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Mil Platôs (volume único) PDF

644 Pages·2021·6.84 MB·Portuguese
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Gilles Deleuze Félix Guattari M P IL LATÔS Capitalismo e Esquizofrenia 2 Volume único PDF - 2021 Editora 34, Rio de Janeiro, 1995 Les Éditions de Minuit, Paris, 1980 SUMÁRIO Orelhas dos livros (ed. brasileira).................................................................................... I Prefácio para a edição italiana ...................................................................................... VI Nota dos autores ............................................................................................................. 8 1. Introdução: Rizoma ......................................................................................................... 9 2. 1914 Um só ou vários lobos? ........................................................................................ 38 3. 10.000 a.C. A geologia da moral (Quem a Terra pensa que é?) ................................. 53 4. 20 de novembro de 1923 Postulados da linguística ................................................... 95 5. 587 a.C. - 70 d.C. Sobre alguns regimes de signos ................................................... 140 6. 28 de novembro de 1947 Como criar para si um Corpo sem Órgãos .................... 185 7. Ano Zero Rostidade ..................................................................................................... 205 8. 1874 Três novelas ou “o que se passou?” .................................................................. 235 9. 1933 Micropolítica e segmentaridade ....................................................................... 253 10. 1730 Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível... ......................................... 284 11. 1837 Acerca do ritornelo ............................................................................................ 381 12. 1227 Tratado de nomadologia: a máquina de guerra ............................................. 434 13. 7.000 a.C. Aparelho de captura ................................................................................. 528 14. 1440 O liso e o estriado .............................................................................................. 592 15. Conclusão: Regras concretas e máquinas abstratas ............................................... 626 Índice das ilustrações .................................................................................................. 642 I ORELHAS DOS LIVROS (ED. BRASILEIRA) Volume 1 Por François Ewald O que é Mil platôs? Como se organiza? Como um tratado de filosofia, após a ruptura, quando o filósofo, o grande nômade, resolveu desertar a filosofia dos códigos, dos terri- tórios e dos Estados, a filosofia do comentário. Mil platôs é um grande livro, porque com ele a filosofia alcança um de seus devires improváveis. Mil platôs desenvolve uma filosofia verdadeira, quer dizer nova, inaugural, inédita. Duas grandes filosofias jamais se asseme- lham; pois elas jamais são da mesma família. A filosofia não se desenvolve seguindo uma linha arborescente de evolução, mas segundo uma lógica dos múltiplos singulares. A questão que Deleuze e Guattari retomam é a seguinte: de que se ocupa, então, a filosofia, se ela só pode se exprimir de uma maneira incomparável? Evidentemente não daquele que poderia ser comum a todas as filosofias: do universal, do verdadeiro, do belo e do bem. Deleuze e Guattari respondem do múltiplo puro sem referência a um qualquer um, da diferença pura, das intensidades que individualizam, das hecceidades. Mil platôs é um evento na ordem da filosofia. E ler Mil platôs é se perguntar: 1980, Mil platôs, o que é que aconteceu? Mil platôs contém todos os componentes de um tratado clássico de filosofia: uma ontologia, uma física, uma lógica, uma psicologia e uma moral, uma política. Com a dife- rença de que não se vai de uma a outra