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kierkegaard, o trágico antigo e o moderno PDF

14 Pages·2009·0.13 MB·Portuguese
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KIERKEGAARD, O TRÁGICO ANTIGO E O MODERNO: UMA RELEITURA DA ANTÍGONA, DE SÓFOCLES Krishnamurti Jareski –Doutorando em Filosofia pela PUC-SP Resumo: O presente artigo objetiva explicitar a posição de Kierkegaard perante a questão da alteridade entre a tragédia antiga e a tragédia moderna. Dialogando com Aristóteles e com Hegel, o pensador dinamarquês finalmente reconstrói a Antígona, de Sófocles, de modo a lograr o máximo efeito trágico, a partir de uma reelaboração da mesma. Palavras-chave: Kierkegaard, tragédia, Antígona. O objetivo do presente trabalho consiste em apresentar alguns aspectos da concepção de trágico elaborada por Kierkegaard em seu ensaio La Repercusión de la Tragedia Antigua en la Moderna, publicado em seus Estudios Esteticos.1 A questão da alteridade entre a tragédia antiga e a tragédia moderna sempre esteve presente aos estudiosos do teatro, pois o mundo grego difere radicalmente do mundo judaico-cristão. Da tragédia ática restaram poucas peças, conservadas de modo mais ou menos integral, e seu período de florescimento foi muito breve (de Os Persas, de Ésquilo, encenada pela primeira vez em 472 a.C., e As Bacantes, de Eurípides, de 406 a.C., menos de cem anos se passaram). Devido a essa distância temporal, os comentadores buscam apoio em elementos-chave cuja presença nas tragédias antigas é capaz de lançar alguma luz sobre esse mundo pré-cristão: noções como a de hýbris (desmedida/arrogância/insolência), hamartía (erro trágico), týche (sorte/fortuna), entre outros, elencados por Aristóteles em sua Poética. Já o teatro moderno, que tem seu nascimento por volta dos séculos VIII ou IX d.C., com as primeiras representações de passagens bíblicas, até o advento do “teatro das moralidades”, é o resultado artístico de uma visão de mundo radicalmente distinta. Instituições jurídicas mais desenvolvidas, tributárias da noção cristã de livre-arbítrio, enfatizam a responsabilidade individual do homem pelos seus atos; e, como 1 KIERKEGAARD, S.A. Estudios Esteticos II (de la tragedia y otros ensayos). Tradução espanhola de Demetrio G. Rivero. Madri: Guadarrama, 1ª ed. 1969. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008. . JARESKI, Krishnamurti - 2 - conseqüência, o homem, agora livre, relaciona-se com um Deus que é providência e forjador de uma Redenção final. Este ponto é fundamental (relação de um eu com um Tu redentor que é totalmente outro), e levou muitos estudiosos a negarem veementemente a possibilidade do trágico no mundo cristão. Tal discussão procede da concepção de que o trágico “(...) se baseia numa contradição inconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação, desaparece o trágico”, conforme a carta de Goethe ao Chanceler von Muller, de 1824.2 As análises que seguem buscam iluminar a compreensão do pensador dinamarquês acerca da relação entre as modalidades do trágico – o trágico antigo e o moderno – para quem a diferença fundamental entre estas modalidades trágicas consiste na ausência de uma compreensão consciente e reflexiva da culpa, no tocante ao trágico antigo; ou seja, na tragédia antiga a pena é mais profunda e a dor menor, enquanto na tragédia moderna a dor é maior e menor a pena. No entanto, diferentemente de muitos comentadores, Kierkegaard reconhece uma continuidade entre o trágico antigo e o moderno Ahora bien, si alguien pretendiese en este caso defender que tal diferencia era absoluta y la aprovechara, al principio de una manera solapada y después violentamente, para interponerse entre la tragedia antigua y la moderna, su conduta sería tan absurda como la del primer afirmante – en el caso de no cumplirse la suposición. Pues al hacer esto olvidaba que la tierra firme, absolutamente necessaria para afianzar sus proprios pies, era lo trágico mismo, que por cierto es incapaz de introducir ninguna separación, al revés, sirve cabalmente para enlazar la tragedia antigua con la moderna3 Seu objetivo é, primordialmente, demonstrar que há aspectos da tragédia antiga que podem ser incorporados à tragédia moderna, o que significa que o trágico subsiste na modernidade; porém, antes de adentrarmos nos texto primário do filósofo dinamarquês, devemos pontuar, brevemente, alguns aspectos da apropriação kierkegaardiana d’A Poética de Aristóteles. O MODELO ARISTOTÉLICO - Kierkegaard inicia sua análise valendo-se da obra filosófica mais importante que possuímos acerca da tragédia ática: a Poética de Aristóteles. Esta obra, que nos chegou fragmentária, é tão importante que, mesmo os pensadores modernos, preocupados com a estética e seus problemas, a ela retornam 2 LESKY, A. A tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg, Geraldo G. de Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Perspectiva, 3ª ed. 2001, p. 31. 