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Linguagem e diálogo ; ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin PDF

82 Pages·2009·7.167 MB·Portuguese
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1. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa, Marcos Bagno, 7' ed. 2. Linguagem & comunicação social-visões da linguística moderna, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, 2' ed. 3. Por uma linguística crítica, Kanavillil Rajagopalan, 3' ed. 4. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula, Stella Maris Bortoni-Ricardo, 5' ed. 5. Sistema, mudança e linguagem-um percurso pela história da linguística moderna, Dante Lucchesi 6. "O português são dois"-novas fronteiras, velhos problemas, Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2' ed. 7. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro, Rosa Virgínia Mattos e Silva, 2' ed. 8. A linguística que nos faz falhar-Investigação crítica Kanavillil Rajagopalan, Fábio Lopes da Silva [orgs.] -sob demanda 9. Do signo ao discurso-Introdução à filosofia da linguagem, Inês Lacerda Araújo, 2' ed. 10. Ensaios de filosofia da linguística, ]o sé Borges Neto 11. Nós cheguemu na escola, e agora?, Stella Maris Bortoni-Ricardo, 2' ed. 12. Doa-se lindos filhotes de poodle-Variação linguística, mídia e preconceito, M" Marta Pereira Scherre, 2' ed. 13. A geopolítica do inglês, Yves Lacoste [org.], Kanavillil Rajagopalan 14. Gêneros- teorias, métodos, debates,]. L. Meurer, Adair Bonini, Désirée Motta-Roth [o rgs.], 2' ed. 15. O tempo nos verbos do português urna introdução a sua interpretação semântica Maria Luiza Monteiro Sales Corôa 16. Considerações sobre a fala e a escrita-fonologia em nova chave, Darci lia Simões 17. Princípios de linguística descritiva, M. A. Perini, 2' ed. 18. Por uma linguística aplicada INd isciplinar, Luiz Paulo da Moita Lopes, 2' ed. 19. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística U. Weinreich, W Labov, M. I. Herzog, 2' ed. 20. Origens do português brasileiro, Anthony ]ulius Naro, Maria Marta Pereira Scherre 21. Introdução à gramaticalização-Princípios teóricos & aplicação Sebastião Carlos Leite Gonçalves, Maria Célia Lima-Hernandes, Vânia Cristina Casseb-Galvão [orgs.] 22. O acento em português-Abordagens fonológicas, Gabriel Antunes de Araújo [org.] 23. Sociolinguística quantitativa-Instrumental de análise, Gregory R. Guy, Ana Maria Stahl Zilles 24. Metáfora, Tony Berber Sardinha 25. Norma culta brasileira-desatando alguns nós, Carlos Alberto Faraco 26. Padrões sociolinguísticos, William Labov 27. Gênese dos discursos, Dominique Maingueneau 28. Cenas da enunciação, Dominique Maingueneau 29. Estudos de gramática descritiva-as valências verbais, Mário A. Perini 30. Caminhos da linguística histórica-"Ouvir o inaudível", Rosa Virgínia Mattos e Silva 31. Limites do discurso ensaios sobre discurso e sujeito, Sírio Possenti 32. Questões para analistas do discurso, Sírio Possenti 33. Linguagem & diálogo-as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin, Carlos Alberto Faraco IEDITOII: Marcos Marcionilo CAPA E PROJETO GRÁFICO: Andréia Custódio CoNSELHO EDITORIAL: Ana Maria Stahl Zilles [Unisinos] Carlos Alberto Faraco [UFPR] Egon de Oliveira Rangel [PUCSP] Gilvan Müller de Oliveira [UFSC, lpol] Henrique Monteagudo [Univ. de Santiago de Compostela] Kanavillil Rajagopalan [Unicamp] Marcos Bagno [UnB] Maria Marta Pereira Scherre [UFRJ, UnB] Rachei Gazolla de Andrade [PUC-SP] Aos confrades Tovico e Giba, Salma Tannus Muchail [PUC-SP] Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB] celebrando nossas incontáveis seratas bakhtinianas CIP-IlRASil. CATAlOGAÇÃO NA FONTE E a Rosse-Marye Bernardi, SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, 11.1 nossa musa bakhtiniana. F2251 Faraco, Carlos Alberto Linguagem & diálogo: as ideias lingufsticas do círculo de Bakhtin I Carlos Alberto Faraco.