ILAESE Instituto Latino-Americano de Estudos Sócio-Econômicos Introdução à Teoria Econômica Marxista Módulo - 01 Setembro – 2005 Sumário Apresentação 03 Iniciação à Teoria Econômica Marxista, por Ernest Mandel 05 Capítulo I – A Teoria do Valor e da Mais-valia 05 1. O sobreproduto social 05 2. Mercadorias, valor de uso e valor de troca 07 3. A lei do valor 09 4. Determinação do valor de troca 13 5. O que é trabalho socialmente necessário 16 6. Origem e natureza da mais-valia 19 7. Validade da teoria do valor trabalho 21 Capítulo II – Capital e Capitalismo 24 1. O capital na sociedade pré-capitalista 24 2. As origens do modo de produção capitalista 25 3. Origens e definição do proletariado moderno 29 4. Mecanismo fundamental da economia capitalista 31 5. O Aumento da composição orgânica do capital 35 6. A concorrência conduz à concentração e aos monopólios 39 7. Queda tendencial da taxa média de lucro 41 8. A contradição fundamental do regime capitalista e as crises periódicas de superprodução 45 As Crises de Superprodução, por Pierre Salama & Jacques Valier 48 Seção I – A possibilidade das crises 49 Seção II — A significação das crises 51 Seção III — As causas das crises 57 Roteiro de leitura 60 Sugestão bibliográfica 63 2 Apresentação Companheiros, Com este material apresentamos o Módulo I do curso de Introdução à Teoria Econômica Marxista do Instituto Latino-americano de Estudos Sócio-econômicos (ILAESE). O curso completo conta com dois módulos, nos quais se abordará os conceitos e teorias mais importantes da crítica à economia política de Karl Marx, tais como trabalho necessário e trabalho excedente, teorias valor e do capital, teoria da mais- valia, a formação do capitalismo e do proletariado moderno, composição orgânica do capital, concentração e centralização de capitais, monopólio, teoria da queda tendencial da taxa de lucro, as leis da acumulação do capital, reprodução ampliada do capital, teoria do desemprego e teoria das crises de superprodução. Neste primeiro módulo, utilizamos duas obras. Inicialmente, os dois primeiros capítulos de um livro de Ernest Mandel elaborado em fins dos anos 1970 (Iniciação à Teoria Econômica Marxista). Logo o leitor se dará conta desta data, uma vez que Mandel faz referências à União Soviética quando ela ainda era uma realidade. No entanto, apesar do tempo decorrido, o texto cumpre plenamente com os objetivos desejados, uma vez que trabalha com seriedade o essencial do pensamento de Marx e é escrito com uma linguagem clara e acessível. Além do texto de Mandel, também introduzimos o capítulo 06 do livro de Pierre Salama e Jacques Valier, Uma Introdução à Economia Política, para melhor abordar a questão das crises de superprodução. Ao final do texto, o leitor encontra um roteiro de leitura, com objetivo de contribuir para a compreensão e o debate dos temas em questão. Este material ainda conta com uma pequena sugestão bibliográfica para aqueles que quiserem se aprofundar no assunto. Por fim, vale destacar que a atividade de formação não pode ser encarada apenas ―quando dá tempo‖. Ela não é nem mais nem menos importante, é apenas mais uma dentre as tantas atividades da militância cotidiana, tal como realizar uma assembléia, fazer um piquete, distribuir o material do sindicato etc., 3 A burguesia cria com facilidade seus teóricos, seus intelectuais e seus reprodutores. Além dos seus filhos, em geral ela também conquista uma parcela importante dos filhos da classe média e mesmo dos trabalhadores que são educados todos os dias nas escolas e nas universidades, nas igrejas e nos clubes, no trabalho e nos partidos reformistas e sindicatos pelegos. A classe trabalhadora consegue tirar alguns desses jovens da influência da ideologia burguesa, mas em última instância, uma revolução socialista vai depender dela própria e de seus organismo de luta, daí a importância de incluir a formação teórica nas atividades da militância política diária. Sendo assim, boa militância, Daniel Romero Campinas, Setembro de 2005. 4 Iniciação à Teoria Econômica Marxista1 Ernest Mandel Capítulo I – A teoria do valor e da mais-valia Todos os progressos da civilização são em última análise determinados pelo aumento da produtividade do trabalho. Enquanto a produção unicamente bastar à satisfação das necessidades dos produtores e enquanto não houver excedente para além deste produto necessário, não há possibilidades de divisão do trabalho nem da aparição de artífices, de artistas ou de sábios. Não há, portanto, nenhuma possibilidade de desenvolvimento de técnicas que exijam conseqüentes especializações. 1. O sobreproduto social Enquanto a produtividade do trabalho for tão baixa que o produto do trabalho de um homem não chegar para o seu próprio sustento, não haverá ainda divisão social, não haverá diferenciação no interior da sociedade. Todos os homens são produtores, encontram-se todos ao mesmo nível de carência. Todo o acréscimo da produtividade do trabalho para além deste nível mínimo, cria a possibilidade de um pequeno excedente, e, desde que haja um excedente de produtos, desde que dois braços produzam mais do que exige o seu próprio sustento, a possibilidade de luta pela posse desse excedente pode aparecer. A partir desse momento, o conjunto do trabalho de uma coletividade deixa de ser necessariamente destinado ao sustento dos seus produtores. Uma parte deste trabalho pode ser destinada a libertar uma outra parte da sociedade da necessidade de trabalhar para o seu sustento. Logo que esta possibilidade se concretizar, uma parte da sociedade pode constituir-se em classe dominante, caracterizada sobretudo pelo fato de se ter libertado da necessidade de trabalho para se sustentar. 1 Extraído de: MANDEL, Ernest. Iniciação à Teoria Econômica Marxista. Lisboa, Antídoto, 1978 (Caps. 01 e 02). 5 O trabalho dos produtores decompõe-se, a partir deste momento, em duas partes. Uma parte desse trabalho continua a efetuar-se para o sustento próprio dos produtores; chamamos-lhe o trabalho necessário. Uma outra parte deste trabalho serve para sustentar a classe dominante; a chamamos de trabalho excedente. Tomemos um exemplo bastante claro, a escravatura nas plantações, quer seja em certas regiões e em certas épocas do Império Romano, ou nas grandes plantações a partir do século XVII nas Índias Ocidentais ou ainda nas colônias portuguesas na África. