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Música na noite & outros ensaios PDF

210 Pages·2014·0.95 MB·Portuguese
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PARTE I TRAGÉDIA E A VERDADE COMPLETA H avia seis deles, os melhores e mais bravos entre os companheiros do herói. Retornando de seu posto na proa, Odisseu chegou a tempo de vê-los erguidos no ar, lutando, de ouvir seus gritos, a repetição desesperada de seu próprio nome. Os sobreviventes podiam somente olhar, impotentes, enquanto Cila “na boca de sua caverna os devorava, gritando ainda, estendendo ainda suas mãos para mim na luta pavorosa”. E Odisseu acrescenta que foi a visão mais terrível e lamentável que jamais viu em todas as suas “explorações dos estreitos do mar”. Nós podemos acreditar; a breve descrição de Homero (o símile demasiado poético é uma interpolação posterior) nos convence. Mais tarde, o perigo superado, Odisseu e seus homens desceram em terra para passar a noite e prepararam seu jantar na praia siciliana – prepararam-na, diz Homero, “habilmente”. O décimo segundo livro da Odisseia se conclui com estas palavras: “Quando haviam saciado a sede e a fome, pensaram em seus queridos companheiros e choraram, e no meio de suas lágrimas o sono caiu suavemente sobre eles”. A verdade, a verdade completa e nada senão a verdade – quão raramente as literaturas mais antigas alguma vez a contaram! Fragmentos da verdade, sim; todo bom livro nos dá fragmentos da verdade, não seria um bom livro se não o fizesse. Mas a verdade completa, não. Dos grandes escritores do passado, incrivelmente, poucos nos deram isso. Homero – o Homero da Odisseia – é um desses poucos. “Verdade?”, você pergunta. “Por exemplo, 2 + 2 = 4? A rainha Vitória subiu ao trono em 1837? A luz viaja numa velocidade de 300 mil quilômetros por segundo?” Não, obviamente você não vai encontrar muita coisa desse tipo na literatura. A “verdade” que acabei de mencionar é de fato não mais do que uma verossimilhança aceitável. Quando as experiências registradas num texto de literatura correspondem com bastante proximidade às nossas próprias experiências reais, ou àquilo que posso chamar de nossas experiências em potencial – experiências, isto é, que sentimos (como resultado de um processo mais ou menos explícito de inferência de fatos conhecidos) que poderíamos ter tido –, nós dizemos, sem dúvida de forma imprecisa: “Este texto é verdadeiro”. Mas isso, claro, não é a história toda. O registro de um caso num compêndio de psicologia é cientificamente verdadeiro na medida em que é um relato preciso de eventos particulares, mas também pode atingir o leitor como sendo “verdadeiro” em relação a ele mesmo – isto é, como sendo aceitável, provável, tendo correspondência com suas próprias experiências reais ou potenciais. Mas um compêndio de psicologia não é uma obra de arte – ou é apenas secundária e incidentalmente uma obra de arte. Uma mera verossimilhança, uma mera correspondência da experiência registrada pelo escritor com a experiência lembrada ou imaginável pelo leitor, não basta para fazer com que uma obra de arte pareça “verdadeira”. A boa arte possui uma espécie de superverdade – é mais provável, mais aceitável, mais convincente do que o fato em si. Naturalmente; porque o artista é dotado de uma sensibilidade, de um poder de comunicação, de uma capacidade de “levar as coisas a cabo” que os acontecimentos e a maioria das pessoas a quem os acontecimentos ocorrem não têm. A experiência ensina somente aos ensináveis, que não são de maneira nenhuma tão numerosos como nos faria supor o provérbio favorito do papai da sra. Micawber. Os artistas são eminentemente ensináveis e também eminentemente ensinadores. Eles recebem dos acontecimentos muito mais do que recebe a maioria dos homens e conseguem transmitir o que receberam com peculiar força de penetração, que conduz a comunicação pelas profundezas da mente do leitor. Uma de nossas reações mais comuns a uma boa obra de arte literária