-São Paulo: Parábola Editorial,2009. 168p.(Lingua[gem] ;33) Inclui bibliografia ISBN 978-85-88456-96-9 1. Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovitch), 1895-1975.2. Linguística.3. Linguagem e línguas-Filosofia. 4. Literatura -Estética.!. Título. 11. Série. 09-2257 CDD 401 CDU 81'42 Direitos reservados à PARÁBOLA EDITORIAL Rua Sussuarana, 216-lpiranga 04281-070 São Paulo, SP pabx: [11] 5061-9262 15061-15221 fax: [11] 5061-8075 home page: www.parabolaeditorial.com.br e-mail: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada ~m qualquer sistema ou banco de dados sem permissão por escrito da Parábola Editorial Ltda. ISBN: 978-85-88456-96-9 © do te)<to: Carlos Alberto Faraco © da edição brasileira: Parábola Editorial, São Paulo, junho de 2009 SUMÁRIO Introdução 9 CAPÍTULO UM O Círculo de Bakhtin 11 CAPÍTULO DOIS Criação ideológica e dialogismo 45 CAPÍTULO TRÊS A filosofia da linguagem 99 Referências bibliográficas 159 Índice de autores e obras citados 163 ---------------------------------- ,...., lNTRODUÇAO* akhtin e seu Círculo têm já um lugar conso lidado na história do pensamento linguísti co. Apesar de todos os conhecidos percal ços de sua trajetória, deixaram uma densa e rica contribuição de natureza filosófica que veio se somar às muitas outras que têm ten tado, ao longo dos milênios, apreender o Ser da linguagem. O objetivo principal deste livro é oferecer ao leitor uma visão de conjunto da reflexão bakhtiniana. Sintetizar obra tão complexa não é, evidentemente, tarefa fácil. Resolvemos enfrentá-la em resposta a uma constante demanda de nossos alunos por uma espécie de rotei ro geral que lhes auxiliasse a mergulharna filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin. Embora haja várias e algumas muito boas apresentações do pensamento bakhtiniano, nenhuma, até agora, centrou sua atenção especificamente nas ideias linguísticas do Círculo, o que nos ser viu de justificativa para escrever este texto. Procuramos delinear as * Este livro resultou do projeto "Fundamentos de uma teoria dialógica do discur so" que desenvolvi como bolsista-pesquisador do CNPq (processos n.3000954/97-2 e 303638/02-8). grandes coordenadas dessas ideias e situá-las no eixo da história. No melhor espírito bakhtiniano do diálogo infindo, do simpósio univer sal, não deixamos também de polemizar com algumas outras leituras das mesmas obras. CAPÍTULO l O livro está dividido em três capítulos. No primeiro, situamos o Círculo de Bakhtin e seus grandes projetos; no segundo, apresenta mos o quadro amplo em que a questão da linguagem se coloca para O CÍRCULO DE BAT(HTlN o Círculo; no terceiro, dirigimos nosso foco mais especificamente para a filosofia da linguagem do Círculo. é Por várias razões de ordem prática, usamos como fontes de nos- sas citações as traduções americanas dos textos do Círculo. Assim, as traduções das citações são de nossa responsabilidade. Nas Referên cias bibliográficas, incluímos a lista das edições brasileiras das obras do Círculo. Ü MISTÉRIO DA AUTORIA Esperamos que o livro seja útil tanto para quem se inicia no uem se aproxima pela primeira vez do pensamento bakhtiniano, quanto para quem já trabalha com ele. pensamento de Mikhail M. Bakhtin e de seus pares se depara com um per sistente quiproquó em torno da auto ria de certos textos, em especial de três livros: Freudismo, Marxismo e filosofia da linguagem e O método formal nos estudos literários. Isso porque os dois primeiros foram originalmente publi Valentin N. Voloshinov e o último sob o de A questão toda se a partir de 1970. Depois de trinta anos de silêncio, trabalhos de Bakhtin tinham sido novamente publicados na Rússia em 1963 e 1965, fazendo seu nome voltar a circular nos meios acadêmicos de sua terra natal. Nessa conjuntura, o linguista Viatcheslav V Ivanov, sem apresen tar argumentos