MANTENHA FORA DO ALCANCE DO BEBÊ SILVIA GOMEZ 1 2 MANTENHA FORA DO ALCANCE DO BEBÊ SILVIA GOMEZ 3 APRESENTAÇÃO 4 NÃO HÁ NÍVEIS SEGUROS PARA O CONSUMO DESTAS PALAVRAS por Roberto Alvim Conheci a dramaturga Silvia Gomez em 2006 quando ela ainda fazia parte do seleto Círculo de Dramaturgia do CPT – Centro de Pesquisa Teatral sob a coordenação de Antunes Filho. A atriz Juliana Galdino (que nesse período trabalhava com o Antunes) me mostrou o primeiro texto de Silvia: O CÉU CINCO MINUTOS ANTES DA TEMPESTADE. “Preste atenção nessa menina”, me alertou Juliana; “Existe um talento genuíno – e perturbador – aqui...”. Li a peça e recordo de ter me sentido instantaneamente feliz pois é raro nos depararmos com dramaturgias que se inscrevem no campo da arte; pois é raro nos vermos imersos em uma escrita pulsiva, vertiginosa, desestabilizadora; pois é raro testemunharmos a eclosão de uma singularidade (e o que é a História da Arte senão a trajetória errática de eclosão imprevisível de singularidades?). O texto foi encenado logo depois e teve uma imensa reverberação de público e crítica além de indicações para diversos prêmios permanecendo por muitos meses em cartaz e excursionando pelo país. Algo foi percebido por todos os que dialogaram com aquela obra: uma nova/outra voz havia surgido na dramaturgia contemporânea brasileira; uma voz que instaurava um planeta estético desconhecido, insuspeitado – e absolutamente vigoroso. Em uma das cartas escritas por Vincent Van Gogh para seu irmão Theo o artista faz uma declaração luminosa: “Theo, eu estou começando a pensar como pintor...”. O que Van Gogh queria dizer é que, até então (e ele já havia pintado uma série de obras até aquele momento), ele pensava em termos literários: 5 suas obras eram narrativas. Finalmente percebera que era imprescindível conquistar uma instância de pensamento autônomo em pintura, isto é: que era preciso inventar/descobrir sua Pictórica. A declaração de Van Gogh se relaciona com uma característica que me chamou a atenção desde a leitura da primeira obra de Silvia: ela pensa como dramaturga. Não nos diz nada (haja vista que a arte não é a seara dos discursos diretos) mas nos proporciona experiências estéticas de infinitos e polissêmicos desdobramentos através de suas arquiteturas linguísticas. Escrita rigorosa, elaborada não apenas para significar (instância comunicacional) mas também para instaurar diferentes musicalidades e ritmos que nos atravessam sensivelmente com potência transfiguradora (instância poética). (Silvia Gomez escreve com os ouvidos, pois sabe que o teatro não é sobre as palavras, mas sobre a FALA humana.) ESCRITURA que se desenvolve não por escaletas baseadas em estratégias formais reconhecíveis mas sim por acoplamentos pulsivos do desejo na criação surpreendente de signos, articulações e fluxos de imaginário (não pensa – neuroticamente – no que ela, a autora, “fará com a obra”, mas sim no que “a obra fará com ela”); ESCRITURA que se entrelaça em múltiplos vetores não como representação simbólica de sentidos estabelecidos mas como USINA de sensações inomináveis (isto é: não-catalogadas pela cartografia da cultura-de-massa) nos permitindo vivências indizíveis e estranhamente constitutivas sobre as quais torna-se impossível discorrer depois. O presente livro contém a publicação do mais recente texto da autora: MANTENHA FORA DO ALCANCE DO BEBÊ. A peça principia com uma conversação de tom aparentemente prosaico o que entra em contraste com a terrível distopia que vai se desenhando inexoravelmente: estamos em um lugar no qual nossos piores medos (que são também nossos desejos mais inconfessáveis) 6 se formalizam com assustadora naturalidade: um bebê é adotado/adquirido/comprado segundo especificações determinadas pela mãe/cliente que exige, inclusive, que a criança já venha com formação completa – eximindo-a da trabalhosa tarefa de educar uma criança em um mundo tão complexo quanto o nosso. A maternidade é problematizada cruelmente (no sentido Artaudiano) à medida que se apresenta não como desejo, mas como norma. Mesmo as emoções humanas mais nobres são encaradas como valores-agregados ao produto-bebê e é então que, repentinamente, nos percebemos afogados em um medonho comercial bancário de previdência privada... Tudo e todos: produtos na prateleira do hegemônico supermercado universal – nosso Vacuum Plaza. (Seria tão fácil julgar a mãe/cliente como “louca” e então defenestrá-la; mas a autora nos nega esse escapismo à medida que desenha nesta personagem um dos mais pungentes retratos do homem de nosso tempo já configurados pelo teatro neste século XXI.) Trata-se, este texto, de uma pergunta urgente acerca de uma PÓS- HUMANIDADE que já se insinua em nosso modus vivendi contemporâneo: afinal, é nisso que estamos nos transformando? Podemos chamar de “progresso” a esta lógica-de-relações, a este estado-de-coisas? É possível encarar esse destino com naturalidade? E se a resposta for “não”, então porque a peça nos soa tão familiar, tão desagradavelmente próxima? A genialidade de Silvia Gomez é a de nos conduzir por estes descaminhos (que vão se desestruturando progressivamente e presentificando uma zona de instabilidade assustadora desde a entrada do personagem masculino até o inquietante desfecho catastrófico) não com um tom acusatório, mas sim com a compreensão profunda oriunda da compaixão que sente por suas personagens. 7 MANTENHA FORA DO ALCANCE DO BEBÊ seria uma obra de dilacerante tristeza se não fosse um clamor terno e apaixonado pela transfiguração radical de toda e qualquer anodinia, conformismo e normatização; seria uma obra de um pessimismo sem saída se não fosse um convite para que habitemos a existência de modo liberto do circuito castrador que a cena nos desvela. Por fim, há que se louvar a coragem de problematizar de forma tão aguda todas as balizas que norteiam o senso-comum; pois esta peça – não se enganem! – é sobre cada um de nós. (Há um lobo no palco caminhando de um lado para o outro durante toda a ação. Pensem sobre ele porque aquele lobo está também aqui agora.) (Roberto Alvim é dramaturgo, professor de Artes Cênicas e diretor da companhia Club Noir, sediada em São Paulo) 8 MANTENHA FORA DO ALCANCE DO BEBÊ 9 10
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