MARILENA CHAUI Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro 2ª edição ESCRITOS DE MARILENA CHAUI Volume 2 ORGANIZADOR André Rocha Apresentação André Rocha1 Ninguém duvida de que o trabalho de crítica dos preconceitos e das ideologias é algo necessário para quem quer que viva desejando a emancipação humana e defenda a liberdade nas democracias. Contudo, alguém poderia perguntar: qual a atualidade de um trabalho de crítica das manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro? Afinal, não vivemos numa democracia, a ditadura já não acabou e, com ela, o autoritarismo brasileiro? Ou será que o autoritarismo brasileiro se infiltrou na democracia e ainda nos assedia com manifestações mais sofisticadas? Afinal, o que é o autoritarismo brasileiro? Os leitores e as leitoras encontrarão nestes ensaios de Marilena Chaui motivações para investigar as origens do autoritarismo brasileiro e criticar as suas manifestações atuais. Este volume reúne ensaios publicados em livros, revistas e jornais nas décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000. A reunião dos textos publicados em tempos e meios diversos num só volume permite a leitoras e leitores refletir, tendo como pano de fundo o contexto das décadas aludidas, sobre a formação e o sentido de uma monumental obra de combate ao autoritarismo brasileiro. Os leitores e leitoras podem, além disso, inspirar-se nesta reunião para levar o esforço adiante e elaborar novas formas de afirmar a liberdade e combater o autoritarismo no presente e no futuro. “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira”, publicado em 1978, foi o primeiro grande ensaio de crítica da ideologia. A crítica da Ação Integralista Brasileira permitiu que Marilena Chaui desvendasse como se formou, na década de 1930, momento de posição do capital produtivo na economia brasileira, a ideologia dos integralistas que buscavam, no Brasil, instaurar um Estado totalitário que se alinhasse com o Estado da Itália sob Mussolini e o Estado da Alemanha sob Hitler. A ideologia integralista foi dirigida às novas classes médias urbanas e procurou aliciar, sobretudo, os funcionários públicos para que contivessem os levantes operários e anarquistas iniciados na década de 1920. Durante a década de 1980, sob o impacto das imposições neoliberais, Marilena Chaui expande a crítica do imaginário das classes médias urbanas que apoiaram os regimes autoritários nas décadas de 1930 e 1970. Com efeito, ela inicia a elaboração da crítica da ideologia da competência, que se consolida, a partir da década de 1990, como crítica da ideologia dos tecnocratas que aparelhavam o Estado e, exercendo funções na administração pública, sob o comando do grande capital financeiro, punham em marcha o “choque de gestão” que conduziria à chamada “modernização do Estado”. O volume reúne três textos escritos durante a década de 1980. Em “O homem cordial, um mito destruído à força”, publicado da Folha de S.Paulo em 1980, Marilena Chaui mostra como a violência contra os movimentos sociais que, a partir das greves de 1978 e 1979, se manifestavam contra a ditadura e passavam a exigir seus direitos explicava-se tanto pelo terror de Estado implantado na ditadura como pela estrutura social da sociedade brasileira. O terrorismo de Estado e a transformação da política em polícia, apoiados pela grande mídia e por grande parcela das classes médias urbanas ainda absortas no apoio ao regime militar, apenas manifestavam a reprodução da estrutura autoritária da sociedade brasileira e destruíam à força o mito do brasileiro como homem cordial. “Cultura Popular e autoritarismo” é um grande ensaio inédito, apresentado numa conferência em Washington em 1987. Nele, Marilena Chaui investiga o processo de “redemocratização” a partir de uma análise crítica do período ditatorial e procura desvendar as formas de resistência popular que, surgidas ainda no interior da ditadura, podem explicar a gênese das reivindicações pela democracia a partir da luta de classes, isto é, no interior da estrutura da sociedade brasileira. Desse período também publicamos “Crítica e ideologia”, o ensaio mais teórico do volume, que trata da gênese e do modo de operação da ideologia nas sociedades industriais e, também, do contradiscurso como forma de combate à ideologia. Este volume reúne dois textos de intervenção política publicados na Folha de S.Paulo na década de 1990 durante o governo Collor: “Arcaísmos do Brasil Novo” e “O arcaico desejo de ser moderno”. Nesses artigos, Chaui denuncia não apenas a imposição das diretrizes econômicas do neoliberalismo no Brasil, no plano Brasil Novo, mas também a maneira pela qual as elites dirigentes provindas da ditadura, a partir do governo Collor, iniciaram um processo de “modernização” da política brasileira. A vida privada do governante passa a figurar um espaço público imaginário que, apresentado pelas grandes empresas de comunicação, oferece-se à identificação dos cidadãos. Vale a pena conferir nos artigos como Chaui analisa nos detalhes a construção da figura do político, na pessoa de Collor, que apareceu triunfante nas televisões durante as eleições de 1989 e no início de seu governo. A imprensa brasileira procurou consagrar o corpo do governante, de uma maneira que lembra a