efetivos, afirmou que o livro Marxismo e filosofia da linguagem tinha sido escrito por Bakhtin e não por Voloshinov, atribuição de autoria que se estendeu, em seguida, aos outros textos 1929)num estudos e partilharam um conjunto expressivo de mencionados e a alguns artigos também publicados a assinatura ideias, adotamos também a denominação que se tomou corrente de Voloshinov e Medvedev. para identificar o conjunto da obra: o Círculo de Bakhtin. Esse fato trouxe para os estudos bakhtinianos uma generalizada É importante lembrar que essa denominação foi-lhes atribuí confusão quanto à autoria desses textos. Até hoje, nenhum argu da a posteriori pelos estudiosos de seus trabalhos, já que o próprio mento convincente conseguiu resolver essa dúvida criada, ao que grupo não a usava. A escolha do nome de Bakhtin, neste caso, é ple tudo indica, artificialmente por lvanov. namente justificável, tendo-se em conta que de todos foi ele quem produziu, sem dúvida, a obra de maior envergadura. O contínuo e infrutífero debate acabou por diVidir a recepção daqueles textos em três direções: o a) a primeira é a daqueles que respeitam as autorias das edi CíRCULO DE BAKHTIN ções originais e, por consequência, só reconhecem como da autoria do próprio Bakhtin os textos publicados sob seu Antes de prosseguir, parece útil apresentar alguns dados sobre o nome ou encontrados em seus arquivos; Círculo. Trata-se de um grupo de intelectuais (boa parte nascida por b) a segunda direção é a daqueles que atribuem a Bakhtin to volta da metade da década de 1890) que se reuniu regularmente de dos os textos ditos disputados; 1919 a 1929, primeiro em Nevei e Vitebsk e, depois, em São Peters c) há, por fim, uma solução de compromisso que inclui os burgo (à época rebatizada de Leningrado). dois nomes na autoria. Assim, Freudismo e Marxismo e filo Era constituído por pessoas de diversas formações, interesses inte sofia da linguagem são atribuídos a Bakhtin!Voloshinov; e O lectuais e atuações profissionais (um grupo multidisciplinar, portanto), método formal nos estudos literários, a Bakhtin/Medvedev. incluindo, entre vários outros, o filósofo Matvei I. Kagan, o biólogo Ivan Neste livro, adotamos a primeira direção. E há várias razões I. Kanaev, a pianista Maria V Yudina, o professor e estudioso de literatura para isso. Em primeiro lugar, entendemos que atribuir a cada um Lev V Pumpianski e os três que vão nos interessar mais de peno neste dos autores os textos publicados sob seus respectivos nomes é uma livro: Mikhail M. Bakhtin, Valentin N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev. forma adequada de respeitar sua memória-o que não é irrelevante, Sobre Voloshinov, sabe-se que trabalhava como professor e, de considerando o lado trágico de suas existências. início, tinha seus interesses voltados para a história da música, vin Mais importante, porém, é nãD perder a diversidade de pen do, porém, a se formar em estudos linguísticos em 1927, dedicando se, em seguida, a estudos pós-graduados na mesma área. Medvedev, samento do grupo, suas múltiplas e inegáveis inter-relações e sua formado em direito, teve uma carreira de educador e de gestor na apreciável riqueza. Isso. tudo sem esquecer que Bakhtin, a partir da área da cultura. Desenvolveu intensa atividade no jornalismo cultu década de 1960 e até a ~ua morte,. teve várias oportunidades concre- ral e ensinou literatura no Instituto Pedagógico Herzen, em Lenin ' taS: de reivindicar a a~toria dos .textos mencionados e nunca o fez. grado. Voloshinovveio a falecer em 1936, vitimado pela tuberculose; Considerando que DS três intelectuais envolvidos tiveram fortes la e Medvedev, provavelmente em 1940, vítima dos expurgos políticos . ços de amiz~de, encontraram-se regularmente durante dez anos ( 1919- que varreram a URSS no fim da década de 1930. para se completar, desde a reedição do livro sobre