está expressa na fórmula: “Isto é o que eu sempre senti e pensei, mas jamais fui capaz de formular com clareza em palavras, nem mesmo para mim”. Estamos agora em condições de explicar o que queremos dizer quando afirmamos que Homero é um escritor que conta a Verdade Completa. Queremos dizer que as experiências registradas por ele correspondem com bastante proximidade às nossas próprias experiências reais ou potenciais – e correspondem às nossas experiências não numa única área limitada, mas em todas as etapas do nosso ser físico e espiritual. E também queremos dizer que Homero registra essas experiências com uma força de penetração artística que faz com que pareçam particularmente aceitáveis e convincentes. Isso basta, então, quanto à verdade na literatura. Homero, eu repito, é a Verdade Completa. Considere como praticamente qualquer outro dos grandes poetas teria concluído a história do ataque de Cila sobre o navio que passava. Seis homens, lembre, foram tomados e devorados diante dos olhos de seus amigos. Em qualquer outro poema exceto a Odisseia, o que teriam feito os sobreviventes? Eles teriam naturalmente chorado, bem como Homero os fez chorar. Mas será que teriam previamente preparado seu jantar, e o preparado, ainda por cima, de forma magistral? Será que teriam previamente bebido e comido até a saciedade? E depois de chorar, ou de fato enquanto choravam, teriam desfalecido num sono tranquilo? Não, eles certamente não teriam feito nenhuma dessas coisas. Eles teriam simplesmente chorado, lamentando sua própria desgraça e o terrível destino de seus companheiros, e o Canto teria terminado tragicamente com suas lágrimas. Homero, no entanto, preferiu contar a Verdade Completa. Ele sabia que até os mais cruelmente enlutados precisam comer; que a fome é mais forte do que a tristeza e que a sua satisfação tem precedência até mesmo sobre as lágrimas. Sabia que os habilidosos seguem agindo com habilidade e obtendo satisfação em suas realizações, mesmo quando amigos acabaram de ser comidos, mesmo quando a realização consiste apenas em preparar o jantar. Sabia que quando a barriga está cheia (e somente quando a barriga está cheia) os homens podem se permitir a extravagância de sofrer, e que a tristeza depois do jantar é quase um luxo. E por fim ele sabia que, mesmo que a fome tenha precedência sobre a tristeza, do mesmo modo a fadiga, sobrevindo, interrompe sua carreira e a mergulha num sono que é tanto mais doce por trazer o esquecimento do luto. Para resumir, Homero se recusou a tratar o tema de maneira trágica. Ele preferiu contar a Verdade Completa. Outro autor que preferiu contar a Verdade Completa foi Fielding. Tom Jones é um dos pouquíssimos livros odisseicos escritos na Europa entre o tempo de Ésquilo e a época presente; odisseico porque nunca trágico; nunca – nem mesmo nos momentos dolorosos e desastrosos, nem mesmo quando coisas patéticas e belas estão acontecendo. Pois elas acontecem; Fielding, como Homero, admite todos os fatos, não se esquiva de nada. Com efeito, é precisamente porque esses autores não se esquivam de nada que os seus livros não são trágicos. Pois entre as coisas de que eles não se esquivam estão as irrelevâncias que, na vida real, sempre temperam as situações e os personagens que os escritores trágicos insistem em manter quimicamente puros. Considere, por exemplo, o caso de Sophy Western, a mais encantadora, quase que a mais perfeita das jovens mulheres. Fielding, é óbvio, adorava Sophia (ela foi criada, segundo se diz, à imagem de sua primeira e bem-amada esposa). Apesar de sua veneração, porém, ele se recusou a transformá-la numa dessas criaturas quimicamente puras e por assim dizer centradas que só fazem sofrer no mundo da tragédia. Aquele estalajadeiro que tirou a cansada Sophia de seu cavalo – que necessidade ele tinha de cair? Em nenhuma tragédia ele teria (ou melhor, poderia ter) desabado sob o peso da jovem. Porque antes de mais nada, no contexto trágico, o peso é uma