INÉS LACERDA ARAÚJO LINGUAGEM E REALIDADE: DO SIGNO AO DISCURSO Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Paraná, como requisito à obtenção do título de Doutor em Letras, área de Estudos Lingüísticos. Orientador: Prof. Dr. José Borges Neto CURITIBA 2001 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LÈTRAS E ARTES wm COORDENAÇÃO DO CURSO DE PÓS GRADUAÇÃO EM LETRAS P A R E C ER Defesa de tese da doutoranda INÊS LACERDA ARAÚJO, para obtenção do título de Doutora em Letras. Os abaixo assinados José Borges Neto, Carlos Alberto Faraco, Kanavillil Rajagopálan, Bortolo Valle e Jorge de Albuquerque Vieira argüíram, nesta data, a candidata, a qual apresentou a tese: "LINGUAGEM E REALIDADE: DO SIGNO AO DISCURSO." Procedida a argüição segundo o protocolo aprovado pelo Colegiado do Curso, a Banca é de parecer que a candidata está apta ao título de Doutora em Letras, tendo merecido os conceitos abaixo: Prof.3 Marilene Weinhardt Vice-Coordenadora "O mundo não fala, apenas nós falamos. Desde que fomos programados com uma linguagem, o mundo pode levar-nos a aderir a crenças. Mas não poderia fornecer uma linguagem para que nós falássemos. Apenas outros seres humanos podem faze-lo". (Richard Rorty: Contingence, Irony, Solidarity, 1989). ii SUMÁRIO RESUMO. V ABSTRACT. vi INTRODUÇÃO. 1 I - SIGNO E REFERÊNCIA 9 1.A PROBLEMÁTICA DA LINGUAGEM 9 1.1. Breve Escorço Histórico 9 2. SIGNO E REFERÊNCIA 17 2.1.0 Signo Lingüístico 17 2.2.0 Problema da Referência para Saussure 20 3.CONCEITO E OBJETO 25 4. OS LIMITES DA SEMÂNTICA........ 28 5. A CONTRIBUIÇÃO DE PEIRCE 33 5.1 O esquema triangular de Peirce 33 5.2. As três categorias do signo 34 II - AS SENTENÇAS: SIGNIFICAÇÃO, VERDADE E REFERÊNCIA 42 1. SIGNIFICAR E NOMEAR 42 2. REFERIR DIFERE DE SIGNIFICAR: FREGE 47 3. A SOLUÇÃO DE RUSSELL AO PROBLEMA DA DENOTAÇÃO 53 4. O PARALELISMO ENTRE LINGUAGEM E REALIDADE PARA WITTGENSTEIN NO TRACTATUS LOGICO PHILOSOPHICUS 56 5. A REFERÊNCIA DIRETA NA ABORDAGEM NEOFREGEANA 63 6. KRIPKE E A RIGIDEZ REFERENCIAL 70 7. CONSEQÜÊNCIAS DO SEMANTICISMO 78 III. A REVOLUÇÃO WITTGENSTEINIANA: OS ATOS DE FALA 85 1. O WITTGENSTEIN DE INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS 85 1.1.0 Paradigma Pós-metafísico 86 1.2 Fim do Primado da Lógica e da Metafísica 87 1.3. Os Jogos de Linguagem 91 1.4.0 Problema da Referência 97 1.5. Critica à Linguagem Privada 103 2. A CRÍTICA DE STRAWSON À TEORIA DAS DESCRIÇÕES DE RUSSELL..... 105 3. AUSTIN E AILOCUCIONALIDADE 109 3.1. Constativos e Performativos 110 3.2. Os Atos de Discurso 111 3.3. As Afirmações 113 4. A REFERÊNCIA COMO ATO DE FALA PARA SEARLE 118 IV- A CONTROVÉRSIA EXTERNALISMO XINTERNALISMO 121 1. DEWEY: O SIGNIFICADO COMO FUNÇÃO DO COMPORTAMENTO COOPERATIVO 122 2. AINESCRUTABILIDADE DA REFERÊNCIA PARA QUINE 126 2.1. O Problema Ontológico 127 2.2. A Relatividade Ontológica 131 iii 3. DAVIDSON E A INTERPRETAÇÃO RADICAL 137 4. PUTNAM E A QUESTÃO DA FIXAÇÃO DA REFERÊNCIA 146 5. INTERNALISMO E REFERÊNCIA PARA CHOMSKY 154 6. POR QUE UMA TEORIA DA REFERÊNCIA É DISPENSÁVEL, SEGUNDO O PRAGMATISMO 163 V- REFERÊNCIA E DISCURSO : O PAPEL DA PRAGMÁTICA 167 1. UMA MUDANÇA DE ENFOQUE 167 2. DA REFERÊNCIA AO PROCESSO DE REFERENCIAÇÃO 170 3. A NOÇÃO DE DISCURSO EM FOUCAULT 178 3.1. Por que Análise do Discurso? 