655 BRITO, Simone Magalhães. “Metáforas do corpo e emoções no pensamento de Adorno”. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, pp. 655-672, Dezembro de 2012. ISSN 1676-8965 DOSSIÊ http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html MMeettááffoorraass ddoo CCoorrppoo ee EEmmooççõõeess nnoo PPeennssaammeennttoo ddee AAddoorrnnoo Simone Magalhães Brito Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar algumas das ‘metáforas do corpo’ presentes no pensamento adorniano e sua conexão com a construção do pensamento crítico. Partindo do problema da compaixão, busco indicar como Adorno constrói uma ‘materialidade’ específica do corpo que é também o fundamento de seu pensamento moral. Por fim, o artigo busca demonstrar como o pensamento negativo, ainda que não possa ser considerado nem filosofia nem sociologia do corpo, traz caminhos importantes para essas disciplinas e possibilita entender o problema do sofrimento recorrente na História. Palavras-chave: Adorno, Corpo, emoções, sofrimento, materialismo * Um caminho possível para a compreensão do pensamento negativo de Theodor Adorno seria através de uma análise do problema do corpo na história. Desde o corpo que tenta sobreviver fugindo da fera até as pilhas de corpos expostos em Auschwitz, além das tantas formas corpóreas dilaceradas que compõe a cultura contemporânea, a História foi até agora uma história do sofrimento inscrito no corpo humano. Diante do corpo do seu irmão Polinice, Antígona pergunta à Ismênia: “quer que permaneça insepulto, sem homenagens fúnebres, e presas de aves carniceiras?” O problema do corpo é revelado na tragédia de Antígona á medida que um cadáver tem o direito às lágrimas e a um túmulo e que causa repulsa entregá-lo às aves carniceiras. O fato de que esta matéria inerte possua direitos revela a RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, dez. 2012 - Dossiê Corpo e Emoções 656 natureza sui generis do corpo humano, ou a sua materialidade única. O fato de que o pensamento adorniano é uma luta constante com o materialismo vem da percepção de que, num sentido marxista, só é possível um pensamento radical através de bases materialistas de compreensão da vida social, mas, ao mesmo tempo, essa forma do materialismo não dá conta do que Adorno chamou de “a zona da carcaça, do cadáver” ou da “miserável existência física” (Adorno, 2009, p. 303) por exemplo, representado na tragédia de Antígona. Assim, pensar criticamente a História requer pensar esses corpos insepultos à beira do caminho: quem eram, por que não receberam nenhuma compaixão? Como no caso de Polinice, os corpos insepultos da História revelam uma ordem ou lei do mundo que causou a negação da compaixão. Nesses termos, diante do fato de que o flagelo e a tortura não são acidentes históricos, mas o fato recorrente da vida social que garantiu até agora sua própria unidade, o pensamento crítico requer uma reflexão sobre a permanência da dor e sofrimento impostos ao corpo. A reserva adorniana com relação às recorrentes formas de reificação do corpo que o impediram de tratar diretamente do tema, e o próprio avanço do debate acadêmico recente (aqui penso especialmente em Merleau-Ponty, Foucault e Agamben) não permitem considerar Adorno um teórico do corpo. Contudo, sua perspectiva, ainda que dispersa em obras várias, convida a uma importante reflexão sobre o corpo e a produção da vida social, uma espécie de sociologia psicanaliticamente orientada que busca demonstrar como o processo de socialização e normalização da vida social opera através do exercício constante do controle sobre as menores unidades da experiência. Mas, principalmente, qualquer reflexão adorniana sobre o corpo será um projeto de crítica dos dualismos que orientam a organização da vida social e dos quais mente e corpo seria um dos mais fundamentais. Num primeiro momento, o pensamento sobre o corpo é uma negação da própria corporalidade: pensar seria sempre, em última instância, apontar algo além do corpo. Ou seja, pensar sobre o corpo é uma forma de desnaturar o seu próprio fundamento à medida que a experiência animal é a diferença bruta ou aquilo a que o pensamento se opõe. Muitas vezes se criticou a construção de um corpo idealizado, no caso do pensamento negativo isso se torna quase óbvio porque RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, dez. 2012 - Dossiê Corpo e Emoções 657 teorizar sobre o corpo, construir um corpo genérico, significa rejeitar a sua diferença. Qualquer pensar sobre o corpo haverá de empregar uma formulação que rejeita o momento da diferença, um corpo único e seus sentimentos, e busca os instantes do mesmo: a semelhança, a projeção do idêntico no humano. O que é mais central ao pensamento de Adorno é o reconhecimento de uma antinomia insuperável na construção de uma