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Mar Sem Fim PDF

211 Pages·2.609 MB·Portuguese
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MAR SEM FIM Amyr Klink O©® BR Sobre a obra: “No porto de antes, apreensivo, eu tentava imaginar as dificuldades e lutas futuras. No de agora, dono do tempo que eu conquistara, simplesmente admirava o que estava ao redor e desfrutava do que estava feito. Não era a sensação de uma batalha ganha, de uma luta em que os obstáculos foram vencidos. Muito mais do que isso, era o prazer interior de ter feito e visto o que fiz e vi. O profundo prazer de poder resumir minha maior viagem num simples círculo sobre papel... Não fossem os dedos, passaria uma eternidade ali feito uma lavadeira de rio, ouvindo os sons da ilha, admirando a imagem do barco vermelho e branco que eu trouxera de volta. Ou melhor, que me trouxera de volta.” Amyr Klink Sobre a Digitalização desta Obra: Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-livro ou mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade é a marca da distribuição, portanto: Distribua este livro livremente! Brasil, março de 2004 “Para Deruchette” “Para Laura, Tâmara e Marininha...” A.K. E ao imenso e passível oceano Ensinam estas Quintas, que aqui vês, Que o mar com fim será grego ou romano: O mar sem fim é português. Em Mensagem, “Padrão”, 13.09.1918 Fernando Pessoa 1 POEIRA VARRIDA As gêmeas seguiam compenetradas escavando a praia. Dois chapeuzinhos em movimento à beira d'água, baldes, fôrmas, pazinhas coloridas, quatro bracinhos trabalhando horas a fio, furiosamente construindo e desmanchando castelos de areia em Jurumirim. Em pouco tempo eu partiria. Algumas horas mais e meses de separação, de uma espécie que eu nunca havia experimentado. A bordo — de onde avistava as meninas —, problemas ainda. Eu já deveria estar longe, mas no último teste das velas, na viagem de Santos a Paraty, decidimos substituir os parafusos originais das talas da vela maior e usar passantes com porcas em lugar de prisioneiras sem porcas. Detalhe mínimo, irritante. Por que não confiar no projeto inglês e no seu bendito fabricante e deixar as coisas como estavam? Que diferença iriam fazer tão mínimas pecinhas, prisioneiras ou passantes, em tão longa viagem? Eu não tinha a menor idéia, mas nas cem primeiras milhas de suaves testes duas talas haviam escapado e eu não gostei. Com 18 mil boas e sacudidas milhas a percorrer ainda e cinco meses sem tocar país nenhum, era melhor não confiar em fabricantes e colocar porcas em todos os parafusos. Mais uma viagem no botinho laranja até alcançar um carro, na cidade. Mais uma subida a São Paulo atrás de pecinhas tão simples, mas que não podia encontrar em Paraty. Mais itens na lista de tarefas até a partida. Paciência. Mais paciência. Dessa vez foi o Luís quem partiu em busca das pecinhas. O Hermann me ajudava com a vela reserva. Um peso enorme, que decidimos rebocar até a praia para preparar a troca à sombra dos velhos coqueiros. As duas pequenas criaturas apenas observavam o movimento contínuo dos estranhos e longos pacotes de velas passando a seu lado e sumindo entre as árvores. E continuavam escavando. As duas mais queridas criaturas deste planeta. A Marina organizou o almoço — mamadeiras — no banco de madeira, debaixo da grande mangueira, quase tocando a água clara da maré cheia. Mar liso e transparente, calor e nenhum vento. Eu sabia que aquela aparente calmaria logo ia acabar. E o nervosismo no ar também. Não tem nada de festa, uma partida. Despedidas menos ainda, mas de certo modo eu já havia partido. Sentia o chão instável, distante, saudade dos que ainda estavam presentes. E uma vontade estranha, urgente, de encontrar logo a primeira ventania, os albatrozes circumpolares, os primeiros gelos errantes. De enfim fazer meu barco correr livre entre as ondas gigantes da Convergência Antártica. Passamos a última noite na casinha de Jurumirim. Os lampiões foram apagados bem cedo, e na manhã seguinte, após uma breve escala para as últimas explorações no convés do Paratii, as gêmeas e a Marina embarcaram na baleeira Sol de Verão rumo à cidade. Melhor assim, sem despedidas nem palavras. Um abraço apertado em cada uma, um aceno nervoso e o desejo silencioso de encontrá-las — quem sabe — perto do equinócio de outono, quando as gêmeas fariam seu segundo aniversário. Deixando o Brasil em outubro, com seis meses de provisões, teria um verão inteiro no mar, em latitudes onde o sol mal se esconde. E se trabalhasse direito as velas e a rota e não fizesse muitas besteiras, talvez fosse possível estar de volta ainda