178 3.2. Enunciado e Discurso 181 3.3. Formação Discursiva 182 3.4. A Função Sujeito 185 3.5. O Referencial e o Domínio Associado 186 3.6. A Materialidade Discursiva 190 3.7. O Conceito de Discurso 191 3.8. O Poder do Discurso 193 3.9. Avaliando Conseqüências da Análise Foucaultiana do Discurso 197 4. A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA DE HABERMAS: A VIRADA LINGÜÍSTICA E A VIRADA PRAGMÁTICA 203 4.1 Da Semântica à Pragmática 204 4.2 Ação Comunicativa e Ação Estratégica 206 4.3 A Teoria da Ação Comunicativa como Implicando uma Teoria Sociológica 213 CONCLUSÕES 217 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 229 iv RESUMO Esta tese aborda a relação entre linguagem e realidade, percorrendo os níveis do signo lingüístico, da proposição, do ato de fala, e, finalmente, do discurso. Pressupomos que a questão da referência torna-se crucial a partir de fins do século XIX, e hoje, com a pragmática, dissolve-se como questão primordial, o que traz conseqüências proveitosas para a lingüística e para a filosofia da linguagem. Analisamos a contribuição do estruturalismo de veio saussureano, a noção de interpretante de Peirce, a relação da proposição com a realidade em Frege, Russell e no primeiro Wittgenstein. O ponto de virada é a noção de jogo de linguagem de Wittgenstein IL A análise passa a acentuar o papel do locutor situado, do uso lingüístico, de modo que a proposição, como fica claro com Austin, passa de central e apenas um entre os atos de fala com valor ilocucionário. Também o pragmatismo contemporâneo, de Quine a Davidson, mostra a inescrutababilidade da referência. Na contraposição entre as posições externalista e internalista (Chomky), mostramos que a primeira dá melhor conta da relação linguagem/realidade. No último capítulo, ressaltamos a importância da análise do discurso, através de dois de seus principais representantes, Foucault e Habermas. Em que pesem suas diferenças, ambos conduzem a discussão para o terreno político, para o poder do discurso. A linguagem é contingente, mas, ao mesmo tempo, é pelo discurso que o dizer assume uma força, enquanto poder (Foucault) e enquanto ação comunicativa (Habermas). v ABSTRACT This thesis is a study about the relation between language and reality, searching through the levels of the linguistic sign, the proposition, the speech act and, finally, the dicourse. We presuppose that the question of reference became a crucial one since the end of the 19th century. Nowadays, with the pragmatics, it has been dissolved as a prime question, what brings rich consequences for both Linguistics and Philosophy of Language. We analyse first the contribution of the saussurean structuralist position on sign, the notion of interpret of Peirce, the relation between proposition and reality in the conception of Frege, Rüssel and Wittgenstein I. The turning point is the notion of linguistic game, as it is developed by Wittgenstein H. Since then, the analysis of reference foccusis the attention on the role of the speaker in situation, on the use of language. In this way, the proposition, as Austin clearly shows, is no more central, instead, it is just one among the various speech acts, wich provides language of illocionaiy strenght. The contemporaneous pragmatism, in a parallel way, from Quine to Davidson, makes evident the inscrutability of reference. Contrasting externalism and internalism (Chomsky), we believe that the first position gives a better account of the relation between language and reality. In the last chapter, we enphasize the importance of discourse analysis, through two of its main thinkers, Foucault and Habermas. Even considering its differences, both conduct the discussion to the political field, to the power of the discourse. Language in contingent, although, at the same time, it is due to the discourse, that saying assumes a strength, as power (Foucault ) and as communicative action (Habermas). vi INTRODUÇÃO É provável que se estranhe a presença de tantos autores, tão díspares em suas idéias, num só trabalho. A intenção é mostrar as diversas perspectivas pelas quais o tema espinhoso da referência, da relação