LUKÁCS E A CRÍTICA ONTOLÓGICA AO DIREITO Conselho Editorial da área de Serviço Social Ademir Alves da Silva Dilséa Adeodata Bonetti Elaine Rossetti Behring Maria Lúcia Carvalho da Silva Maria Lúcia Silva Barroco Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro , SP, Brasil) Sartori, Vitor Bartoletti Lukács e a crítica ontológica ao direito [livro eletrônico] / Vitor Bartoletti Sartori. -- 1. ed. -- São Paulo : Cortez, 2013. 388 Kb ; e-PUB. ISBN 978-85-249-2084-4 1. Direito - Filosofia 2. Lukács, György, 1885-1971 I. Título. 13-09328 CDD-340.12 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia do direito 340.12 Vitor Bartoletti Sartori LUKÁCS E A CRÍTICA ONTOLÓGICA AO DIREITO LUKÁCS E A CRÍTICA ONTOLÓGICA AO DIREITO Vitor Bartoletti Sartori Capa: aeroestúdio Preparação de originais: Jaci Dantas Revisão: Maria de Lourdes de Almeida Composição: Linea Editora Ltda. Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales Conversão para eBook: Freitas Bastos Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do autor e do editor. © 2010 by Vitor Bartoletti Sartori Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Monte Alegre, 1074 – Perdizes 05014-001 – São Paulo - SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 E-mail: [email protected] www.cortezeditora.com.br Publicado no Brasil – setembro de 2013 As categorias são formas de ser, determinações de existência. KARL MARX O Direito nada mais é que o reconhecimento oficial do fato. KARL MARX Quanto mais o Direito se torna regulador normal e prosaico da vida cotidiana, tanto mais vai, em geral, desaparecendo o páthos que o havia envolto no período de sua formação, e tanto mais força adquirem nele os elementos manipulatórios do positivismo. GEORG LUKÁCS O funcionamento do Direito positivo se apoia, portanto, sobre o seguinte método: manipular um turbilhão de contradições de modo tal que dele surja um sistema, não só unitário, mas também capaz de regular praticamente, tendendo ao ótimo, o contraditório acontecer social, de sempre se mover com elasticidade entre polos antinômicos (por exemplo, violência pura e vontade persuadida que se aproxima da moral), a fim de sempre produzir — no curso de contínuas alterações do equilíbrio no interior de um domínio de classe em lenta ou rápida transformação — as decisões e os estímulos às práticas sociais mais favoráveis àquela sociedade. GEORG LUKÁCS Sumário Introdução – A evidência e o Direito — Abertura para uma crítica ontológica Parte I – A ontologia lukacsiana e a crítica ontológica dos pressupostos do fenômeno jurídico A abstração e os aspectos ontológicos fundamentais: rumo à ontologia do ser social de Lukács A ontologia do ser social — A protoforma da práxis social, o trabalho A ontologia do ser social: rumo à reprodução A ontologia do ser social — A reprodução: a divisão social do trabalho e o complexo de complexos Os diferentes complexos e a mediação entre o indivíduo singular e a totalidade da sociedade Parte II – A especificidade do fenômeno jurídico Legalismo ou direito natural? Ser ou dever-ser? Normalidade, generalidade e classes sociais Direito como regulador prosaico e esfera de manipulação Reflexo jurídico e práxis alienada O duplo caráter do preceito jurídico Conclusão Referências bibliográficas Textos complementares Sobre o Autor Sobre a Obra Introdução A evidência e o Direito — Abertura para uma crítica ontológica Tradicionalmente, o Direito aparece na doutrina como um fenômeno “evidentemente” ligado à regulação da sociedade. Desta maneira, constituiria ele o conjunto de normas jurídicas de acordo com as quais a sociedade se organizaria com a finalidade de manter a ordem e o convívio social. Neste sentido, a “sociedade” constituiria uma esfera a ser controlada, não prescindindo de regras de convívio essenciais à vida comunitária: pode-se mesmo dizer que do Direito decorreria toda a sociedade digna de tal nome, desta maneira; com base neste raciocínio, sequer haveria relações efetivamente sociais sem o Direito. A prioridade das normas de conduta seria “evidente”, sendo o Direito o portador da própria possibilidade do convívio social. Veja-se os renomados processualistas brasileiros: No atual estágio de conhecimentos científicos sobre o Direito, é predominante o entendimento de que não há sociedade sem Direito: Ubi societas ibi jus. [...] Indaga-se desde logo, portanto, qual a causa dessa correlação entre sociedade e Direito. E a resposta está na função que o Direito exerce na sociedade: a função ordenadora, isto é, de coordenação dos interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar a coordenação entre pessoas e compor conflitos que se verificam entre seus membros. (Cintra, Dinamarco e Grinover, 2005, p. 21) A doutrina jurídica,1 portanto, coloca o primado do Direito de maneira que sequer poder-se-ia falar em sociedade sem Direito (ora mais, ora menos, entendido como um conjunto de normas jurídicas). O suposto objeto do Direito, isto é, as relações sociais, deveriam — de acordo com este entendimento — submeter-se às regras de conduta sob a pena de ter ameaçada sua própria subsistência; novamente, do Direito depende a sociedade, o que já retira a historicidade do fenômeno jurídico. A dogmática mesma, pois, parte de determinações passíveis de questionamento, as quais se põem (e, do ponto de vista adotado nesse escrito, impõem) como “evidentes”: são repetidas e citadas diuturna e cotidianamente, deixando pouca margem, seja à historicidade do fenômeno jurídico, seja às determinações inerentes à própria forma de estruturação e fundamentação deste. É