele fez passou quase despercebido do público em uma pausa deliberada e, juntamente com geral, que deve ter simplesmente se sentido seu grupo, encarou com atitude desafiadora desconcertado com suas bufonarias. Toda- e em silêncio as câmeras de TV e a plateia via, em uma era de música popular cada vez por mais de um minuto (Almeida, 1982). mais insípida no Brasil, sua apresentação Essa estratégia provocativa, elaborada no festival representou a continuação da deliberadamente para hostilizar a TV Glo- tradição tropicalista da sátira e do deboche, bo, fora pré-planejada: antes do início do mas com o subtexto de que, apesar de ele festival, Assumpção afirmara ousadamente estar preparado para entrar no mundo da que não se sentia intimidado pelo prestígio e cultura de massa, estava determinado a agir poder da TV Globo, e que sua participação segundo suas próprias regras e subverter a no festival se daria estritamente sob suas partir de dentro. condições (Anon, 1982). Essas atitudes podem ter parecido ar- rogantes e contraproducentes da parte de A NATUREZA “DIFÍCIL” alguém que tentava consolidar sua carreira incipiente na ocasião. Contudo, Assump- DA MÚSICA DE ASSUMPÇÃO ção estava longe de ser ingênuo, e estava plenamente ciente de que ao aparecer ao vivo na TV Globo, em um grande festival Essa recusa em abaixar a cabeça e sua de- de música, ele teria a oportunidade de apa- terminação obstinada em não comprometer recer diante de um público em massa, uma sua visão artística em troca da popularidade oportunidade muito rara para um artista fácil de curta duração foram algo que mo- independente naquela época. Entretanto, tivou Assumpção inflamadamente durante enquanto saboreava essa oportunidade de toda a sua carreira. Entretanto, sua recusa demonstrar seu talento, ele sentiu um pra- inabalável em diluir sua música para alcan- zer quase perverso em não ceder nem um çar o público de massa era incompatível milímetro em relação à sua visão artística, e com as decisões comerciais que as pessoas deliberadamente cuspiu no prato que comeu. da indústria fonográfica tinham de tomar Se compararmos a apresentação beligerante quanto a lançar ou não a sua música. Apesar de Assumpção no festival de música de da aversão que Assumpção com frequência 1982 da TV Globo com os notórios “acon- enfrentava por parte de antagônicos execu- tecimentos” tropicalistas no festival da TV tivos da indústria fonográfica, uma reação Record de 1967 em São Paulo, é evidente mais ambígua pode ser vislumbrada em um 4 Geralmente se ignora que que os últimos tiveram um impacto mais comentário mais geral sobre a natureza “não o movimento tropicalista abrangente porque refletiram o início de comercial” da música associada à vanguarda não passou sem críticas uma onda de contracultura no Brasil que paulista, feito contemporaneamente por na época, expressa nos escritos de gente do calibre não tinha como ser completamente sufocada Pena Schmidt, na época diretor artístico da de Sidney Miller, Augusto pelo regime militar, apesar do advento da gravadora Continental. Schmidt (apud Dias, Boal, Francisco de Assis e Roberto Schwarz, entre rígida censura cultural e política introduzida 2000, p. 139) recorda a ocasião em que foi outros (Napolitano, 2001, pela imposição do Ato Institucional no 5 a um show de Assumpção e outros artistas p. 70). 93 REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 86-97, setembro/novembro 2010 quando o movimento estava começando a enigma jaz no fato de o público em geral chamar a atenção do público em São Paulo ainda não ter assimilado os aspectos hostis e, embora considerasse a música inegavel- de muito de sua obra. mente inovadora, sua natureza experimental Ainda hoje, trinta anos após o lança- simplesmente a tornava “indigesta” demais mento de seu primeiro disco, há geralmente para o público absorver. O comentário de poucos pontos de referência bem distintos Schmidt ilustra o fato de que, na época, havia na música de Itamar com os quais o ouvinte limites claros que demarcavam até que ponto casual possa se identificar, daí as dificulda- a indústria fonográfica tradicional no Brasil des perenes das gravadoras em promovê-la estava preparada para abraçar inovações e “classificá-la” em termos comerciais. experimentais tais como notações musicais Luiz Tatit referiu-se ao fato de a música incomuns, atonalidade e outras característi- de Assumpção ser uma aproximação do cas inusitadas por medo de desagradar um rock – aproxima-se do rock até certo ponto, público em potencial. O apoio comercial mas geralmente não chega a ser o que é e a latitude criativa concedidos anterior- tradicionalmente considerado como rock mente aos artistas tropicalistas no estúdio (Tatit, 2006, p. 26). Essa é uma observação já haviam se extinguido no início dos anos particularmente apropriada porque a mú- 1980, apesar de 1968 ter sido um momento sica de Assumpção com frequência eleva bem mais repressor no Brasil em termos de as expectativas do ouvinte ao estabelecer censura política e cultural. De fato, o clima uma base melódica ou harmônica familiar e político do início dos anos 1980 talvez tenha depois rapidamente as distorce ao desviar-se sido um dos fatores que contribuíram para para direções inesperadas, criando, dessa que a vanguarda paulista não despertasse maneira, uma corrente persistente de tensão. uma maior receptividade pública, pois, para Mesmo em seu disco mais acessível – seu alguns, ela simplesmente não era política o primeiro LP –, canções de pop-rock