entre linguagem e realidade, palavras e coisas, é abordado. Diferentes perspectivas e soluções são analisadas para evidenciar nosso argumento central, o de que o problema da referência, tomada em sentido amplo e não apenas como um processo que se serve de expressões lingüísticas para nomear, designar ou realizar a chamada "referência direta", passa de nuclear a periférico. E isso ocorre no curto período que abordamos, fins do século XIX até nossos dias. Mostraremos que essa trajetória se deve a uma mudança de paradigma: no paradigma lingüístico a referência é nuclear, com a virada pragmática, já no pensamento pós-metafísico, no paradigma da intersubjetividade lingüística, passa a ser um dos aspectos da linguagem, um entre os inúmeros atos de fala, com efeitos e produção em termos de discurso. A partir desse tema, inspirado nele, procuraremos mostrar como o próprio fenômeno da linguagem pode ser caracterizado em suas dimensões de signo (significação, simbolização e semiotização), de proposição enquanto forma de descrever e/ou representar estados de coisa (relação entre significado, referência e valor de verdade), de ato de fala que demanda um certo tipo de comportamento e um uso em situação (linguagem como forma de comportamento e valor ilocucionário dos atos de fala), de discurso, entendido como efetivação do dizer e do dito (lugar de constituição do sujeito e das formas lingüísticas com valor e força social, política, bm como do entendimento mútuo). Dados os objetivos acima apontados, ressaltaremos a discussão do lugar que cabe ao problema da referência na lingüística e na filosofia da linguagem contemporâneas, através da análise de algumas das mais importantes abordagens acerca da relação linguagem/realidade, procurando evidenciar as transformações e variações que essa questão assume, conforme se trate do enfoque lingüístico, lógico- proposicional, ilocucional (ato de fala) e discursivo, ou, em outras palavras, percorreremos as dimensões da estrutura lingüístico-gramatical, lógico-semântica e pragmático-discursiva. "Como se relacionam as palavras com o mundo?" Com esta questão Searle inicia sua obra Speech Acts. Trata-se do velho problema da referência que desde Platão até Davidson, tem perturbado filósofos, lingüistas, teóricos da comunicação. Há uma relação entre palavras e coisas significadas, nomeadas, designadas - isto é certo. Porém, os seguintes problemas surgem: a)qual é a natureza do "laço" que as une, como se relacionam; b)o que se entende por palavras, signos, frases, enunciados, discursos capazes de operar essa relação; c) qual é a categoria ou natureza da "realidade" referida (externa-objetiva, interna-impressiva, construída ou selecionada por formas a priori, evento, bloco rígido de coisas em si, categorias. O que não esgota a lista de candidatos a "realidade"). Posto dessa forma, o problema adquire dimensões descomunais, que extrapolam uma análise com mínimo de rigor teórico. É preciso fazer recortes, escolher enfoques, delimitar uma trajetória, lançar mão de pressupostos. O recorte escolhido (e esta escolha não é arbitrária) é a chamada virada lingüística {linguistic tum), momento em que o pensamento ocidental volta-se para o problema da linguagem, com transformações rápidas e importantes ocorrendo na lingüística e na filosofia da linguagem. A partir de fins do século XVIII ocorre um corte epistemológico e a linguagem passa a ser um dos focos centrais do pensamento ocidental. Já não é mais simples instrumento para o pensamento representar as coisas, e sim estrutura articulada, independente de um sujeito ou de toma vontade individual e subjetiva, não mais submetida à função exclusiva da nomeação ou designação, quer dizer o signo