importante, assim, ressaltar que questões essenciais como àquela relativa à existência ou não do fenômeno jurídico em distintas sociedades e épocas são deixadas, mesmo que involuntariamente, de lado. No entanto, como se pretende demonstrar, trata-se de questões cuja importância não é desprezível; ocorre antes o oposto. Neste sentido, a abordagem dada pelos estudiosos do Direito tende a variar. Tércio Sampaio Ferraz, renomado estudioso do Direito da Universidade de São Paulo, aponta dois modos básicos de investigação do Direito: Um, ao partir de uma solução já dada e pressuposta, está preocupado com um problema de ação, de como agir. Outro, ao partir de uma interrogação, está preocupado com um problema especulativo, de questionamento global e progressivamente infinito das premissas. (Ferraz Jr., 2003, p. 40) A primeira abordagem, que o estudioso caracteriza como “dogmática”, privilegiaria a ação, partindo de uma premissa já pressuposta; enquanto a segunda, caracterizada como abordagem “zetética”, partiria da especulação, buscando as premissas do pensamento jurídico por meio de um questionamento infinito. Surge, assim, de um lado, a prática conectada umbilicalmente com a sociabilidade existente; de outro, a teoria, a qual tenta se livrar dos impulsos pragmáticos inerentes à ação e às decisões limitadas por uma situação dada. Nesse sentido, a teoria jurídica aparece de maneira que esses “polos” surgem não só separados, como também contrapostos. Neste raciocínio, pois, a ação e a teoria se contrapõem à medida que a verdade e a necessidade prática não demonstrariam convergência — o que, como se pretende demonstrar, está relacionado intimamente com a forma de sociabilidade capitalista. Continuando: no limite — no que trata da orientação “dogmática” do Direito — “seus compromissos com a orientação da ação impedem-na de deixar as soluções em suspenso” (Ferraz Jr., 2003, p. 43). O Direito vem, quer se queira, quer não, a ser visto como um instrumento e, como tal, é passível de manipulação — isto, como será explanado à frente, pode levar à hipertrofia do Direito justamente por meio de seu esvaziamento: o Direito passa a ser considerado um fenômeno inerente a todas as sociedades ao mesmo tempo em que é entendido como um mero conjunto de normas. Ao se tentar captar o geral, perde-se a especificidade; ao tentar captar a especificidade, o geral é manipulado. E, nessa esteira, a impossibilidade de “deixar as soluções em suspenso” pode mesmo vir a gerar “soluções” impostas por situações não questionadas, tomadas, assim, como premissa, como se “evidentes” fossem. A isso, pretende-se provar, está ligado o fenômeno da alienação decorrente das mediações que se interpõem na sociedade civil-burguesa. É necessário, porém, uma ressalva acerca da dicotomia traçada anteriormente pelo famoso teórico do Direito: a oposição entre a abordagem voltada para a ação e aquela voltada apara a especulação não seria absoluta, pois o próprio objeto da zetética coloca pontos de partida, sendo, de certa maneira, dogmático. Como consequência, nem mesmo a abordagem mais especulativa do Direito prescinde de algum aspecto que o fundamente: “uma investigação científica de natureza zetética [...] constrói-se com base em constatações certas, cuja evidência, em determinada época, indica-nos, em alto grau, que são verdadeiras” (Ferraz Jr., 2003, p. 42). Esse diagnóstico abre espaço para um questionamento importante. Se a zetética parte de evidências enquanto a dogmática parte de premissas ainda problematizáveis, ou seja, de dogmas, como poderia esta contraposição ser tão decisiva? Como poderia, concomitantemente, a interpretação do fenômeno jurídico ser dada com precisão se as diferentes abordagens tomam por base justamente a “evidência”? Quem define esta “evidência”? Será ela histórica e social, ou não? É verdade que se trata de diferentes enfoques dados pelo estudioso do Direito; no entanto, fica claro que a maneira pela qual o fenômeno jurídico é tratado por ambas as abordagens parte, na melhor das hipóteses, de algo “evidente”, “certo”. O enfoque na ação, pela própria maneira como o autor a coloca (em contraposição à especulação) estaria insuficientemente fundamentado; no entanto, aquilo que poderia dar base à ação encontra-se no campo da “evidência”. Tércio Sampaio Ferraz afirma que o fenômeno jurídico pode ser analisado por ambas as perspectivas — a dogmática e a zetética — dependendo de seu objeto e de seu tipo de investigação requisitada; matérias como a “Filosofia do Direito” estariam primordialmente enquadradas em uma perspectiva zetética enquanto disciplinas como Direito civil em uma perspectiva dogmática. Assim, conclui o autor: “é preciso reconhecer que o fenômeno jurídico, com toda a sua complexidade, admite tanto o enfoque zetético quanto o enfoque dogmático em sua investigação” (Ferraz Jr., 2003, p. 43). A dicotomia talvez seja fluida, porém, a “evidência” parece dar suporte a ambas as análises. Esse, pretende-se demonstrar, deve ser considerado um enfoque a ser questionado; a alternativa que é delineada à frente passa pela perspectiva ontológica, sendo a explanação de tal visão e sua relação com o fenômeno jurídico (e as implicações dessa relação) o principal objeto do presente escrito. Assim, cabem algumas considerações iniciais acerca da questão. A abordagem corrente do Direito e a elaborada análise de Tércio Sampaio Ferraz ainda deixam alguns pontos de partida como pressupostos mais ou menos “evidentes”. Entretanto, o fenômeno jurídico, por si próprio, demanda caracterizações mais aprofundadas de sua configuração concreta e real.