3 Ibidem, p. 14. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008. KIERKEGAARD, O TRÁGICO ANTIGO E O MODERNO: UMA RELEITURA DA ANTÍGONA, DE SÓFOCLES - 3 - como fonte inesgotável de orientação. Segundo o pensador dinamarquês, a contínua referência a Aristóteles e sua obra é indício de que, a despeito das inevitáveis diferenças de ordem formal, há algo que enlaça a tragédia antiga e a moderna, que é o elemento trágico. O ponto de partida para a primeira distinção kierkegaardiana entre o trágico antigo e o moderno, a saber, a ação trágica, começa a partir da extração do texto aristotélico de três noções fundamentais: diánoia (pensamento), êthos (caráter) e télos (fim). Aristóteles, em sua Poética (1449b35 -1450a7), elenca a diánoia e o êthos como as causas naturais que determinam as ações dos personagens da tragédia. O êthos constitui aquilo que nos faz dizer dos personagens que eles têm esta ou aquela qualidade, ou seja, o caráter, o traço distintivo de cada um; já a diánoia é definida pelo estagirita como tudo quanto digam os personagens para demonstrar o quer que seja ou para manifestar sua decisão. Assim, numa boa tragédia, devem harmonizar-se o pensamento e o caráter dos personagens, pois seria absurdo um caráter vil ser expresso mediante uma diánoia nobre, elevada. Mas Aristóteles não termina aqui sua análise das causas das ações trágicas, pois, se tivesse encerrado a investigação nesse ponto, teríamos algo muito próximo de um voluntarismo. Ao contrário, ele salientou que a finalidade (télos) é de tudo o que mais importa na tragédia (Poética, 1450a18-22): Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao caráter, mas são bem ou mal-aventurados pelas ações que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas ações; por isso as ações e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa4. Kierkegaard percebeu que Aristóteles incorporou o pensamento e o caráter com vistas à ação trágica, pois estes devem estar subordinados ao mito, que pode ser compreendido como o entrecho das ações ou a trama dos fatos. O importante é ter-se em conta que na tragédia antiga a ação trágica não dimana somente do caráter, ou seja, há relativa porção de passividade do indivíduo, pois este se assemelha, por vezes, a uma marionete, à mercê de forças superiores à sua deliberação. Kierkegaard elenca três delas: o Estado, a família e o destino. A queda trágica exige aqui algo mais do que o erro na deliberação do herói (hamartía). Em Édipo Rei constata-se a submissão do protagonista ao destino, a ponto de ser difícil até mesmo identificar a natureza de sua falta: Édipo matou seu pai 4 ARISTÓTELES, Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Rio de Janeiro: Globo, 1966, p. 75. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008. JARESKI, Krishnamurti - 4 - sem identificá-lo e desposou sua mãe sem consciência do laço consangüíneo, eventos vaticinados anteriormente pelo oráculo. No entanto, pode-se identificar uma arrogância, uma soberba na fala de Édipo que, mesmo não sendo a causa primordial da sua catástrofe, certamente concorre para seu desenlace. É isto que permite a Kierkegaard a afirmação de que a queda do herói não é somente uma conseqüência de sua ação, mas também um padecimento. A situação é de todo diferente na tragédia moderna. Nesta a subjetividade tornou-se auto-reflexiva, e o personagem fundamental da tragédia, o herói trágico, já não é paciente, mas sim agente, e é exclusivamente em suas ações que devemos encontrar as razões de sua queda. Diversos personagens shakespeareanos atestam essa peculiaridade do homem moderno, tributário do mundo judaico-cristão, constituído pela noção de livre-arbítrio: como exemplo, temos Hamlet, que permanentemente oscila entre possibilidades, até ser arrastado pelas circunstâncias, e