em março do ano seguinte, para beijar, no dia 25, os cabelinhos loiros e morenos das duas. A baleeira dobrou a entrada de Jurumirim, e por alguns segundos o tempo parou. A bordo, correria outra vez. Um pouco à proa, na direção da praia, um outro veleiro, também vermelho, estava ancorado. Muito semelhante ao Paratii — obra do mesmo projetista, o Cabinho —, porém menor, quase minúsculo, o Caso Sério era a residência permanente do amigo Sérgio, comandante da Varig que discretamente testemunhava a movimentação do irmão maior — igualmente vermelho — prestes a partir. Acabou requisitado para os últimos acertos. O Sérgio me passou, de empréstimo, um livro do Bernard Moitessier e uma bruxinha, que prendi firmemente com uma fita na coluna do salão. E, de presente, me deu uma latinha embrulhada para só abrir no Natal, oito semanas à frente. Sábado de manhã, chovendo. Levantei as velas, finalmente em ordem, e soltei o cabo da poita de Jurumirim. 'Te cuida, Amyr!", disse o Hermann depois de um abraço desajeitado, e saltou no bote laranja com o Álvaro, o Sérgio e os portugueses João e Paulo. Únicas testemunhas da partida, os cinco me acompanharam a distância, em meio à chuva que não parava, até alcançarmos a boca da baía. E engraçado, mas gosto da chuva em Paraty. Faz o mar ficar mais verde e as matas das montanhas ao redor mais vivas. Baía dentro de uma baía, Jurumirim logo desapareceu. Depois sumiram as igrejas e as palmeiras-imperiais da cidade, ao fundo da baía maior. A distância, o Hermann fez uma curva com o braço levantado e os cinco ficaram para trás. Acenei. Estava fora da baía. Ao enxugar o rosto molhado de chuva na manga do casaco vermelho ainda sem gosto de sal, deixei escapar um grito entalado há um bom tempo. Impronunciável. De alegria, de alívio. Eu deveria estar nervoso. Partia para minha primeira volta ao mundo. Tinha escolhido uma rota difícil, a mais difícil, e sabia que era grande a probabilidade de não completar a viagem. Eu poderia ser obrigado a desistir — por quebra, cansaço, ou por erros, como tantos desistiram antes. Sabia muito bem que nos cinco meses seguintes estaria cutucando os mares mais agitados, temperamentais e gelados que existem, sem poder contar com o auxílio de ninguém. Não tocaria país nenhum no decorrer de toda a viagem e, em vez de apenas atravessar o cinturão de ondas gigantes que contorna a Antártica, estaria continuamente vivendo nele, negociando dia e noite com ventos fortes, mar cruzado, trânsito de gelos, neblina e nevascas. Muito além dos roaring forties, dos furious fifties, às vezes dentro das "latitudes silenciosas", onde os ventos que gritam e uivam simplesmente se calam. "Além do inferno", como diziam os navegadores do passado. É claro que essas denominações folclóricas para as faixas de altas latitudes, mesmo que folclóricas, incomodam. E os registros de catástrofes climáticas, frio, ondas anormais também, por sua freqüência. Mas o fato é que, apesar da força desses fenômenos austrais, há muito exagero. Inúmeros relatos que se tornaram dramáticos mais por falta de bom senso e planejamento do que por culpa do gelo, das ondas ou do vento. Histórias de heroísmo inútil e falsa aventura, casos de bravura oca de quem não soube praticar o respeito cobrado pelas regiões polares. Eu carregava um bom número desses relatos nas prateleiras do Paratii. Mas carregava também outros tantos escritos de coragem e ousadia verdadeiras, praticadas por homens que souberam negociar as dificuldades e o medo, que tiveram competência para abrir caminhos pioneiros, descobrir lugares inéditos e depois voltar para casa. Eu deveria mesmo estar bem nervoso, depois de tantos meses de hipóteses e preparativos, ao dar início a uma viagem muito maior e mais difícil do que todas as outras que já havia feito. Mas não. No momento em que as últimas sombras da ponta da Joatinga desapareceram na chuva, e os dois — antes eram três — coqueiros do seu istmo ficaram ao norte, senti-me tranqüilo e seguro. Dali em diante, pela primeira vez, todos os problemas e possíveis acontecimentos estariam enfim reunidos num só endereço: a bordo do Paratii. Terminada a faxina e guardados os cabos e defensas, prendi no depósito da proa, junto com um par de remos de Paraty, a minha vassoura de cabo pintado. Era sábado, 31 de outubro, Dia das Bruxas. Nem me dei conta. Descendo para o sul, me afastando a todo pano da infinita segurança de Jurumirim, com bruxas ou sem elas, acabava de varrer da minha viagem a pior espécie de poeira que uma vassoura pode afastar: a de nunca começar.

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