sagração medieval dos dois corpos do rei, colocando as realizações privadas do político no centro do noticiário: no caso de Collor, como sabemos, uma determinação moral de lutar contra a corrupção, combater os marajás e criar um Brasil Novo. Dessa maneira, as convicções morais e a vida privada do político passam a operar como um corpo místico que simboliza a nação verde e amarela e pede a adesão mais recôndita da família brasileira. Ora, sob essa apresentação do espaço público pela vida privada e pelas convicções morais do governante, sob essa identificação da nação com a pessoa do governante, amoldava-se novamente o imaginário das classes médias urbanas pela grande mídia no início do período democrático e infiltrava-se triunfante o neoliberalismo sob a bandeira do político que por suas convicções morais acabaria com a corrupção. Por fim, no ensaio “Brasil: mito fundador e sociedade autoritária”, publicado em 2000, Marilena Chaui amplia sua crítica das formas de pensamento autoritário no Brasil e passa das formas que ele assumiu nos debates contemporâneos à sua gênese histórica no período colonial para demonstrar os vínculos entre ideologia autoritária e a posição dos intelectuais colonizados na reprodução da estrutura social autoritária. Com a teoria do “mito fundador”, Chaui nos convida a pensar a gênese da cultura autoritária a partir da instalação dos administradores coloniais, passando pela Monarquia e pela República Velha, transformando-se para se acomodar às novas classes urbanas que surgiam com a instalação das fábricas e da produção capitalista no Brasil, vingando na ditadura militar e assumindo, enfim, uma forma peculiar sob a pena dos tecnocratas do neoliberalismo. As manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro são desvendadas a partir de sua gênese na própria estrutura autoritária da sociedade brasileira. Isso significa que as ideologias enfrentadas nos ensaios de Marilena Chaui não podem ser compreendidas se forem destacadas da percepção da própria estrutura social de que são manifestações e, reciprocamente, que a estrutura social ela mesma se manifesta nas suas ideologias. Na melhor tradição de crítica das ideologias, estes ensaios de Marilena Chaui convidam leitores e leitoras a refletir sobre sua própria situação histórica para perceber a gênese da ideologia a partir da estrutura social, libertar-se das mistificações que nos são impostas, reelaborar as relações sociais e levar adiante o trabalho de negação teórica e prática do autoritarismo que emperra a criação de novos direitos e o fortalecimento da democracia no Brasil. 1 André Menezes Rocha é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realiza seu pós-doutorado. Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira2 Ao leitor benevolente Para quem se aproxima pela primeira vez da história do Brasil nas décadas de 1920 a 1930, a tarefa interpretativa parece sobre-humana. Tudo ali é obscuro; as questões são incompreensíveis, os caminhos trilhados pelas classes sociais sugerem veredas sinuosas, difíceis de serem palmilhadas tantos anos depois, quando o espesso matagal da história posterior recobriu os vestígios do passado. Essas desvantagens do principiante têm, contudo, uma pequena vantagem: precisando recorrer às interpretações existentes e confiar nelas, torna-se sensível às dificuldades enfrentadas pelos autores que lê. Para abordar a questão do Integralismo, dediquei-me ao estudo dos trabalhos acerca do período de 1920 a 1938. Lendo e confrontando a multiplicidade das interpretações, percebi que se todas diferem, seja pela escolha das determinações que teriam decidido o curso dos acontecimentos, seja pela maneira específica de combiná-las, todavia, o arcabouço conceitual empregado é quase sempre o mesmo e dotado dos seguintes traços gerais: 1) Ausência de uma burguesia nacional plenamente constituída tal que alguma fração da classe dominante pudesse oferecer-se como portadora de um projeto universalizante que legitimasse sua hegemonia sociopolítica. Não que tais frações de classe tivessem deixado de ter seus próprios interesses e de reconhecê-los como seus por meio de práticas específicas, mas sim que nenhuma delas tinha condições para pôr-se como universal ou como classe dirigente. 2) Ausência de uma classe operária madura, autônoma e organizada, preparada para propor e opor um projeto político que desbaratasse o das classes dominantes fragmentadas. Não que a classe estivesse passiva, mas sim que suas formas de luta eram inoperantes para pô-la explicitamente na cena política na qualidade de um ator principal. 3) Presença de uma classe média urbana de difícil definição histórico- sociológica, mas caracterizada por uma ideologia e por uma prática heterônomas e ambíguas, tanto oscilando entre uma posição de classe atrelada às frações da classe dominante (como é o caso dos ideólogos autoritários tais como Alberto Torres ou Oliveira Vianna, dos Tenentes ou do Integralismo) quanto se radicalizando à maneira pequeno-burguesa, atrelando-se à classe operária para emperrá-la e frear sua prática revolucionária (como é o caso do Partido Comunista e da Aliança Nacional Libertadora, a ALN). 