tradi- suficiente, e seu experimentalismo “apolí- cionalmente construídas são desconstruídas tico” era visto como frívolo e autocentrado ou “minadas” por uma linha de baixo de demais em uma era de grande mudança reggae ou por um coro feminino irônico de social (Dias, 2000, p. 139). doo-wop, ou por vocais múltiplos e sobre- Embora muitos da indústria fonográfica, postos que proporcionam um contraponto como Schmidt, considerassem a música de insistente ao papel tradicional do cantor Assumpção não comercial, ele próprio esta- principal. Esse uso de vocais múltiplos foi va convencido de que existia um mercado uma das marcas registradas de Assumpção, para seus discos e que o público acabaria com cantoras com frequência oferecendo por apreciar sua música. Ele tentou manter um comentário insistente e diálogo com certo distanciamento da vanguarda paulista seus vocais (como em “Nego Dito”, sua insistindo que não havia nada em sua música composição mais famosa), de tal maneira que podia ser considerado avant-garde, que o papel do vocal de fundo (um papel e que desejava alcançar um público de tradicionalmente feminino na música po- massa. O tempo mostrou que Assumpção pular) é usurpado em favor de um arranjo estava parcialmente correto porque suas muito mais democrático. Tatit considera composições já fizeram parte de trilhas que a música de Assumpção era sempre sonoras de telenovelas e foram regravadas cheia de detalhes e de audição complexa por uma série de artistas contemporâneos demais para permitir que o público em ge- como Chico César, Zélia Duncan e Ney ral desenvolvesse uma afeição por ela. Na Matogrosso. Porém, é também interessante opinião de Tatit, o que era necessário para notar que tal sucesso sempre foi alcançado levar as composições de Assumpção a um por meio de regravações: embora a música público maior era uma cantora como Zélia de Assumpção tenha sido absorvida pelo Duncan, que podia reduzir sua música à sua cânone da MPB contemporânea, a figura melodia principal sem os aspectos “hostis” 5 Entrevista do autor com Luiz Tatit (1o/9/06). dele como intérprete ainda não. Parte desse de suas idiossincrasias5. 94 REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 86-97, setembro/novembro 2010 ITAMAR ASSUMPÇÃO E A um som semelhante a reggae, funk e blues intercalado com uma valorização aguda do TROPICÁLIA poder do silêncio e da consciência de que quase sempre “menos é mais”. A natureza radical desse LP demonstra claramente que O arranjador Rogério Duprat exerceu Assumpção não estava pronto para sacrifi- uma influência fundamental no movimento car sua própria integridade musical para se tropicalista e, coincidentemente, teve valer do sucesso comercial limitado de seu também uma relação próxima com Arrigo primeiro lançamento e da crítica exaltada Barnabé e Itamar Assumpção no início da mídia que ele lhe trouxera. Isso parece de suas carreiras. A mistura audaciosa de confirmar a observação de Luiz Tatit (2006, Barnabé de música popular e atonal nasceu p. 26) de que, apesar de todo o seu desejo da admiração pelos arranjos tropicalistas de manifesto de alcançar um público de massa, Duprat, mas Barnabé também considerava a música de Assumpção, definida por seus que o experimento tropicalista fora apenas compassos inusitados, pausas e silêncios parcialmente bem-sucedido. Embora as inquietantes, mostra muito pouco indício letras de muitas composições tropicalistas de uma busca determinada pelo comer- fossem quase sempre desconcertantes e cialismo. Essa contradição fundamental não convencionais, as canções não eram também foi identificada por Gilberto Gil musicalmente ousadas e precisavam ser bem (2006, p. 22), que, apesar de admitir que mais experimentais (Souza, 1983, p. 197). a obra de Assumpção foi uma continuação Assumpção achava que não ocorrera ne- do experimentalismo do legado tropica- nhuma grande inovação na música popular lista, também salienta que a oscilação de brasileira desde as agitações instigadas pela Assumpção entre o desejo de experimentar tropicália, e tanto ele quanto Barnabé eram e um anseio pelo sucesso popular fez com Grupo Rumo, movidos por um desejo de buscar direções que os elementos mais populares de sua Caprichoso, musicais até então inexploradas. música ficassem obscurecidos. independente, Em 1982 Assumpção declarou que suas Em um nível mais amplo, Gil (2006, p. apresentações ao vivo (as quais eram cons- 22) argumenta que vários músicos e intér- 1985 cientemente teatrais e provocativas) eram um esforço diligente para expandir as ideias existentes de como apresentar música no palco, e que estava à procura de uma apre- sentação musical mais completa, algo que iria além das inovações da tropicália. Em sua opinião, a música popular brasileira não conseguira assimilar os aspectos originais da tropicália e ficara presa num bloqueio criativo. Como indica o título do segundo LP de Assumpção, Às Próprias Custas S/A, foi gravado com seus próprios recursos porque ele não conseguira um contrato com uma gravadora. Nesse disco ele demonstrou que estava preparado para evitar o apelo comer- cial, decompor sua música até reduzi-la à sua essência, e justapor sua própria visão musical com releituras radicais de sambas como “Você Está Sumindo” (Jorge de Castro e Geraldo Pereira) e “Vide Verso Meu Endereço” (Adoniran Barbosa). É um disco disperso, quase minimalista, com 95 REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 86-97, setembro/novembro 2010

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