não se limita a estabelecer uma relação direta com a coisa nomeada. Temos assim, no lugar de uma análise das representações, a análise da linguagem, cujas expressões gramaticais são públicas. Grandes nomes e novas escolas surgem nesse panorama renovado, em que o enfoque filosófico modifica-se radicalmente, não mais centrado nas indagações sobre o conhecimento e a razão, seus limites e propriedades, e sim na linguagem. Portanto, trata-se de um itinerário recente, que vai desde finais do século XIX, até as contribuições mais atuais das vertentes pragmático-discursivas, que caracterizam a virada pragmática. Esse é o recorte. A trajetória escolhida remete à relação entre significação e referência, e o pressuposto é o de que essa relação recebe enfoques distintos conforme se atenha ao signo, à frase, à proposição ou ao discurso. A virada lingüística, pressentida por Hegel, configura um novo panorama para a filosofia da linguagem e para a lingüística. Nascem nesse ambiente renovado, a lógica, a 2 crítica literária, a filologia, as análises do discurso, a lingüística do signo de Saussure, o estruturalismo cujo precursor, foi o próprio Saussure, a semiótica de Peirce. E também a lógica matemática com Frege, Russell, o Wittgenstein do Tractatus logico-philosophicus que contribui primeiramente com a teoria da figuração, dando todo "poder" à proposição, e depois de uma impressionante revisão teórica, passa à análise da linguagem ordinária. Neste panorama ocorrem algumas das mais importantes mudanças de concepção da linguagem e seu papel: o estruturalismo mostra que sem linguagem não há cultura, nem pensamento, nem personalidade; a semântica expande seus domínios dos campos semânticos às situações de fala que requerem contexto e intenção; a análise do discurso distende a linguagem para o domínio social e institucional, todo discurso remete a outro discurso (rede discursiva), e cria relações de saber e poder (Foucault) . A lista não acaba aqui, mas ela é significativa o suficiente para sustentar nossa hipótese central, a de que a referência acaba por se dissolver como problema para a filosofia da linguagem, ao relativizar-se através do uso lingüístico. A questão da referência recebe soluções e enfoques diversos: o lingüístico- estrutural de Saussure (1857-1913); o semiótico de Peirce (1839-1914); o lógico- representacionista de Frege (1848-1925); a proposta empírico-logicista de Russell (1872-1970) e de Wittgenstein (1889-1951). Neste mesmo modelo, temos ainda Kripke ( 1940- ) com um retorno controvertido a um tipo de essencialismo. Sob o novo enfoque da filosofia da linguagem do Wittgenstein de Investigações filosóficas, surgem as contribuições de Austin (1911-1960), Searle (1932- ) e Strawson, 1919- ). Pelo enfoque pragmatista de Dewey (1859-1952), o behaviorismo epistemológico de Quine, (1908-2000), Rorty, (1931- ) e Davidson (1917- ), mostra-se a inescrutabilidade da referência. Enriquece essa discussão, a disputa externalismo X internalismo de Chomsky (1928- ) e Putnam (1926- ). Finalmente, no âmbito do discurso, temos a teoria do agir comunicativo de Habermas (1929- ) e a análise do discurso de Foucault (1929-1984). Essas contribuições são valiosas para todo estudo do pensamento contemporâneo acerca da linguagem, seja sob a perspectiva da lingüística, seja da filosofia. Destacaremos principalmente os aspectos que subsidiam a hipótese acima, a qual pretende mostrar que o percurso do signo ao discurso, passando pela proposição e pelo ato de fala, não é apenas seqüencial, mas obedece a uma lógica interna, com enfoques cada vez mais elucidativos e complexos. Interessa-nos essa lógica, que se distende a 3
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