NELSON: RODRIGUES A MENINA SEM ESTRELA Memórias Organização; RUY CASTRO COMPANHIADASLETRAS Copyright O 1993 by Espólio de Ndison Falcão Rodrigues Copyright de “A estrela de um iluminado” O 1993 by Ruy Castro Capa: João Baptísta da Coste Aguiar Foto da capa: Manchete Preparação: Marcos Luíz Fernandes Índice remissivo: Beatriz Calderari de Miranda Revisão: Liege Marucoi! Carmen S&S. da Cesta Agradecemos a Silvia Regina de Oliveira Franco, da Biblioteca Nacional, pela colaboração na pesquisa de material incluído neste livro Dados Internacionais de Catalogaçãor1a Publicação (ctF) (Câmara Brasileira do Livro,sP, Brasil) Rodrigues, Neison, 1912-1980. Ameninasemestrela:memórias/NelsonRodtigues. — São Paulo ;: Companhia das Bstras, 1993. 16BN 85-7164-354-7 1, Crônicas brasileiras 1. Título. 93.3132 CcDD-B69.935 Índices para catálogo sistemático; 1. Crônicas : Século 20 : Literatura brasileira 869.935 2. Século 20 : Crônicas : Literatura brasileira 869.935 1993 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORASCHWARCZLTDA, Rua Tupi, 525 01233-000 — São Paulo — se Telefone: (011) 821822 Fax: (011) 8265323 A ESTRELA DE UM ILUMINADO Em janeiro de 1967, Nelson Rodrigues estava a caminho dos 55 anos e não se sentia mais jovem acada dia. Seu romance O casamento, recém-lançado, forá proibido pelo ministro da Justiçado governo Castello Branco, CarlosMedeiros Silva.Àacu- sação eraadé “torpeza dascenas desceritás”, “linguagem inde- corosa” e “atentar contra a organização da família”. Os exem- plares foram varridos das livrarias pela Polícia Federal; Alguns intelectuaisprotestaram eaproveitarampara atacar osinistroCar- losMedeiros. Mas, num editorial de primeira página, o próprio jornal de Nelson, O Globo — onde ele escrevia a coluna diária “À sombradas chuteiras imortais” —, defendeu .o ministro .e a proibição. Nelson ficou ressentido com.o jornal e quis sair.Mas dei- xar O Globo significava também deixar a Tv. Globo, em cujos programas fazia aparições diárias e semanais. E eracom o di- nheiro da televisão que ele pagava o aluguel € o dispendio- so tratamento médico de Daniela (a “meniná sem estrela”), a filha que tivera com Lúcia, sua nova mulher. Daniela nas- cerade um parto dramático e era cega. Foi então queo jor- nalista Francisco Pedródo Coutto, seu amigo, sondóu-o:por que ele nãolevava “À sombra das chuteiras imortais”* para o Gotreio da Manhã? | Coutto era editoriálista do Correio. Nelson gostou da idéia, mas como resolver o probléma da TV? O convite ofi- cial eàfórmula conciliatória partiram de Newtort Rodrigues (semparentesco comNelson), redator-chefe do Correio: não precisaria deixar a TV.e, se quisesse, poderia até continuar com: “As chuteirás” em O Globo. O que o Correio daMa- nhã queria dele.eram as “Memórias de Nelson Rodrigues”, 7 Nelson topou e, graças a esse sortilégio de fatores, escre- veu, de 18 de fevereiro a 31 de maio daquele ano, a sua mais extraordinária coleção de crônicas: sussinfância na rua Alegre, sua iniciação sexual, a morte do irmãe« Roberto, o empastela- mento da Crítica, a tuberculose em Gunpos do Jordão, a es- tréia de Vestido de noiva. Uma “memória” por dia, todos os dias — coma interrupção de uma semema, mal asérie começa- ra: quando uma chuva forte no Rio privocou o desabamento do edifício em Laranjeiras onde motvava seu irmão Paulo, matando-o eàsua família, Se os leitores: do Correio daManhã já acompanhavam arrebatados as “mernórias” de Nelson, a in- tervenção brutal da realidade emprestou ainda mais paixão e compaixão ao que ele vinha escrevemio. Pelo