Dostoievski em Bakhtin, por sua vez, teve formação em estudos literários. Atuou 1963 até a edição, em 1986, de Para uma ato. Ironica como professor, embora sem vínculos institucionais (principalmente mente, o primeiro dos textos mais longos escritos por Bakhtin foi o por problemas de saúde) até ser preso em 1929. Condenado a um último a ser publicado! exílio no Cazaquistão, só pôde encontrar um emprego permanente depois da Segunda Guerra Mundial, tornando-se professor de lite De certa forma, o mesmo aconteceu com a chegada das obras ratura do Instituto Pedagógico (depois, Universidade) de Saransk no Ocidente: não houve nenhuma ordem cronológica na sua divul (Mordóvia), donde se aposentou em 1969, passando seus últimos gação, que, por sua vez, levou perto de vinte e cinco anos para se anos de vida na região de Moscou, onde faleceu em 1975. completar, desde as primeiras traduções em 1968 (ano em que apa receram a edição em italiano da obra sobre Dostoievski e a edição em Apreciando sua obra retrospectivamente e considerando a am inglês da obra sobre Rabelais) até a tradução para o inglês de Para plidão de seus temas e a densidade de suas reflexões, o melhor que se uma filosofia do ato em 1993. pode dizer dele (seguindo hoje uma tendência internacional) é que foi um filósofo, talvez um dos mais importantes do século XX, embo Além disso, é preciso registrar que nem sempre as traduções fo ra seu ostracismo por mais de trinta anos tenha impedido a circulação ram feitas com o devido cuidado. Bastaria lembrar o caso da primei e o debate de suas ideias até praticamente a década de 1970. ra tradução do livro sobre Dostoievski para o inglês. Alguns outros exemplos mais pontuais podem ser lidos em Souza (1999, p. 42-53) Os membros do Círculo que recebeu seu nome, tinham em co e Castro (1997). mum, conforme se pode ler em Clark & Holquist (p. 65), uma pai xão pela filosofia e pelo debate de ideias, o que é facilmente percep Acrescente-se a isso tudo o fato de que boa parte dos textos tível nos textos que nos legaram. Mergulhavam fundo nas discussões do próprio Bakhtin é constituída de manúscritos inacabados, alguns de filósofos do passado, sem deixar de se envolver criticamente com apenas rascunhados, o que nos deixa, sem dúvida, numa situação de autores de seu tempo. não poucas dificuldades quanto à apreensão de seu pensamento. Podemos acrescentar a essa paixão outra que, progressivamen No Brasil, a recepção das ideias do Círculo teve também suas te, invade os interesses do Círculo, em especial em seus tempos de peculiaridades. Além de não poucos problemas de tradução, o pen Leningrado: a paixão pela linguagem. samento do Círculo, com bastante frequência e durante muitos anos, foi identificado quase exclusivamente ao livro Marxismo e filosofia da linguagem, o primeiro a ser publicado em português (em 1979). PROBLEMAS DE RECEPÇÃO Por outro lado, em especial pelo viés do discurso pedagógico (mas não apenas), houve uma banalização de termos como diálogo, Além da confusão em torno da autoria de certos textos publi interação e gêneros do discurso, retirados do vocabulário do Círculo, cados nos anos 1920, a recepção da obra do Círculo de Bakhtin, mas claramente despojados de sua complexidade conceitual (con quando de sua reentrada em cena de meados da década de 1960 em forme argumentaremos mais à frente). diante, foi, para dizer o menos, bastante tumultuada. Basta lembrar, E, por fim, cabe lembrar a confusão que se criou com o termo nesse sentido, que o material veio vindo à luz na Rússia sem nenhu ma ordem cronológica e sua publicação levou mais de vinte anos polifonia, seja por ser ele tomado inadvertidamente como sinônimo manteve sempre uma postura crítica frente àqueles filósofos e, mais im de heteroglossia (ou seja pelo sentido que ele tem portante, avançou respostas bastante originais àqueles problemas, res no quadro de referência do linguista francês O. Ducrot, nem sem postas que dificilmente poderiam ser classificadas como neokantianas. pre claramente distinguido, entre nós, de seu sentido em Bakhtin1 3 .