também Otelo, cujo monólogo que antecede ao assassinato de Desdêmona, na peça homônima, ilustra muito bem a condição de uma alma que sabe muito bem as conseqüências de suas ações, e se reconhece livre e responsável por suas escolhas: Esta é a causa, minha alma. Oh! Esta é a causa! Não vo-la nomearei, castas estrelas! / Esta é a causa! Não quero verter sangue, / nem ferir- lhe a epiderme ainda mais branca / do que a neve e mais lisa que o alabastro. / Mas é fatal que morra; do contrário, / virá ainda a enganar mais outros homens. / Apaga a luz! Depois ... Apaga a luz! Se te apagar, ministro flamejante, / poderei restituir-te a luz primeira, / se vier a arrepender-me. Mas extinta / que seja tua luz, ó tu, modelo / primoroso da excelsa natureza! / De onde o fogo trazer de Prometeu, / para dar nova luz à tua chama? / Se tua rosa colher, é-me impossível / o vital crescimento restituir-lhe / fatal é que feneça5. O segundo elemento distintivo entre a tragédia antiga e a moderna diz respeito, segundo Kierkegaard, à variedade de espécies da falta trágica. O termo grego correspondente é hamartía, que pode ser traduzido como o erro trágico, o excesso, a desmedida, a insolência. Constata-se que a falta cometida pelo herói não é necessariamente resultado de uma malevolência de caráter, ao contrário, trata-se de uma condição de errância inerente à própria condição humana, um erro que todo homem, enquanto mortal, é passível de cometer. 5 SHAKESPEARE, W. Tragédias completas. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, sem referência à edição, sem data, pp. 653-654. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008. KIERKEGAARD, O TRÁGICO ANTIGO E O MODERNO: UMA RELEITURA DA ANTÍGONA, DE SÓFOCLES - 5 - As observações precedentes sobre a hamartía são importantes porque se harmonizam com a afirmação aristotélica de que o herói trágico não pode ser nem completamente bom nem completamente mau, pois o resultado é uma despotencialização do elemento trágico: seu efeito se desvanece quando o protagonista malévolo é punido porque é merecedor da desdita, trata-se de uma situação que satisfaz os sentimentos de humanidade, porém, incapaz de suscitar terror e piedade (Poética, 1453a1-6); o mesmo ocorre se é de caráter acentuadamente bom, porque o não-merecimento torna repugnante o desenlace trágico. Esse é o núcleo da afirmação seguinte de Kierkegaard, de evidente teor aristotélico, e que prepara considerações importantes sobre a tragédia moderna: Pero del mismo modo que en la tragedia griega la acción es algo intermedio entre el actuar y el padecer, así lo es también la culpa, y en esto consiste el choque trágico. En cambio, la culpa resultará tanto más ética cuanto más reflexiva se haga la subjetividad y más abandonado a si mismo, de una manera total y pelagiana, veamos al individuo. Lo trágico está cabalmente entre estos dos extremos. Si el individuo no tiene en absoluto ninguna culpa, entonces cesa el interés trágico, pues en tal caso queda amortiguado el choque que es característico de la tragedia. Pero, por el lado contrario, si la culpa del individuo es absoluta, entonces ya no tiene para nosotros ningún interés desde el punto de vista trágico. Por eso hemos de afirmar sin titubeos que supone una falsa interpretación de la tragedia ese afán contemporáneo de hacer que todo lo que es fatal se transustancialice en individualidad y subjectividad6. Os efeitos do processo histórico de “subjetivação” do indivíduo repercutem desde a esfera da ação humana até a estética teatral. No tocante à ação humana, o abandono do homem a si mesmo tem como conseqüência a conversão de seu agir não-culpável num agir culpável. Isolado das instâncias da família, da nação, de seus amigos, e de Deus, o herói trágico se converte num malvado, numa abstração que traz ao palco, do ponto de vista teatral, não mais a “ambígua inocência” da tragédia antiga, mas sim o problema do mal, que não possui interesse estético. Aqui Kierkegaard serve-se da contraposição entre o trágico antigo e o moderno para diagnosticar os males que acometem o homem de seu tempo, e sua conclusão consiste em caracterizá-lo como um homem do isolamento, de uma época que se dirige para o cômico e cuja conseqüência última é o desespero. A culpa supra-individual, presente na tragédia antiga, como na maldição familiar dos Labdácidas, é substituída por uma culpa meramente subjetiva. 