acordo com o jornal, Nelson viria contar suas remi- niscências, mas, querendo, poderia também misturá-las com o presente e — mais importante — com liberdade absoluta. E ele usou essa liberdade... Na primeira crônica, atacou finamente o ministro daJustiça que Ihe proibira O yasamento e que fora o relator da Constituição outorgada em 167 (queNelson chamou de “anova Prostituição:do Brasil”). Em .outra crônica, não pou- pou o poeta Carlos Drummond de Anilrade, também cronista do Correio da Manhã, por sua “aridez»de três desertos” ao co- mentar o desabamento de Laranjeiras. E, por fim — para Nel- son, uma doce vingança —, fez uma lcnga e comovida apolo- giadeseu pai, o jornalista Mário Rodrigues, nas páginas do pró- prio jornal queo declarara o seu prindipal inimigo na distante década de 20 e que nunca o perdoar: Em fins de maio, Nelson e o Corrato daManhã se desen- tenderam por questões financeiras. Emguanto não chegavam a um acordo, a série foi interrompida, ras o jornal, com planos de aventurar-se no mercado editorial, iniciou suas edições com apublicação emlivro das Memórias defNelsonRodrigues. Opri- meiro volume, subtitulado “A menina sem estrela”, continha as primeiras 39 “memórias” efoilançadonumaedição de,presume- se, 2 mil exemplares. As41 “memórias” restantes ficariam para um segundo volume — que não chegou asair, porque não hou- ve acordo entre Nelsoneo Correioda Manhã. Ojornal, por sua vez, perseguido pelos militares, entraria nacrise financeira que levaria ao seu desaparecimento poucce anos depois. 8 À edição original das Memórias tornou-se uma raridade bi: bliográfica, Seus poucos exemplares foram avaramente guarda- dos pelos que os compraram e nunca apareceram nos sebos. De todos os livros de Nelson, é o mais precioso item de cole-. cionador. Alguns dos principais estudiosos de Nelson, como os críticos Sábato Magaldi eJosé Lino Grúnewald (além deste or- ganizador), consideram-no talvez a maior coisa que Nelson es- creveu. E o capítulo 10, em que Nelson conta o drama de Dá- niela, foi classificado por Otto Lara Resende como “uma das mais belas páginas da língua portuguesa”. Mas, neste livro, há muitos outros capítulos tão belos quanto. Pela primeira vez, as oitenta “memórias” que Nelson pu- blicou no Correio da Manhã saem completas e numa única edi- ção, na ordem em que foram publicadas no jornal. Logo, não se trata de uma ressurreição — a vida de A me- nina sem estrela só agora começa. R.C. Nasci a 23 de agosto de 1912, no Recife, Pernambuco. Ve- jam vocês: eu nascia naruaDr.João Ramos (Capunga) e, ao mes- mo tempo, Mata-Hari ateava paixões e suicídios.nas esquinase botecos de Paris. Era a espiã de um seio só e nãosabia que ia ser fuzilada, Que fazia ela, e que fazia o tmarechal Joffre, então apenas general, enquanto eu nascia? A belle époque játraziano ventre a primeira batalha do Marne. Mas por que “espiã-de um seio só”? Não ponho minha mão no fogo por uma mutilação que talvez seja uma doce, uma compassiva fantasia; Seja como for, o seio solitário é, a um só tempo, absurdamente triste e al- tamente promocional, Mas a belle époque não é a defunta que, de momento, me interessa. Tenho mortos evivos mais urgentes. Por outro lado, minhas lembrançasnãoterão nenhuma ordem cronológica. Hoje posso falar do kaiser, amanhã do Otto Lará Resende, depois de amanhã do czar, domingo do.Roberto Campos. E por. que não, do Schmidt? Comonão falarde Augusto Frederico Schmidt? Seu nome ainda tem aatualidade, a tensão, amagiada presença físi- ca. Todavia, deixemos o Schmidt para depois. O