segundo uma lógica de desenvolvimento, do que funda ao fundado, dos princípios às consequências. Deleuze e Guattari dão mais privilé- gio ao espaço do que ao tempo, ao mapa do que à árvore. Tudo é coextensivo a tudo. Assim as divisões só podem corresponder a placas, a estrias paralelas, com diferenças de escala, correspondências e articulações dos platôs, datados mas co-presentes. Deleuze e Guattari concebem a ontologia como geologia: ao invés do ser, a terra, com seus estratos físico-químicos, orgânicos, antropomórficos. Pois de que a terra é feita? Quem fez da terra o que ela é? Quem deu esse corpo à terra? Máquinas, sempre as má- quinas. A terra é a grande máquina, a máquina de todas as máquinas. Mecanosfera. A filosofia de Mil platôs não concebe oposição entre o homem e a natureza, entre a natureza e a indústria, mas simbiose e aliança. A lógica da mecanosfera não conhece a negação nem a privação. Há apenas devires, sempre positivos, e, dentre estes, devires perdidos, bloqueados, mortos. Positividade do esquizo. Como criar para si um corpo sem órgão? E o que está em jogo em um devir-? Não há dúvida de que, antes de Mil platôs, nunca se tinha ido tão longe na crítica da represen- tação e da significação, na revelação do que se relaciona a uma representação. Não um significante, mas sempre um ato, uma ação. Gilles Deleuze e Félix Guattari detestam a interpretação. “Interpretar”, dizem, “é nossa maneira moderna de crer e de ser piedoso”. À interpretação, eles opõem a experi- mentação. Seu método, esquizoanálise ou pragmática, obedece às regras de um positi- vismo radical. Não se trata de amor a ciência, mas de produzir fatos. Os dois tomos de Capitalismo e esquizofrenia são uma máquina de produzir fatos e, como tal, inéditos. Sua importância é a de renovar completamente os fatos de que trata a filosofia e que tramam a nossa existência. II Volume 2 Por Antônio Negri Dizem que não existe livro que traduza 68: isso é falso! Esse livro é Mil platôs. Mil platôs é o materialismo histórico em ato de nossa época. Contrastando radicalmente com certa deriva atual, os Mil platôs reinventam as ciên- cias do espírito (deixando bem claro que, na tradição em que se situam Deleuze e Guat- tari, geist é o cérebro), renovando o ponto de vista da historicidade, em sua dimensão ontológica e constitutiva. Os Mil platôs precedem o pós-moderno e as teorias de herme- nêutica fraca: antecipam uma nova teoria da expressão, um novo ponto de vista ontoló- gico — instrumento graças ao qual se encontram em posição de combater a pós-moder- nidade, desvelando e dinamitando suas estruturas. Trata-se aqui de um pensamento forte, mesmo quando se aplica ã “fraqueza” do cotidiano. Quanto ao seu projeto, trata-se de apreender o criado, do ponto de vista da criação. Esse projeto não tem nada de idealista: a força criadora é um rizoma material, ao mesmo tempo máquina e espírito, natureza e indivíduo, singularidade e multiplicidade — e o palco é a história, de 10.000 a.C. aos dias de hoje. O moderno e o pós-moderno são ruminados e digeridos, e reaparecem contribuindo para fertilizar abundantemente uma hermenêutica do porvir. Relendo os Mil platôs anos mais tarde, o que é mais impressio- nante é a incrível capacidade de antecipação que aí se exprime. O desenvolvimento da informática e da automação, os novos fenômenos da sociedade mediática e da interação comunicacional, as novas vias percorridas pelas ciências naturais e pela tecnologia cien- tífica, em eletrônica, biologia, ecologia, etc, são apenas previstos, mas já levados em conta como horizonte epistemológico, e não como simples tecido fenomenológico sofrendo uma extraordinária aceleração. Mas a superfície do quadro no qual se desenrola a dra- maturgia do futuro é, na verdade, ontológica — uma superfície dura e irredutível, preci- samente ontológica e não transcendental, constitutiva e. não sistêmica, criativa e não li- beral. Se toda filosofia assume e determina sua própria fenomenologia, uma nova