irrelevância; heroínas devem pairar acima da lei da gravidade. Mas isso não é tudo; o leitor recorde agora quais foram os resultados de tal queda. Tombando de costas direto no chão, ele puxou Sophia por cima de si – sua barriga serviu de almofada, de modo que, por felicidade, ela não veio a sofrer nenhum dano corporal –, puxou-a com a cabeça para baixo. Mas cabeça para baixo significa necessariamente pernas para cima; houve uma exposição momentânea dos mais arrebatadores encantos; os grosseirões na porta da estalagem reagiram com expressões sorridentes ou gargalharam; a pobre Sophia, quando eles a levantaram, corava numa agonia de embaraço e pudor ferido. Não há nada intrinsecamente improvável nesse incidente, que é estampado, de fato, com todas as marcas da verdade literária. Contudo, por mais que seja verdadeiro, é um incidente que jamais, jamais poderia ter acontecido a uma heroína de tragédia. Isso jamais teria sido permitido. Mas Fielding recusou- se a impor o veto do autor trágico; ele não se esquivou de nada – nem da intromissão de absurdos irrelevantes no meio do romance ou do desastre, nem de nenhuma das não menos irrelevantes e dolorosas interrupções, comuns à vida, do curso da felicidade. Ele não queria ser um autor trágico. E não resta dúvida: aquele fugaz vislumbre perolado do encantador traseiro de Sophia foi suficiente para que a Musa da Tragédia se afastasse correndo de Tom Jones, assim como, mais de 25 séculos antes, a visão de homens pesarosos primeiro comendo, depois se lembrando de chorar e depois esquecendo suas lágrimas no sono fizera com que se afastasse correndo da Odisseia. Em seu Princípios de crítica literária, o sr. I.A. Richards afirma que a boa tragédia se mostra impermeável à ironia e à irrelevância – que ela pode absorver qualquer coisa dentro de si e ainda seguir sendo tragédia. De fato, ele parece fazer dessa capacidade de absorver o não trágico e o antitrágico uma pedra de toque do mérito trágico. Assim testadas, praticamente todas as tragédias gregas, todas as francesas e a maioria das tragédias elisabetanas se revelam deficientes. Somente o melhor de Shakespeare consegue resistir ao teste. Ao menos é o que diz o sr. Richards. Ele está certo? Muitas vezes eu tive as minhas dúvidas. As tragédias de Shakespeare são permeadas, é verdade, com ironia e um cinismo que é muitas vezes aterrorizante; mas o cinismo é sempre idealismo heroico virado perfeitamente do avesso, e a ironia é uma espécie de negativo fotográfico do romance heroico. Transforme o branco de Troilo em preto e todos os seus pretos em branco, e você tem Térsites. Invertidos, Otelo e Desdêmona se transformam em Iago. O negativo da branca Ofélia é a ironia de Hamlet, é a obscenidade ingênua de suas próprias canções loucas; da mesma maneira que o cinismo do louco Rei Lear é a negra sombra-réplica de Cordélia. Só que a sombra, o negativo fotográfico de uma coisa, não é de modo algum irrelevante. As ironias e os cinismos de Shakespeare servem para dar profundidade a seu mundo trágico, mas não para lhe dar amplitude. Se o tivessem ampliado, como as irrelevâncias homéricas ampliaram o universo da Odisseia – ora, nesse caso, o mundo da tragédia shakespeariana teria deixado de existir automaticamente. Por exemplo, uma cena mostrando um enlutado Macduff[1] comendo seu jantar, ficando cada vez mais melancólico com seu uísque, pensando na esposa e nos filhos assassinados, e depois, com cílios ainda molhados, se jogando na cama para dormir, seria verdadeira o bastante no que diz respeito à vida; mas não teria uma verdade de arte trágica. A introdução de uma cena como essa mudaria por inteiro a qualidade da peça; tratada nesse estilo odisseico, Macbeth deixaria de ser uma tragédia. Ou tome o caso de Desdêmona. Os comentários brutalmente cínicos de Iago sobre o caráter dela não são de modo algum, como vimos, irrelevantes à tragédia. Eles nos apresentam imagens negativas da real natureza de Desdêmona e dos sentimentos que ela tem por