queeuquero dizer é que estas são memórias do passado, dopresente, do fu- turo e de várias alucinações. Imaginem vocês que tive ontem, na esquina de São José com Avenida; uma experiência, e grave. Antes de prosseguir, porém, devo explicar que,para mim, nada é intranscendente. Pode ser um fato. de infinita, exemplar modéstia. Digamos que a nossa galinha pule a cerca do vizinho. Pode haver uma:peri- pécia de mais delicada humildade? Não. E, todavia, esse inci- dente, «em que pese 2a suaaparente irrelevância, tem um toque 11 de Graça e de Mistério, Se bem me lembro, é de Bernanos um romance que termina assim: — “Tud» é Graça”. O quefoi dito acima tem a intenção» devalorizar e dramati- zar a tal experiência de ontem. Vamoao fato: todos os dias, almoço com minha mãe, nas Laranjeires. Somos muitos e, por isso, anossa mesa é numerosa ecálida xomo ada Ceia. É curio- so! Depois de velho, dei para chamar iinha mãe de “madre”, “madre mia”. E aqui confesso: — vou lá buscar a sua compai- xão. Ela tem pena de mim, sempre tevw2, Fosse eu um Walther Moreira Salles e minha mãe teria pena deme ver, boiando num lago de milhões como umavitória-régia. e Pois bem, venho do almoço saltcedo táxina esquina refe- rida. Por toda a cidade, um calor de rachar catedrais. Fecha o sinaleparo emcimadomeio-fio. De repente, ouço aquelavoz. Era um camelô, como há milhares e, eu quase dizia, como há milhões. Viro-mee fico olhando osujeito. O camelô tem deser um extrovertido ululante. E aquele estava, ali, virando a alma pelo avesso. Passa todo mundo de car: amarrada. O brasileiro é um furioso nato. O que se vê, na rua, são indignados de am- bos os sexos. Pois, enquanto os outros passavam exalando umaira mis- teriosa, o camelô só faltava virar cambalhotas de alegria total. Não tem um dente, ou, melhor dizendo, tem uma antologia de focos dentários. O pior vem agora. O sujeito está berrando: — À nova Prostituição do Brasil! A nova Prostituição do Brasil! E erguia um folheto, só faltava esfregar o folheto na cara da pátria. Todavia, nãome espanto, ninguém se espanta, As pes- Soas passam e nem olham. Há qualquer:coisa de vacum no ler- do escoamento da multidão. O camelô continua empunhando Oo folheto como um estandarte dionisígco: — A nova Prostituição do Brasil! A nova Prostituição do Brasil! - Esse sinalnão abre? Abriu. Lávouex, de roldão. MasaAve- hida,daPraçaMauáao obelisco, estáressoante do berro imortal: — ÀA nova Prostituição do Brasil!A nova Prostituição do Brasil! Um turista que por ali passasse havia de anotar no seu ca- derninho: “O Brasil acaba de promulgar a sua nova Prostitui- 12 ção”: Para mim, era uma experiência inédita: —pela primeira vez, viauma prostituição promovida como sabonete, coca-cola ou grapete, Jána outra calçáda, estaco. O que:eu reclamava de mim mesmo era todo o espanto que não sentia. Sim, eu devia estar. espantado, -todos deviam estar espantados. De outra cal- çada, ainda vejo o camelô. com sua euforia absurda, E o povo passando. Que nem todos parassem, válá. Mas alguém, alguém devia parar. Um funcionário, um soldado, um marinheiro ou um velhinho de camisa fina eimaculada. Mas todos seguiamseu caminho, inclusive uma mulata de Gauguin. Portanto, eu e os Outros que passavaméramos também irreais, tão irreais como o camelô, : Quando o sinal abrepara os pedestres, decido: — “Vou vol- tar”, E volto. O que me põe doente é a falta de espanto. Preci- someespantar comamaior urgência. Já atravessei o cruzamento € estou, de novo, na esquina do camelô, junto ao próprio. Pos- so apalpá-lo, posso farejá-lo. Talvez