crítica materialista. Se, como resposta à construção de um corpo idealizado, numa tentativa de confrontar a violência do pensamento identitário, a crítica simplesmente se mantém na experiência animal ou diferença bruta, não há nenhum avanço para um pensamento emancipatório. Esse movimento também é precário (e violento como a idealização) porque um corpo apartado de toda transcendência estaria condenado à pura dor e sofrimento. No reino da experiência animal primária não é possível pensar em liberdade. Ou seja, o corpo numa perspectiva materialista pura seria tão-somente determinação e, para dizê-lo em termos muito simples, esse corpo sem nenhuma transcendência, irresponsavelmente procurado por alguns, uma vez que não tem liberdade, pode ser usado de qualquer maneira: pode ser torturado, morto e entregue às aves carniceiras (ou, para usar termos mais contemporâneos: pode ser livremente pesquisado em laboratórios). A pergunta fundamental é: como é possível construir uma forma de pensamento emancipador que conviva com esse dualismo sem que um dos polos se sobreponha ao outro? O caminho traçado por Adorno para lidar com esses problemas começa com o reconhecimento importante de que a dualidade mente e corpo não é fruto de uma falha do pensar passível de correção conceitual, mas o resultado da própria organização social: da divisão do trabalho, especificamente, da cisão entre capital e trabalho. Não é possível no espaço deste artigo discutir todas as implicações desta perspectiva adorniana para uma teoria do corpo, especificamente para a sociologia do corpo e das emoções. Contudo, de forma mais modesta, pretendo apontar como os dilemas do corpo na história foram trabalhados pelo pensamento negativo de Adorno através de algumas ‘metáforas do corpo’. Essas metáforas organizam imagens do corpo, emoções e experiência moral de modo que, e essa é RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, dez. 2012 - Dossiê Corpo e Emoções 658 nossa hipótese, a própria forma escrita revela uma tentativa de confrontar as formas reificadoras do corpo. Desde que uma reflexão sistemática sobre o corpo seria uma contradição para próprio pensamento negativo, argumento que através de ‘metáforas do corpo’ o pensamento adorniano busca lidar com as dificuldades apontadas acima, tematizando o corpo sem idealizá-lo nem condená-lo, como faz a sociedade injusta, à dor perpétua de sua finitude. O mundo dos anfíbios A Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer pode ser lida como uma história da repressão do corpo. A preocupação com o porquê de “a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (Adorno e Horkeimer, 1994, p. 11) revela a intrínseca relação entre e esclarecimento e mito (ou como mito e ciência terminam por operar a mesma forma de violência e manutenção do medo) através de um exame da constituição da subjetividade a partir de bases materialistas. Nessa interpretação, a leitura do mito de Ulisses e as Sereias traz uma importante imagem que permite entender o fundamento da repressão na constituição da subjetividade burguesa. Na descrição dos autores: “Ulisses reconhece a superioridade arcaica da canção deixando-se, tecnicamente esclarecido, amarrar. Ele se inclina à canção do prazer e frustra-a como frusta a morte. O ouvinte amarrado quer ir ter com as Sereias como qualquer outro. Só que ele arranjou um modo de, entregando-se, não ficar entregue a elas. Apesar da violência do seu desejo, que reflete a violência das próprias semideusas, ele não pode reunir-se a elas, por que os companheiros a remar, com os ouvidos tapados de cera, estão surdos não apenas para as semideusas, mas também para o grito desesperado de seu comandante” (Adorno e Horkheimer, 1994, p. 64) O ardil empregado por Ulisses evita a sua perda no delírio maravilhoso das sereias, ao mesmo tempo em que subjuga os seus remadores e desencanta as sereias que, tendo seu encanto quebrado, perdem a razão de existir. A leitura de Adorno e Horkheimer é fascinante por que tece um argumento no qual podemos enxergar a trama da organização social da repressão em sua proto-história. O fato de que Ulisses quis se entregar, desesperadamente gritou, mas não foi ouvido dada a eficácia do seu ardil, revela a internalização da violência RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, dez. 2012 - Dossiê Corpo e Emoções 659 ou a repressão constitutiva do sujeito. O que está sendo lembrado aqui é que, apesar de estarmos habituados a celebrar a vitória e inteligência de Ulisses, na verdade, a sua conquista resultou num enorme sofrimento e frustração. Pela última vez um ser humano esteve diante do mais puro prazer e teve que contentar-se com a sua imobilidade. Ulisses é o proto-burguês por que é o primeiro a conectar auto- repressão e sobrevivência. Nesse sentido, o herói traz a