4) As duas primeiras ausências, no que tange às classes fundamentais, e o radicalismo inoperante, no que respeita à classe média urbana, engendram um vazio de poder que será preenchido pelo Estado, com apoio de certos setores das Forças Armadas. O Estado surge, pois, como único sujeito político e como único agente histórico real, antecipando-se às classes sociais para constituí-las como classes do sistema capitalista (explicitando, portanto, a contradição capital-trabalho). O Estado cumpre essa tarefa transformando as classes sociais regionalizadas em classes nacionais, exigindo que todas as questões econômicas, sociais e políticas sejam encaradas como questões da nação. Nascido do vazio político, o Estado é o sujeito histórico do Brasil. 5) No tocante à classe operária, mesmo quando admitida como ameaça à dominação burguesa, a ação da III Internacional e do prestismo, de um lado, a importação do anarquismo e do anarcossindicalismo, de outro, conjugados com a origem imigrante e camponesa dos proletários, desviam a classe de sua tarefa histórica e culminam no populismo. Do lado de cima, o vazio, e do lado de baixo, o desvio, explicam-se na medida em que o capitalismo no Brasil é atrasado, tardio ou desigual e combinado em face do capitalismo internacional, de sorte que a consequência não se faz esperar: o Estado, fonte de modernização, terá que promover o desenvolvimento capitalista, télos da história mundial. 6) No que concerne à formação das ideologias, o quadro anterior revela que nenhuma das classes pode produzir uma ideologia propriamente dita, isto é, um sistema de representações e de normas particular e dotado de aparente universalidade, nem de impô-la à sociedade como um todo, de sorte que tanto o liberalismo quanto o autoritarismo nacionalista assim como os projetos revolucionários são incapazes de exprimir, seja na forma do falso, seja na forma do verdadeiro, a realidade brasileira. Assim sendo, torna-se inevitável que o ideário autoritário e o ideário revolucionário sejam importados e adaptados às condições locais, resultando disso que, no Brasil, as ideias estejam fora do lugar. O que preocupa nesse quadro da história brasileira de 1920 a 1938, malgrado a ênfase diferenciada que os intérpretes dão aos aspectos mencionados, ora privilegiando a luta entre oligarquia agroexportadora e burguesia industrial, ora demonstrando que as duas frações possuem objetivos comuns e se opõem à ameaça operária ou à tendência das classes médias para uma participação política visando substituir a classe dominante, em qualquer das interpretações há dois pontos problemáticos. O primeiro deles (e isso, por vezes, malgrado os próprios autores) é o pressuposto implícito de que é porque o capitalismo tem que se desenvolver, mas porque no Brasil isso se faz com atraso ou tardiamente, o Estado é obrigado a assumir a forma e os compromissos que assume. O segundo é o de que (e isso também malgrado os próprios intérpretes) o Estado assume o papel de sujeito histórico porque a luta de classes não chega a exprimir-se de maneira suficientemente nítida no interior da sociedade civil. O quadro acima é preocupante ao deixar entrever que, guardadas todas as diferenças e matizes, guardadas todas as ressalvas para aqueles intérpretes que têm em mente uma crítica da política brasileira à luz da luta de classes, contudo, no plano descritivo e interpretativo, a visão do Estado e da sociedade presentes nos textos tende a assemelhar-se àquela que encontramos no discurso integralista. A diferença (e que é essencial, digamo-lo com ênfase), entre este último e os intérpretes do período consiste no seguinte aspecto: enquanto para os integralistas o autoritarismo deve ser a solução para os problemas do “Brasil real”, para os intérpretes liberais e marxistas o autoritarismo teve que ser a solução encontrada pela classe dominante, impossibilitada de exercer por conta própria a hegemonia. No entanto, malgrado a diferença profunda entre o dever ser e o ter que ser, a história do Brasil daquele período parece resultar da combinação conflituosa das querelas entre as frações da classe dominante, sempre incapaz de hegemonia, do despreparo e imaturidade da classe operária, sempre manipulada, do radicalismo inoperante das classes médias, sempre rebocadas, e do peso do capitalismo internacional avançado sobre o atraso periférico. Entre a proposta autoritária do Integralismo e o realismo crítico dos intérpretes não autoritários há em comum o que poderíamos designar como uma figuração hegeliana do Estado, encarado como síntese ou resumo dos conflitos da sociedade civil e de sua superação ou como seu télos necessário3. A impressão deixada pelo arcabouço conceitual empregado é a de que, apesar do hegelianismo implícito, os intérpretes não trabalham dialeticamente, ou seja, com a categoria da negação interna ou determinada (a contradição4), mas com a da privação (a ausência), de maneira que o período histórico em pauta é largamente explicado por aquilo que lhe falta e não por aquilo que o engendra ou o põe na existência. Trabalhando com a privação, com o “dever ser” ou o “ter que ser”, os textos assumem, malgrado seus autores, um certo tom normativo que conviria explicitar. Para tanto, é preciso passar, primeiro, pela questão do conhecimento de uma singularidade.
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