compre o folheto da nova Prostituição do Brasil. Depois de cuspir para trás, por cima do próprio ombro, o homem recomeça: — ÀA nova Constituição do Brasil! À nova Constituição do Brasil! . Só então percebo.o monstruoso engano auditivo. Onde é que meus ouvidos estavam com acabeça? Ah, uma incorreção acústica pode levar o sujeito a sair por aí derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas. Por outro lado, também o camelô perdera a sua euforia brutal. Eraagoraum vago pobre-diabo, igual aos outros pobres- diabos que florescem em todas as esquinas da pátria. Sua depressão era bem irmã da minha, da nossa. Estava mais des- dentado do que nunca. E, então, larguei tudo e vim-me embora. Pouco depois, entro numa leiteria (o certo é “leitaria”, mas prefiro o errado). Trato minha úlcera a pires de leite como se ela fosse uma gata de luxo. ] Tomando meu leite, faço as minhas reflexões de leiteria. Sem querer,epor causa de um engano acústico, eu descobrira o seguinte, dois pontos: — o que nos falta é o que chamaria de “espanto político”. Aqui, as coisas espantosas deixaram de espantar. Se um camelô brotasse de uma alucinação, invadisse a vida real e berrasse a “nova Prostituição do- Brasil” — nín- guém cairia ferido de assombro. 13 Vejamos outra hipótese. Se baixassemum decreto mandan- do a gente andar de quatro —qualsertaanossareação? Nenhu- ma. Exatamente: — nenhuma. E ningném se lembraria de per- guntar, simplesmente perguntar: — “Prque andar de quatro?”. Muitopelo contrário. Cada um de nàis trataria de espichar as orelhas, de alongaracaudae fertar osapato. No primeiro desfi- le cívico, o brasileiro estaria trotandotna Presidente Vargas, so- lidamente montado por um Dragão &E Pedro Américo. E seria lindo toda uma nação a modular sentidos relinchos e a escou- cear em todas as direções. Mas como ia dizendo: — nasci em 1912, E, porummomeén- to, me inclino sobre a belle époque, tão defunta como suas plu- mas e lantejoulas fenecidas e seus nestálgicos espartilhos. 14 Toda a minha primeira infância tem gosto de caju edepi- tanga. Caju de praia e pitanga brava. Hoje, tenho 54 anos bem sofridos e bem suados (confesso minha idade com. ur. cordial descaro, porque, ao contrário doTristão deAtháyde, não odeio avelhice). Mas como-ia dizendo: — ainda hoje, quando. provo umapitanga ou um caju contemporâneo, sou faptado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos re: gressivos e fatais. E volto a 1913, ao mesmo Recife e ao mesmo Pernambu- co. Mas não era mais Capunga e sim Olinda: Alguém me levou à praia e não sei se mordi primeiro umapitanga ou primeiro um caju. Sóseique a pitánga ardida ou o caju-amaárgoso me deu a minha primeira relação com o universo. Ali, eu começavaa existir, Aindanão viraum rosto, um olho, uma flor. Nada sabia dos outros, nem de mim mesmo. E, súbito, ascoisas nasciam, e.eu descobria uma pitangueira ou um cajueiro. Queidade teria eu? Eis o queme pergunto: — que idade teria.eu? Um ano, um ano e pouco, seilá. Ou menos,talvêzme- nos. Minha família morava diante do mar. Mas o mar antes de ser paisagem e som, antesde ser concha, antes de set éspuma — o mar foi cheiro.Háainda um cavalo nia minha infância pró- funda. Mas também'o cavalofoi cheiro. Antes deser-umafigura plástica, elástica, com espuma:nas ventas —ocavalo foi aroma como o mar. . de 1913.:O. que a memória consciente presêrvou Olinda foiummínimo devida e dégente. Eu me lembro-de pouquíssi- maspessoas. Por exemplo: — vejo umaimagêm feminina. Mas é mais um chapéu do que uma mulher. Em 1913; mesmo meu 15