negação ou controle do prazer como fundamento da autonomia. Ao mesmo tempo, de maneira igualmente importante, a nova experiência do desejo e a repressão do corpo realizada por Ulisses transformam os remadores em coadjuvantes da história. A sua vivência é a tal ponto empobrecida que não faria nenhuma diferença se em seu lugar se colocassem animais ou máquinas. Não só lhes é negado o direito de escolher como viver, como sua força e energia são direcionadas para garantir a existência de quem lhes domina. Numa alusão ao mundo dos trabalhadores de hoje, os autores afirmam a regressão na experiência dos trabalhadores: “graças aos modos de trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades e suas conversão em funções transferem-se da ciência para o mundo da experiência dos povos e tende a assemelhá-lo de novo ao mundo dos anfíbios” (idem, p. 47). A manutenção da ordem social requer que o corpo dos trabalhadores seja submetido a uma sistemática regressão de suas capacidades de experiência. E assim, por não poder “ouvir o imediato com os próprios ouvidos, [...] tocar o intocado com as próprias mãos” (idem), os trabalhadores se convertem em “meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela força” (idem). Não é possível deixar de perceber nessa leitura que o processo de racionalização que origina o sujeito burguês capaz e orgulhoso do auto-sacrifício se dá através de três formas de dominação dos corpos: o corpo de Ulisses obrigado a viver o sentimento de frustração que escolheu para si; os corpos dos marujos, reduzidos a uma experiência do mesmo (de ‘anfíbios’), impossibilitados de decidir sobre sua própria existência e transformados em um ‘meio’ para o prazer de seu superior; e, os mais esquecidos, os corpos das sereias: rejeitados pela sua diferença, completamente aniquilados e inferiorizados pela lógica de produção estabelecida para o ‘prazer’ de Ulisses. O fato de que o destino das sereias não é nem sequer mencionado não deve ser entendido como resultado de sua óbvia extinção uma vez que o RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, dez. 2012 - Dossiê Corpo e Emoções 660 encanto foi quebrado. Se pensarmos na lógica de dominação do corpo inaugurada pelo ardil ulissiano, a partir do desaparecimento das sereias na estória percebemos uma metáfora do corpo feminino que não merece nem menção do seu destino tão grave é sua impureza e inferioridade. A forma matreira que Ulisses utiliza para não se perder e as consequências desta para dominação dos outros corpos é representativa da maneira como a violência é internalizada e as emoções são trabalhadas para garantir a produção da existência social. Essa análise expõe a forma como a ruptura entre mente e corpo está fundada numa divisão do trabalho entre trabalho intelectual (a razão ardilosa de Ulisses) e o trabalho braçal (dos marujos) e, principalmente, como essa tensão opressiva se estabelece na própria forma do conhecimento na relação entre sujeito e objeto. É seguindo este insight que os autores argumentam (de forma muito semelhante ao que Lacan vai perceber) que mesmo Sade, que aparenta encontrar um caminho distinto no modo ocidental de pensar o corpo e a afetividade, está em conexão íntima com essa tradição repressiva. Qualquer submissão do prazer a um tratamento racional (ou a formas de interesse instrumental) é, necessariamente, um modo de dominação nos moldes daquele inaugurado por Ulisses e desenvolvido ao máximo esplendor pelos puritanos de toda sorte. É por isso que Adorno e Horkheimer podem identificar Sade a Kant. À medida que o primeiro impõe a mais pura racionalidade ao corpo e a afetividade, o seu procedimento não difere da perspectiva kantiana onde, seguindo a lógica interna da sociedade burguesa, o desejo e a experiência animais são funcionalizados para a reprodução da ordem. O animal racional A Dialética do Esclarecimento apresenta uma genealogia das formas patológicas da moral contemporânea. Nesta genealogia é identificado o processo pelo qual a razão opera uma radical separação entre trabalho e vida intelectual, abrindo caminho para o estranhamento entre a ‘vida animal da espécie’ e o espírito. O fato de que neste artigo escolhemos falar em “metáforas do corpo” está relacionado à maneira como o próprio texto adorniano deve ser lido. Como já foi indicado por Honneth, o que está presente nesta obra não é uma tentativa de ‘recomendar outra interpretação da história RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, dez. 2012 - Dossiê Corpo e Emoções 661 humana’, mas “provocar uma percepção modificada de partes do nosso aparentemente familiar mundo da vida de modo que possamos estar atentos ao seu caráter patológico” (Honneth, 2004, p. 116). Dessa forma, tal leitura do mito de Ulisses ganha um caráter metafórico porque sua intenção é