~ Comentaremos esta questão peculiar no capítulo dois. Desde já, po O segundo grande projeto intelectual de membros do Círculo, u oo rém, recomendamos aos leitores interessados a discussão do concei claramente visível nos textos de Voloshinov e de Medvedev, publi to bakhtiniano de polifonia em Tezza (2002 e 2003). cados entre 1925 e 1930, era contribuir para a construção de uma teoria marxista da chamada criação ideológica, ou seja, da produção e dos produtos do "espírito" humano; ou, para usar um termo mais DOIS GRANDES PROJETOS corrente num certo vocabulário marxista, uma teoria das manifesta ções da superestrutura. Quando se observa em conjunto a obra do Círculo de Bakhtin, Tratava-se de uma área em que havia um grande vazio teórico é perceptível a existência de dois grandes projetos intelectuais. Da no pensamento marxista e que acabou atraindo vários pensadores, parte de Bakhtin, parece haver, de início, a intenção de construir nas décadas de 1920 e 1930, tanto na Rússia, quanto no Ocidente. uma "prima philosophía". Seus primeiros textos apontam nessa di As contribuições de Voloshinov e de Medvedev nessa direção reção ao se dedicarem extensamente à crítica do que ele chama de têm duas marcas bem distintas. Primeiro, a crítica sistemática que teoreticismo, isto é, as objetificações da historicidade vivida, obtidas ambos fizeram ao chamado marxismo vulgar, aquele que tenta dar pelos processos de abstração típicos da razão teórica. conta dos processos e produtos da criação ideológica por meio de A interlocução maior, nesse caso, parece se dar, segundo tem uma lógica determinista e mecanicista, segundo a qual uma relação apontado a exegese daqueles textos, com problemas filosóficos formu de causalidade simples, direta, unilinear e unidirecional entre a base lados principalmente pela fenomenologia e por pensadores neokantia econômica e as manifestações superestruturais resolveria tudo, sim nos. A estes, o Círculo tinha amplo acesso por meio do filósofo Matvei plória e dogmaticamente. I. Kagan, que se doutorara na Universidade de Marburgo (Alemanha) Segundo, e certamente mais importante, o papel central que - um dos centros do neokantismo -, onde foi aluno de Hermann eles deram à linguagem em suas formulações e as próprias pecu Cohen, uma das figuras emblemáticas daquele pensamento. liaridades da filosofia da linguagem que elaboraram. Nesse sentido específico, pode-se dizer que o Círculo de Bakhtin trouxe uma con É preciso, porém, resistir à tentação de logo rotular Bakhtin como tribuição original para aqueles debates, cujas implicações heurísticas um filósofo neokantiano. Considerando o todo de sua obra, um pou não foram ainda de todo exploradas. co de cautela não fará mal. Como veremos em mais detalhes adiante, Bakhtin, de fato, parece ter encarado como relevantes os problemas for mulados por filósofos neokantianos (em especial a questão axiológica) e PRIMA PHILOSOPHIA aproveitou-os como fio condutor de suas próprias reflexões. Contudo, Os primeiros textos de Bakhtin apontam para o objetivo do autor Cf. Amorim (2001, p. 123, n. 162), para um comentário critico ao conceito de de se envolver com a construção de uma reflexão filosófica ampla. Es- polifonia de Ducrot face ao de Bakhtin. tamos nos referindo principalmente aos dois textos que foram escritos se subsumir a razão teórica na razão prática, entendida provavelmente no início da década de 1920 e que ficaram inacabados e--s-t-a como a razão que se orienta pelo evento único do ser e pela unici- - Para uma filosofia do ato e O autor e o na estética. dade de seus atos efetivamente realizados; ou, em outras palavras, que Vamos encontrar nestes