feno- menologia se afirma aqui com força. Ela se caracteriza pelo processo que remete o mundo à produção, a produção à subjetividade, a subjetividade à potência do desejo, a potência do desejo ao sistema de enunciação, a enunciação à expressão. E vice-versa. E no interior da linha traçada a partir do “vice-versa”, quer dizer, indo da expressão subje- tiva à superfície do mundo, ã historicidade em ato, que se revela o sentido do processo (ou ainda a única ideologia que a imanência absoluta pode se permitir): o sentido do pro- cesso é o da abstração. O sujeito que produz o mundo, na horizontalidade ampliada de suas projeções, efetua ele mesmo, cada vez mais, sua própria realização. A primeira vista, o horizonte do mundo construído por Deleuze-Guattari parece animista: mas muito rapi- damente se vê que esse animismo traduz a mais alta abstração, o processo incessante dos agenciamentos maquínicos e das subjetividades se elevando a uma abstração cada vez mais alta. Nesse mundo de cavernas, de dobras, de rupturas, de reconstruções, o cérebro hu- mano se dedica a compreender, antes de mais nada, sua própria transformação, seu pró- prio deslocamento, para além da conflitualidade, nesse lugar em que reina a mais alta abstração. Mas essa abstração é novamente desejo. III Volume 3 Jean-Clet Martin Mil platôs, esse livro plural, não é um tratado de metafísica ou um simples ensaio de história das ideias. É, antes, um livro de magia, uma alquimia preciosa em que cada fór- mula traça a cifra de uma metamorfose. O que se trata de modificar sob a ação dessa metamorfose é a própria ideia de conceito, que nada tem em comum com a lógica de sua compreensão, tampouco com a de sua extensão. Nem interpretação nem explicação, o conceito só existe por variação, quer dizer, no fim das contas, por criação contínua. Mas não basta definir a filosofia pela criação de conceito se, nessa mesma circuns- tância, nos eximimos de fazê-lo. Descrever conceitos não é produzi-los. Desse modo, esse livro de platôs superpostos fará com que penetremos no antro da feiticeira, no lugar onde Deleuze não se transforma em gato sem que Guattari se torne um rato, onde o rato se torna subitamente um tigre, o tigre vira pulga assim que o gato se metamorfoseia em micróbio. Fazer conceitos é questão de devir-, um devir que, arrastando esta ou aquela determinação conceituai no declive de sua variação, produzirá mutações na vertente da estética, da política, da ciência, cujos mapas e transformações é impossível separar. Um platô não é nada além disso: um encontro entre devires, um entrecruzamento de linhas, de fluxos, ou uma percolação — fluxos que, ao se encontrarem, modificam seu movimento e sua estrutura; é por isso que o mais importante dos operadores que este livro consegue construir concerne não ao relevo de um platô, mas àquele por meio do qual os platôs se chocam e se penetram, mudando todos os índices de ambiente e as coordenadas de território: é a desterritorialização. Um conceito, assim como uma flor ou um inseto, tem seus ambiente e seus territó- rios. Toda uma etologia do conceito, por meio da qual não se pode mais separar seus componentes do ambiente concreto em que eles se depositam. O que ocorre, ao contrá- rio, quando certo conceito é levado para um outro ambiente? Quais são os acontecimentos que ocorrem com os conceitos quando estes se desterritorializam? A essa questão responde a ideia de ritornelo, uma ideia musical que proporá aos conceitos seu ritmo e seu canto, para posturas e acrobacias inauditas. Há, então, duas coisas muito diferentes: aquelas em que se tramam procedimentos éticos, etológicos, mas que ainda não são conceitos. São condições dos conceitos, dos gritos, dos cantos que os afetam. E, acima dos territórios e dos ambientes, ainda são necessários os processos, que são como gestos e posturas reagindo aos ambientes. O procedimento é um ritmo, ao passo que o processo é uma dança — duas asas que abrem para este livro suas longitu- des e sua latitude. IV