nos fazer “experimentar eventos familiares como coisas estranhamente monstruosas e enxergar suas excessivas demandas” (idem). A perspectiva de Honneth (2000) para leitura da Dialética do Esclarecimento é importante para a compreensão do pensamento adorniano de uma maneira geral. O uso de imagens e de toda sorte de vestígios da cultura não tem a intenção de recriar uma história factual, mas de permitir ao pensamento confrontar a frieza em que se encerra desde que capitulou da obrigação de pensar um mundo inteiramente outro. Um efeito similar de estranhamento ao mencionado por Honneth é necessário quando tentamos enxergar as metáforas do corpo no pensamento de Adorno: colocando uma lente de aumento sobre os diversos pontos onde o autor se expressa através de experiências e emoções corpóreas, é possível ver de forma mais clara o posicionamento do pensamento negativo diante dos problemas da reificação do corpo e, especialmente, o tipo de materialismo em questão. Assim, o problema apresentado por Adorno é que a cultura ocidental se desenvolveu num elogio aos artifícios da razão sem se perguntar ou desejar confrontar os efeitos da dominação e do autocontrole (que é o domínio de si) para a vida social. O fato de que os marujos têm os ouvidos tapados e remam enquanto Ulisses escuta o canto das sereias é visto de forma natural: como a necessidade da divisão do trabalho, num tom de divisão matemática em que cada parte levou o que é verdadeiramente seu. O que a leitura adorniana consegue é estranhar radicalmente o mito aproximando-o de nossa experiência contemporânea. A sensação de desmembramento e dor é apresentada à medida que os marujos são como os trabalhadores nas fábricas e Ulisses se depara com o sofrimento atroz e tão familiar ao sujeito moderno de estar deslocado, não poder se entregar ao seu desejo e ter que fazer renúncias dolorosas. O mesmo caminho metafórico é empregado por Adorno na sua interpretação da constituição da lógica do sistema e, RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, dez. 2012 - Dossiê Corpo e Emoções 662 particularmente, na identificação da violência presente no idealismo. O argumento retoma uma imagem de um momento pré-espiritual, no sentido de uma vida animal da espécie anterior ás formas intelectuais. Mais uma vez, é construída uma imagem do corpo e das emoções que não possui interesse de recontar a história, mas de reencontrar o sentido da experiência que deu origem à sociedade contemporânea. Na Dialética Negativa, Adorno afirma: “predadores são famintos; o salto sobre a presa é difícil e com frequência perigoso. Para que o animal se arrisque a dá-lo, ele necessita certamente de impulsos adicionais. Esses impulsos fundem- se com o desprazer da fome na fúria contra a vítima, fúria essa cuja expressão a aterroriza e paralisa convenientemente. No progresso que leva até a humanidade, isso é racionalizado por meio de projeção. O animal rationale que tem apetite por seu adversário precisa, já detentor feliz de um supereu, encontrar uma razão”. (Adorno, 2009, p.27) Num momento pré-espiritual ou pré-sistema, o animal ‘racional’ precisa lidar ‘de forma racional’ com as poderosas emoções causadas pela fome. O incômodo da fome aliado à incerteza do momento da saciedade torna precária a situação do animal racional e confronta a própria estruturação de seu ego. Por isso, para conviver com essa situação e tornar-se aceitável, a raiva pela dor e carência é direcionada à vítima. Ao odiar a sua vítima, o animal caçador projeta todo seu incômodo num outro, um diferente, esse processo de projeção apazigua seu desconforto. No entanto, o mais fundamental desse argumento vem a seguir: “o ser vivo que se quer devorar precisa ser mau. Esse esquema antropológico sublimou-se até o cerne da teoria do conhecimento” (Adorno, 2009, p. 28). Se o animal racional simplesmente direcionasse seu desconforto para sua presa, haveria a possibilidade, ainda que remota, de sua racionalidade perceber o processo de projeção ou caráter interessado de sua justificativa. Mas, nesse caso o caráter da projeção do desconforto leva a que a presa, se se caracteriza como presa, precise ser má ou merecedora de seu destino. Numa lógica inversa a do sacrifício que se faz ao sagrado, a presa do animal racional deve ser a mais impura e perniciosa. A fome e carência que caracterizam a vida animal da espécie se tornam suportáveis à medida que sua presa (ou a alteridade) é considerada má e sua morte violenta se torna uma necessidade. Seguindo essa lógica, a vida animal dá lugar RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, dez. 2012 - Dossiê Corpo e Emoções 663 a uma forma espiritual (a justificação moral) à medida que transforma a sua presa (ou objeto) em uma ameaça. Nesse artifício podemos ver aquilo que Nietzsche definiu como