6 Ibidem, pp. 20-21. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008. JARESKI, Krishnamurti - 6 - O pensador dinamarquês enfatiza, portanto, dois tipos de homem: o homem trágico, que só pode ser compreendido em sua relação com o Estado, a família e o Destino, e o homem moderno, desvinculado destes, que possui consciência auto-reflexiva, cuja situação deriva unicamente de seus próprios atos. Este aspecto é fundamental. Se na tragédia antiga há a presença daquilo que Kierkegaard elenca como as qualidades do trágico em seu sentido estético, a saber, uma “doçura infinita”, “melancolia e virtude curativa”, “graça e misericórdia divinas”, “o mais terno” e “um amor maternal”, na tragédia moderna constata-se o peso da pretensão do homem em ser artífice de si mesmo, buscando se absolutizar a expensas de Deus. Nossa época, ao pretender que o homem ganhe a si mesmo, em completa autonomia perante sua relatividade, perde a sua verdade, e até mesmo a possibilidade de sua felicidade. Resta a ele o desespero oriundo da pretensão de impor como norma de valor a sua subjetividade, o cômico de nosso tempo, segundo Kierkegaard, pois é autêntica manifestação da hýbris moderna. O terceiro elemento da concepção aristotélica do trágico a ser discutido diz respeito aos efeitos, no público, da mímesis de práxis (imitação de ação): o phóbos (terror) e o éleos (compaixão). É sobre esta última que Kierkegaard se debruça, de modo a pesquisar a multiplicidade de estados de alma, no caso a compaixão, de acordo com a diversidade da culpa trágica. Suas reflexões neste ponto seguem a linha divisória anteriormente estabelecida entre o homem trágico, em sua relação com o Estado, a família e o destino, e o homem moderno, caracterizado pelo isolamento e pelo fardo de ser o responsável exclusivo por suas ações. Perseguindo a compreensão dos estados afectivos da alma humana (algo que diz respeito tanto ao personagem quanto ao público), Kierkegaard assevera, numa das passagens mais relevantes do texto, que na tragédia antiga a pena é mais profunda, enquanto que na tragédia moderna a dor é maior. A metáfora de que se serve o pensador dinamarquês para representar esse homem trágico é a figuração da infância: confrontado com um adulto, a criança não é reflexiva o suficiente para experimentar a dor, mas, em compensação, toda a sua pena é infinitamente profunda. Já o adulto, reflexivo o bastante para ter consciência do pecado e do delito, sofre a maior dor. Evidentemente, aqui a criança simboliza o homem trágico antigo, e o adulto, o homem moderno. A dialética pena-dor estabelecida por Kierkegaard é devedora da transformação operada no ser humano, o processo de subjetivação a que aludimos anteriormente e que constitui a base da afirmação kierkegaardiana: “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008. KIERKEGAARD, O TRÁGICO ANTIGO E O MODERNO: UMA RELEITURA DA ANTÍGONA, DE SÓFOCLES - 7 - La cólera de los dioses es terrible, y con todo el dolor no es tan grande como en la tragedia moderna, en la que el heróe sufre toda su culpa y se hace transparente a si mismo en médio del sufrimiento íntimo por su propria culpa. Aquí importa mucho, por analogía con la culpa trágica, mostrar qué pena es la auténtica pena estética y cuál es el auténtico dolor estético7 A seguir, Kierkegaard tece considerações sobre o problema da dor, a partir de seu exemplo mais amargo, o arrependimento. Sendo este a transparência da culpa de todo indivíduo, nele vislumbramos não mais a esfera estética, mas sim a realidade ética. As conseqüências da separação entre estético e ético, estabelecida por Kierkegaard, permite-lhe distinguir os limites e possibilidades das diferentes esferas culturais do homem, a saber, o teatro, a igreja e a universidade. Porém, uma vez que a nossa época se caracteriza por uma confusão a respeito das atribuições de cada uma destas, constata-se a busca pela edificação no teatro, o anseio por emoções estéticas na igreja e o desejo de um sacerdote em cada cátedra universitária. Em relação ao problema do trágico, Kierkegaard detecta a mesma contradição, qual seja, a emergência de uma modalidade trágica que prescinde do elemento da compaixão para com o personagem: o indivíduo que sofre está inteiramente entregue à própria sorte, pela ausência das categorias da família, do Estado e da estirpe, e