primeiros textos um conjunto muito se orienta a partir do vivido, i.e., do interior do mundo da vida. denso e rico de reflexões, que, de uma forma ou de outra, atravessará Esse posicionamento crítico frente à razão teórica, que abstrai o todos os escritos de Bakhtin até o fim de sua vida. No entanto, não ser humano de sua realidade concreta (deixando apenas um esque é objetivo deste livro apresentar e discutir essa temática específica leto de significado- p. 64), que constrói juízos em que eu não me (ética e estética), por mais interessante e instigante que ela seja e por encontro, em que eu não existo, será uma das principais constantes mais provocadores que sejam os vários debates que ela tem motiva do pensamento do autor e do Círculo. O evento único e irrepetível do internacionalmente. Por si só, ela exigiria outro livro. será sempre uma referência central nas suas elaborações filosóficas. Apesar disso, no contexto desta apresentação da filosofia da lin Deve ficar claro que essa crítica à razão teórica, ao teoreticismo, guagem do Círculo de Bakhtin, é importante dar atenção aqui a pelo não é uma negação da cognição teórica. Ao contrário: Bakhtin re menos alguns aspectos daquelas reflexões iniciais em razão de sua conhece sua validade; o que ele recusa é sua total desvinculação do pertinência para a concepção de linguagem que o Círculo formulou. mundo da vida. Embora seu projeto seja Referimo-nos particularmente: - à questão da unicidade e eventicidade do Ser; uma representação, uma descrição da arquitetônica real, concreta da -ao tema da contraposição eu/outro; experienciação do mundo regida por valores-não com uma funda -e ao componente axiológico intrínseco ao existir humano. mentação analítica na cabeça, mas com aquele centro real, concreto (tanto espacial quanto temporal) donde emergem ou brotam avalia Bakhtin, em Para uma filosofia do ato, parte da asserção de que ções, asserções e atos e onde os membros constituintes são objetos existe um dualismo entre o mundo da teoria (isto é, o mundo do juízo reais, interconectados por relações-eventos concretas no evento sin teórico, chamado, neste texto, de "mundo da cultura", o mundo em gular do Ser (p. 61), que os atos concretos de nossa atividade são objetificados na elabora ção teórica de caráter filosófico, científico, ético e estético) e o mundo da ele não esconde o desejo de reconciliar o mundo da cognição teórica vida (isto é, o mundo da historicidade viva, o todo real da existência de e o mundo da vida, conforme podemos ler à p. 49: seres históricos únicos que realizam atos únicos e irrepetíveis, o mundo da unicidade irrepetível da vida realmente vivida e experimentada). Todo o contexto infinito do conhecimento teórico humano possível - a ciência - deve se tornar alguma coisa responsivamente conhe Esse dois mundos, diz Bakhtin (p. 2), não se comunicam porque cida [uznaníe] para mim como um único participante, e isso em nada o mundo da vida, na sua eventicidade e unicidade, é inapreensível pelo diminui ou distorce a verdade [ístína] autônoma do conhecimento mundo da teoria como ele se apresenta hoje, na medida em que nele não teórico, mas, pelo contrário, complementa-a até o ponto em que ela há lugar para o ser e o evento únicos. O pensamento teórico se constitui se torna uma verdade [pravda] necessariamente válida. exatamente pelo gesto de se afastar do singular, de fazer abstração da vida. Bakhtin, desde este seu primeiro texto, será um crítico contu Mais ainda: para Bakhtin, não é possível superar este dualismo maz do racionalismo (p. 29-30), isto é, de um pensamento em que partindo do interior da cognição teórica. Essa superação só será alcan- interessa o universal e jamais o singular; a lei geral e jamais o evento; o sistema e jamais o ato individual; um pensamento que contrapõe o do eu moral que intui sua unicidade, que se percebe único, quere