Volume 4 Peter Pál Pelbar Mil platôs é o prolongamento de uma aposta iniciada em O anti-Édipo. Mais do que um acerto de contas com a conturbada década dos 60 e o freudo-marxismo que parecia animá-la, este era, segundo a bela definição de Michel Foucault, uma “introdução à vida não-fascista”. Ou seja, um livro de ética. Foucault resumia as linhas de força daquele “guia da vida cotidiana”: liberar a ação política de toda forma de paranoia unitária e totalizante; alastrar a ação, o pensamento e o desejo por proliferação e disjunção (e não por hierar- quização piramidal); liberar-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castra- ção, a falta), investindo o positivo, o múltiplo, o nômade; desvincular a militância da tris- teza (o desejo pode ser revolucionário); liberar a prática política da noção de Verdade; recusar o indivíduo como fundamento para reivindicações políticas (o próprio indivíduo é um produto do poder) etc. Ora, não podemos dizer que essas balizas perderam algo de sua pertinência ou atu- alidade, muito pelo contrário. Na esteira delas, Mil platôs vai ainda mais longe, e de ma- neira mais leve, sóbria e radical. Despede-se das polêmicas com a psicanálise, desfaz os mal-entendidos sobre os marginais e suas bandeiras, multiplica as regras de prudência, intensifica a leitura micropolítica, amplia o espectro das matérias deglutidas (etologia, ar- quitetura, cibernética, metalurgia etc)., reinventa suas interfaces e hibridações e lança ao ar saraivadas de conceitos novos, como desterritorialização, devires, rizoma, platô. Já a forma do livro pede uma leitura inusitada. Seus platôs de intensidade, e não capítulos, podem ser lidos independentemente uns dos outros, mas formam uma rede, um rizoma. Num rizoma entra-se por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquer outro, não há um centro, nem uma unidade presumida — em suma, o rizoma é uma multiplicidade (como se vê, todas essas características prenunciavam a geografia imate- rial da Internet, para cuja assimilação filosófica parecíamos tão pouco preparados). Contra a geografia mental do Estado, com seus sulcos e estrias, Mil platôs faz valer um espaço liso para um pensamento nômade. Contra o homem-branco-macho-racional- europeu, padrão majoritário da cultura, libera as mutações virtuais, os devires minoritá- rios e moleculares capazes de desfazer nosso rosto demasiadamente humano. Contra as miragens em que se contempla, o homem é devolvido ao rizoma material e imaterial que o constitui, seja ele biopsíquico, tecno-social ou semiótico. Para aquém das figuras visíveis da História e do Capital, colhe seus movimentos de desterritorialização, a singularidade dos Acontecimentos aí gestados, as subjetivações que se anunciam, as lufadas intempes- tivas que chamam por um povo ainda desconhecido. Este livro é um exemplo vivo daquilo que os autores consideram a tendência, ou mesmo a tarefa da filosofia moderna: elaborar um material de pensamento capaz de cap- tar a miríade de forças em jogo e fazer do próprio pensamento uma força do Cosmos. O filósofo como um artesão cósmico, a filosofia como estratégia. Deleuze chegou a considerar Mil platôs o melhor de tudo o que já escrevera. Predi- leção premonitória ou não, o fato é que este livro inclassificável começa a ser revisitado, justo numa época em que se prega sobranceiramente o fim da Filosofia, ou mesmo da História, em vez de se buscar ferramentas teóricas para a travessia do milênio. V Volume 5 Michael Hardt Mil platôs é o mais profundo trabalho político de Deleuze e Guattari. A primeira vista, ele parece, na verdade, um guia claro, pronto a responder a questões de avaliação e ação políticas. Deleuze e Guattari apresentam incessantemente dicotomias no campo social e político: o Estado e a máquina de guerra, o sedentário e o nômade, territorialização e desterritorialização, o estriado e o liso, e assim por diante. As distinções parecem prolife- rar infinitamente, mas todas elas giram em torno de um