ressentimento: um mecanismo psíquico ou padrão no qual aqueles que estão em uma má situação (por que os outros, os que estão bem, são poderosos o suficiente para impedir seu bem-estar) conseguem inverter a ordem das coisas de forma a se sentir bem. Nietzsche fala dos escravos, mas não precisamos entender a sua idéia apenas no sentido histórico ou econômico da escravidão: os escravos seriam todos aqueles que sofrem, temem, ou estão numa situação ruim. O ressentimento surge quando seres que estão numa situação precária criam uma estória, ou uma vingança imaginária, que inverte a ordem da experiência e faz com que elas se sintam bem. A raposa de La Fontaine seria um exemplo claro da lógica do ressentimento uma vez que a estória falsa de que as uvas estão verdes lhe traz uma compensação para sua situação precária. Claramente, Adorno segue o impulso e perspectiva nietzscheanos ao apresentar a origem do mundo espiritual no ressentimento do animal racional faminto. Contudo, a imagem do animal adorniano também confronta Nietzsche no momento em que o ressentimento é sentido pelo mais forte. Não é o ser mais fraco que está buscando justificar sua fraqueza e por isso se ressente da força. Ao contrário, é o mais forte da relação que precisa de uma justificativa para sua própria violência. Quando o animal faminto quer superar seu desconforto e matar sua presa, o processo de justificação se dá através de uma inversão que inocenta o assassino e culpa a vítima. Os argumentos de justificação ou o direcionamento da experiência para fins exteriores à situação ‘permitem que o animal possa engolir sua vítima sem nenhum escrúpulo’. A partir dessa genealogia da vida animal, o autor pode afirmar que “no idealismo [...] vige inconscientemente a ideologia de que o não-eu, l’autrui, por fim tudo aquilo que evoca a natureza, é inferior” (Adorno, 2009, p. 28). A vida do espírito, a imagem que sustenta o idealismo, surge no momento em que a natureza se transforma no ‘não-eu’. A construção desse mundo que se opõe à vida animal está baseada no exercício constante de justificar sua própria violência através do ressentimento pelo que se lhe opõe. Essa marca da origem termina por RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, dez. 2012 - Dossiê Corpo e Emoções 664 acompanhar toda lógica do sistema que justifica e sobrevive do horror cometido contra a diferença. No fragmento 68 de seu Minima Moralia, Adorno aponta para a ligação entre o instante que as vítimas são percebidas como diferentes, “mais morenas, mais sujas”, e a chave para o pogrom ou sua exclusão da humanidade: “Decisivo para essa possibilidade é o instante em que o olhar de um animal ferido de morte atinge o homem. O desprezo com que ele se desfaz desse olhar - “afinal é apenas um animal” - repete-se interminavelmente nas perversidades contra seres humanos, nos quais o agressor sempre de novo precisa se certificar do “apenas um animal” por que já no animal não conseguia acreditar inteiramente nisso” (Adorno,2008, p. 100) Aqui mais uma vez estamos diante do problema da compaixão e de nossa pergunta inicial sobre porque alguns corpos não são considerados dignos dela. O animal racional que caça, fere ou tortura outro animal precisa de uma justificativa poderosa para dar continuidade ao seu ato uma vez que a dor não lhe é estranha. Os argumentos do tipo “é apenas um animal” são absurdos até mesmo diante de um animal devido à comunicabilidade da dor, mas o que ocorre é uma aceitação da justificativa simplesmente porque o predador precisa se justificar. O que ocorre nessa relação desequilibrada entre o predador e sua vítima é que, dada a sua força, o primeiro pode construir uma ordem de justificações para normalizar o seu ato. Os massacres são a forma compulsiva da normalização de relações desequilibradas. É interessante, diante de uma perspectiva moral, perceber que nas duas citações acima Adorno se refere ao animal: de um lado o animal racional, o predador, e do outro, o animal ferido ao qual se justifica o sofrimento pela sua própria condição de ser apenas um animal. É importante chamar a atenção para alguns aspectos que são contribuições importantes para uma reflexão sobre o corpo. Primeiro, do ponto de vista material ou da experiência, temos dois animais. Justificar a preponderância de um animal sobre o outro só pode existir através das formas violentas ou ressentidas do predador. Segundo, a possibilidade de matar os outros animais não se realiza naturalmente, mas tão somente através do exercício irracional (que já não se consegue mais acreditar) que independe das ações da vítima. Nesse sentido, o problema dos corpos que não mereceram compaixão não RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, dez. 2012 - Dossiê Corpo e Emoções
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