por isso a sua falta se converte em pecado e a sua dor em dor do arrependimento. Isto despotencializa o efeito trágico – Kierkegaard salienta que resta apenas uma tragédia “sofredora” – e o resultado é uma modalidade trágica sem o menor interesse trágico, sem compaixão, em suma, mais uma das contradições de uma época “cômica”.8 OS EXEMPLOS DO FILOCTETES E DA ANTÍGONA - As tragédias antigas Filoctetes e Antígona, ambas de Sófocles, ocupam posição de destaque nas reflexões de Kierkegaard, embora somente a última mereça uma análise mais detalhada. A peça Filotectes é citada pelo pensador dinamarquês como exemplo de tragédia transicional, exemplificando a passagem da pena à dor; uma peça que, não obstante concebida no seio da cultura trágica antiga, já traz elementos das mudanças a serem inauguradas pela tragédia moderna. Ele identifica como exemplar, a esse respeito, o grau 7 Ibidem, pp. 27-28. 8 Numa de suas anotações, de 1841, Kierkegaard considerou a contradição a categoria do cômico (nota de 1841, III, A 205). KIERKEGAARD, S.A. Papers and journals: a selection. Tradução inglesa de Allastair Hannay. Londres: Penguin, 1996, p. 146. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008. JARESKI, Krishnamurti - 8 - de reflexão presente na interioridade do herói Filoctetes, quando este reflete profundamente acerca de seu sofrimento. A trama da peça é a seguinte: Ulisses e Neoptólemo, filho de Aquiles, acabam de chegar a Lemnos. Eles têm por missão levar Filotectes e seu arco a Tróia, pois esta só seria vencida com a presença do ancião e sua arma, de acordo com as predições do adivinho Heleno. O problema é que Ulisses foi o responsável pelo terrível abandono de Filoctetes em Lemnos, dez anos atrás, em virtude das feridas pútridas deste causadas pelo veneno de uma serpente. Assim, cabe a Neoptólemo a tarefa de iludir o velho eremita Filoctetes. Ulisses, personagem caracterizado pelas artimanhas, convence Neoptólemo a conquistar o afeto e a confiança de Filoctetes para persuadi-lo a unir-se à esquadra em direção a Tróia. Muito a custo Neoptólemo é convencido por Ulisses a engajar-se na empreitada, pois ele é filho de Aquiles, personagem conhecido por só agir de modo claro e nobre, sem expedientes ou astúcias. Assim, o pano de fundo da peça é a clássica discussão filosófica dos séculos VI-V a.C: os homens são virtuosos por natureza, como sustentava Píndaro e a classe aristocrática, ou devido a certa educação, como defendido pelos sofistas? Depois de marchas e contramarchas na trama, que manifestam todo o embate interior dos personagens, por fim vence a natureza: Neoptólemo confessa o ardil a Filoctetes que, sapiente da verdade, se recusa terminantemente seguir a esquadra em direção a Tróia. A solução de Sófocles é a adoção de um deus ex machina: Hércules, dono original do arco de Filoctetes, intervém e persuade a este para que acompanhe a esquadra em direção a Tróia. A ambigüidade apontada por Kierkegaard diz respeito à convivência, na peça, de uma forte objetividade pela via do destino (característica fundamental do trágico antigo) com uma reflexão interior na qual os personagens apontam para a passagem da pena à dor (transposição que nunca se realiza completamente no âmbito da tragédia ática, mas apenas com o advento da tragédia moderna). Assim, objetivamente, há o destino de Filoctetes, de ser abandonado e padecer as dores na solidão por dez anos, com a predição de seu retorno a Tróia, e, subjetivamente, sua reflexão tendente a indagar as razões dos eventos sucederem dessa maneira. Deve-se ter em mente que o dilema trágico de Filoctetes – cooperar com Ulisses, a quem ele odeia, libertando-se da solidão e das dores, ou vingar-se dele, inviabilizando a conquista de Tróia, mas permanecendo em sofrimento e solidão – antecipa, ainda que de modo embrionário, as escolhas fundadas “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008. KIERKEGAARD, O TRÁGICO ANTIGO E O MODERNO: UMA RELEITURA DA ANTÍGONA, DE SÓFOCLES - 9 - no livre-arbítrio dos personagens da tragédia moderna. É o que fica claro no diálogo entre Filoctetes e o coro, onde o herói, ainda imbuído do ânimo em permanecer, após ter rejeitado a oferta de Neoptólemo, reflete sobre as suas dores e solidão, e o coro indica que há o melhor e o pior na vida, cabendo ao homem optar pelo primeiro: Filoctetes – Oh hueco de la cóncava roca, caluroso