único eixo. O mundo é dividido em compartimentos e o texto nos convida a censurar um polo e afirmar o outro — Abaixo o Estado! Viva a máquina de guerra nômade! Se ao menos a política fosse tão simples. No entanto, ao prosseguirmos na leitura, percebemos que Deleuze e Guattari com- plicam continuamente essa clara série de distinções. É importante reconhecer, em pri- meiro lugar, que os termos contrastantes não estão em oposição absoluta um com o ou- tro (como se pudessem ser subsumidos dialeticamente em uma unidade superior). Os termos de cada distinção não são postos em contradição, mas sim em uma relação oblí- qua ou diagonal, irreconciliavelmente diferente e desconjunta. Em segundo lugar, ao ana- lisarmos cada par mais de perto, descobrimos que nenhum termo é realmente puro, ou exclusivo de seu outro. O Estado sempre contém internalizada uma máquina de guerra institucionalizada; todo movimento de desterritorialização carrega consigo elementos de reterritorialização. As próprias fronteiras que separam os termos emparelhados são, em outras palavras, vagas, continuamente em fluxo. Finalmente, o que parecia ser o caminho assinalado da liberação revela, por vezes, conter paradoxalmente a dominação mais bru- tal: o alisamento do espaço social traz, às vezes, uma rigorosa hipersegmentação; linhas de fuga revertem-se frequentemente em linhas de destruição, tendendo assim ao fas- cismo e ao suicídio. Ao final, Deleuze e Guattari irão frustrar qualquer aplicação direta de simples fór- mulas políticas. Eles dificultarão qualquer slogan ou mol d’ordre. É essa complexidade é parte da riqueza de Mil platôs enquanto análise propriamente política. A complexidade e as distinções flutuantes, oblíquas não necessariamente paralisam a ação política — por medo de que possamos ser impuros, cúmplices de nossos inimigos. Isto significa apenas que o pensamento político e a ação política não podem prosseguir ao longo de uma linha reta. A política de Deleuze e Guattari é melhor concebida como um ziguezague que se move em diferentes ângulos de acordo com as contingências locais e em mudança. VI PREFÁCIO PARA A EDIÇÃO ITALIANA Com o passar dos anos, os livros envelhecem, ou, ao contrário, recebem uma se- gunda juventude. Ora eles engordam e incham, oram modificam seus traços, acentuam suas arestas, fazem subir à superfície novos planos. Não cabe aos autores determinar um tal destino objetivo. Mas cabe a eles refletir sobre o lugar que tal livro ocupou, com o tempo, no conjunto de seu projeto (destino subjetivo), ao passo que ele ocupava todo o projeto no momento em que foi escrito. Mil platôs (1980) se seguiu ao Anti-Édipo (1972). Mas eles tiveram objetivamente des- tinos muito diferentes. Sem dúvida por causa do contexto: a época agitada de um, que pertence ainda a 68, e a calmaria já absoluta, a indiferença em que o outro surgiu. Mil platôs foi o nosso livro de menor receptividade. Entretanto, se o preferimos, não é da maneira como uma mãe prefere seu filho desfavorecido. O Anti-Édipo obtivera muito su- cesso, mas esse sucesso se duplicava em um fracasso mais profundo. Pretendia denun- ciar as falhas de Édipo, do “papai-mamãe”, na psicanálise, na psiquiatria e até mesmo na antipsiquiatria, na crítica literária e na imagem geral que se faz do pensamento. Sonhá- vamos em acabar com Édipo. Mas era uma tarefa grande demais para nós. A reação con- tra 68 iria mostrar a que ponto o Édipo familiar passava bem e continuava a impor seu regime de choramingo pueril na psicanálise, na literatura e por toda parte no pensa- mento. De modo que o Édipo continuava a ser nossa ocupação. Ao passo que Mil platôs, apesar de seu fracasso aparente, fazia com que déssemos um passo à frente, ao menos para nós, e abordássemos terras desconhecidas, virgens de Édipo, que o Anti-Édipo tinha apenas visto de longe sem nelas penetrar. Os três temas do Anti-Édipo eram os seguintes: 1) o inconsciente funciona como uma usina e não como um teatro (questão de produção, e não de