Otelo. Essas imagens negativas são sempre dela, são sempre reconhecivelmente propriedade da heroína-vítima de uma tragédia. Ao passo que, caso ela tivesse tombado quando saltou em terra no Chipre, como a não menos requintada Sophia tombaria, e tivesse revelado as indecências das roupas íntimas do século XVI, a peça já não seria o Otelo que conhecemos. Iago poderia gerar uma família de pequenos cínicos e a dose existente de amargura e negação selvagem poderia ser duplicada e triplicada; Otelo ainda permaneceria, fundamentalmente, Otelo. Mas algumas poucas irrelevâncias fieldinescas destruiriam a obra – a destruiriam, isto é, como tragédia; porque não haveria nada que a impedisse de se tornar um magnífico drama de outro tipo. Porque o fato é que a tragédia e isso que eu chamei de Verdade Completa não são compatíveis; onde temos uma, não temos a outra. Existem certas coisas que nem mesmo a melhor tragédia, nem mesmo a tragédia shakespeariana pode absorver dentro de si. Para fazer uma tragédia, o artista precisa isolar um único elemento na totalidade da experiência humana e usá-lo como seu material exclusivo. A tragédia é algo que é extraído da Verdade Completa, destilado dela, por assim dizer, como uma essência é destilada da flor viva. A tragédia é quimicamente pura. Daí o seu poder de agir de forma rápida e intensa em nossos sentimentos. Todas as artes quimicamente puras têm esse poder de agir sobre nós de forma rápida e intensa. Assim, a pornografia quimicamente pura (nas raras ocasiões em que acontece de ser escrita num modo convincente, por alguém que tenha o dom de “levar as coisas a cabo”) é uma droga emocional de ação rápida, com poder incomparavelmente maior do que a Verdade Completa na sensualidade, ou até mesmo (para muitas pessoas) do que a realidade concreta e carnal em si. É por causa de sua pureza química que a tragédia executa sua função de catarse com tamanha eficácia. Ela refina e corrige e dá um estilo à nossa vida emocional, e o faz com muita presteza, com poder. Colocados em contato com a tragédia, os elementos do nosso ser assumem, ao menos de momento, um padrão ordenado e belo, como a limalha de ferro se arranja sob a influência do ímã. Em todas as suas variações individuais, esse padrão é sempre fundamentalmente do mesmo tipo. Da leitura ou da audição de uma tragédia nós saímos com a sensação de que Nossos amigos são exultações, agonias, E amor, e a mente inconquistável do homem; com a convicção heroica de que também nós seríamos inconquistáveis caso fôssemos submetidos às agonias, de que no meio das agonias também nós continuaríamos amando, podendo até aprender a exultar. É porque faz essas coisas conosco que a tragédia é tida como tão valiosa. Quais são os valores da arte Completamente-Verdadeira? O que ela faz conosco que parece valer a pena fazer? Tentemos descobrir. A arte Completamente-Verdadeira transborda os limites da tragédia e nos mostra, mesmo que apenas por indícios e implicações, o que aconteceu antes de ter começado a história trágica, o que vai acontecer depois que acabar, o que está acontecendo simultaneamente em outros lugares (e “outros lugares” inclui todas as partes da mente e corpo dos protagonistas não imediatamente engajadas na luta trágica). A tragédia é um redemoinho arbitrariamente isolado na superfície de um vasto rio que corre de maneira majestosa, de maneira irresistível, ao redor, abaixo e em cada lado. A arte Completamente-Verdadeira trama para implicar a existência do rio inteiro bem como a do redemoinho. É um tanto diferente da tragédia, ainda que possa conter, entre outros componentes, todos os elementos dos quais é feita a tragédia. (A “mesma coisa”, colocada em contextos diferentes, perde a sua identidade e se torna, para uma mente perceptiva, uma sucessão de coisas diferentes.) Na arte Completamente-Verdadeira as agonias podem ser tão reais, o amor e a mente inconquistável podem ser tão admiráveis,

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