y helador. Por lo visto cómo no había de abandonarte jamás, pobre de mí, sino que serás testigo hasta mi agonía! Ay de mí, de mí, de mí! Oh aposento llenísimo de la pena mía, pobre de ti. Cómo me vendrá en el futuro el alimento cotidiano? Qué ración de comida conseguiré, con qué esperanza, desgraciado de mí? Id a lo alto del firmamento asustadizas aves cortando el aire de agudo sonido: ya no puedo apresaros. Coro – Sí, tú, sí, tú fuiste quien elegiste esto, oh desventurado en exceso. Este estado de cosas no te vino del prójimo, por fuerza mayor, sobre todo cuando, estando en tu mano ser inteligente preferiste al destino mejor optar por el peor9 No Filoctetes encontramos, portanto, diversas peculiaridades, e a mais importante delas é o reconhecimento do papel da deliberação humana nos destinos do homem, como sucede ao final, pela persuasão de Filoctetes, elemento fundamental para o cumprimento do destino dos gregos e dos troianos. Isso permitiu a H.D.F. Kitto afirmar que no Filoctetes se constata um plano dos deuses para a queda de Tróia que é obstruída por um personagem, Filoctetes.10 Algo muito diferente de uma peça como Édipo Rei, onde o destino é inexorável e os deuses não persuadem os homens, ao contrário, estes são subjugados pelas determinações divinas. O importante é, a título de balanço, entender as razões pelas quais Kierkegaard considerou o Filoctetes uma peça transicional, diferente das peças do ciclo tebano. A interpretação kierkegaardiana da peça Antígona é, sob todos os ângulos, a coroação de seu texto sobre a repercussão da tragédia antiga na moderna, e nesse ponto é 9 SOFOCLES. Tragedias completas. Tradução espanhola de Jose Vara Donado. Madri: Catedra, 13ª ed. 2005, p. 376. 10 KITTO, H.D.F. Greek tragedy – a literary study. Londres: Routledge, 3ª ed. 2005, p. 300. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008. JARESKI, Krishnamurti - 10 - necessário contextualizá-la, cotejando-a tanto com o texto sofocleano quanto com a influente leitura hegeliana da peça, presente na sua Estética. Ambos compartilhavam a admiração por Shakespeare, em se tratando da tragédia moderna, e por Antígona, enquanto modelo trágico antigo. No entanto, deve-se ter em mente que Kierkegaard é um intérprete que toma liberdades em relação ao texto original, pois objetiva não uma exegese “acadêmica”, mas sim pensar o trágico a partir da peça em questão. Ele mesmo salienta que se trata de uma reconstrução, e em suas anotações de 1841 ele indica até que ponto é capaz de manipular o conteúdo da peça para encontrar o difícil arranjo trágico: No doubt I could bring my Antigone to a conclusion if I let her be a man. He forsook his beloved because he could not hold on to her along with his private agony. To put things right he had to make his whole love look like a deception to her, since otherwise she would in a quite unjustifiable way have taken part in his suffering. This scandal outraged the family: a brother, for example, came forward as an avenger; I would then have my hero fall in a duel11 Evidentemente no texto acerca da repercussão da tragédia antiga na moderna, Kierkegaard não foi tão longe, a ponto de reconstruir a peça Antígona alterando o gênero sexual a que pertence a heroína. Contudo, sua exegese permanece altamente pessoal e, para que possamos compreendê-la integralmente, será necessário confrontá-la com a interpretação hegeliana de Antígona, que estabeleceu critérios hermenêuticos fundamentais para a compreensão do teatro antigo. A ANTÍGONA DE HEGEL - Hegel dedicou as páginas finais da terceira parte de sua Estética à poesia dramática, e ele também buscou estabelecer critérios para a correta diferenciação entre a tragédia antiga e a moderna. Nesse esforço de compreensão filosófica do gênero poético, a peça Antígona desempenha papel fundamental, enquanto paradigma do teatro antigo. Hegel identifica na tragédia antiga a representação da oposição entre forças e personagens que defendem direitos igualmente legítimos. De um lado temos Antígona, arauto da moral natural que a Família representa e, de outro, Creonte, símbolo da generalidade ética que advém do Estado. Nesse conflito em que cada um dos opositores 11 KIERKEGAARD, S.A. Papers and journals: a selection, p. 146. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008.

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