representação); 2) o delírio, ou o romance, é histórico-mundial, e não familiar (deliram-se as ra- ças, as tribos, os continentes, as culturas, as posições sociais..).; 3) há exatamente uma história universal, mas é a da contingência (como os flu- xos, que são o objeto da História, passam por códigos primitivos, sobrecodi- ficações despóticas, e descodificações capitalistas que tornam possível uma conjunção de fluxos independentes). O Anti-Édipo tinha uma ambição kantiana: era preciso tentar uma espécie de Crítica da Razão pura no nível do inconsciente. Daí a determinação de sínteses próprias ao in- consciente; o desenrolar da história como efetuação dessas sínteses; a denúncia do Édipo como “ilusão inevitável” falsificando toda produção histórica. Mil platôs se baseia, ao con- trário, em uma ambição pós-kantiana (apesar de deliberadamente anti-hegeliana). O pro- jeto é “construtivista”. É uma teoria das multipheidades por elas mesmas, no ponto em que o múltiplo passa ao estado de substantivo, ao passo que o Anti-Édipo ainda o VII considerava em sínteses e sob as condições do inconsciente. Em Mil platôs, o comentário sobre o homem dos lobos (“Um só ou vários lobos”) constitui nosso adeus à psicanálise, e tenta mostrar como as multipheidades ultrapassam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a história, o corpo e a alma. As multipheidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multipheidades. Os princípios característicos das multipheidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas relações, que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização. A história universal da contingência atinge aí uma variedade maior. Em cada caso, a questão é: onde e como se faz tal encontro? Em vez de seguir, como no Anti-Édipo, a se- quência tradicional Selvagens-Bárbaros Civilizados, encontramo-nos agora diante de to- das as espécies de formações coexistentes: os grupos primitivos, que operam por séries e por avaliação do “último” termo, em um estranho marginalismo; as comunidades des- póticas, que constituem, ao contrário, conjuntos submetidos a processos de centralização (aparelhos de Estado); as máquinas de guerra nômades, que não irão apossar-se dos Es- tados sem que estes se apropriem da máquina de guerra, que eles não admitiam de iní- cio; os processos de subjetivação que se exercem nos aparelhos estatais e guerreiros; a convergência desses processos, no capitalismo e através dos Estados correspondentes; as modalidades de uma ação revolucionária; os fatores comparados, em cada caso, do território, da terra e da desterritorialização. Esses três fatores podem ser vistos jogando aqui livremente, quer dizer estetica- mente, no ritornelo. As pequenas cantigas territoriais, ou o canto dos pássaros; o grande canto da terra, quando a terra bramiu; a potente harmonia das esferas ou a voz do cosmo? É isso o que este livro teria desejado: agenciar ritornelos, lieder, correspondentes a cada platô. Pois a filosofia, ela também, não é diferente disso, da cançoneta ao mais potente dos cantos, uma espécie de sprechgesang cósmico. O pássaro de Minerva (para falar como Hegel) tem seus gritos e seus cantos; os princípios em filosofia são gritos, em torno dos quais os conceitos desenvolvem verdadeiros cantos. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira P. edição francesa: 8 NOTA DOS AUTORES Esse livro é a continuação e o fim de Capitalismo e Esquizofrenia, cujo primeiro tomo é O anti-Édipo. Não é composto de capítulos, mas de “platôs”. Tentamos explicar mais adiante o porquê (e também por que os textos são datados). Em uma certa medida, esses platôs podem ser lidos independentemente uns dos outros, exceto a conclusão, que só deveria ser lida no final. Já foram publicados: “Rizoma” (Ed. de Minuit, 1976); “Um só ou vários lobos” (revista Minuit, n°5); “Como produzir um corpo sem órgãos” (Minuit, n° 10). Eles são aqui republi- cados com modificações.

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