objetivo (entendido como o único espaço da racionalidade, da com conhece estar ocupando um lugar único que jamais foi ocupado por preensão lógica) ao subjetivo, ao individual, ao singular (entendido alguém e que não pode ser ocupado por nenhum outro. como o espaço do fortuito, do irredutível à compreensão lógica). Ao se perceber único (de dentro de sua própria existência e não Incomoda-lhe a idéia de sistema em que não há espaço para o indi como um juízo teórico), este sujeito não pode ficar indiferente a esta vidual, o singular, o irrepetível, o evêntico. sua unicidade; ele é compelido a se posicionar, a responder a ela: não No fim da vida, no texto inacabado Para uma epistemologia das temos álibi para a existência (p. 40). ciências humanas (p. 169), ele voltará a este mesmo ponto e dirá, Assume, desse modo, a responsabilidade por sua unicidade comentando o estruturalismo, que é contra uma formalização e uma ("Eu sou concreto e insubstituível e, por consequência, devo realizar despersonalização sistemáticas. minha unicidade"- p. 41) e compreende que deve realizá-la por Bakhtin reconhece, naquele primeiro texto (p. 19), que a filo que "aquilo que pode ser feito por mim não pode ser jamais feito por sofia moderna, dentro de seus propósitos e perspectivas, alcançou outro alguém" (p. 40). grande sofisticação em suas elaborações. Entretanto, para ele, essa E esta realização da unicidade se dá na ação, no ato individual filosofia não pode pretender ser uma filosofia primeira porque nada e resp;;;:;á~l(~ã;-indiferente). Nesse sentido, viver é agir (p. 43) e consegue dizer sobre o ser-como-evento único. agir em relação a tudo o que não é eu, em relação ao outro (p. 42). Uma filosofia primeira que trabalhe de dentro da unicidade do No fim desse manuscrito (p. 74-75), Bakhtin volta a insistir na ser e do evento não existe-diz ele (p. 19)-e mesmo os caminhos relação eu/outro. Anteriormente (p. 60), ele já tinha destacado que que levam à sua criação parecem estar esquecidos. reconhecer minha unicidade e realizá-la no ato individual e respon Contudo, ele quer recuperar a possibilidade de tal filosofia pri sável não significa que o eu vive só para si. meira, uma filosofia cujo procedimento não será construir conceitos, Agora, ele vai afirmar que o princípio constitutivo maior do proposições e leis universais sobre o mundo do ato efetivamente rea mundo real do ato realizado é precisamente a contraposição concre lizado (em outras palavras, não se orientará pela "pureza" abstrata, te ta eu/outro: órica do ato), mas só poderá se viabilizar como uma fenomenologia A vida conhece dois centros de valores que são fundamentalmente e daquele mundo (p. 32), como uma forma do pensamento que Bakhtin essencialmente diferentes, e ainda assim correlacionados um com o chama de participativo, não-indiferente, isto é, o pensamento daqueles outro: eu mesmo e o outro; e é em torno desses centros que todos os que sabem como não separar seu ato realizado do produto dele, mas momentos concretos do Ser são distribuídos e dispostos (p. 74). sim como relacionar ambos ao contexto único e unitário da vida e O eu e o outro são, cada um, um universo de valores. O mesmo buscam determiná-los naquele contexto como uma unidade indivisí mundo, quando correlacionado comigo ou com o outro, recebe valo vel (p. 19, nota de rodapé). rações diferentes, é determinado por diferentes quadros axiológicos. Essa insistência de Bakhtin no trato do singular, do único, do Eessas diferenças são arquitetonicamente ativas, no sentido de que irrepetível tem como base uma extensa reflexão sobre a existência do são constitutivas dos nossos atos (inclusive de nossos enunciados): ser humano concreto. O argumento (p. 40) se assenta na estrutura é na contraposição de valores que os fl.tos concretos se realizam; é

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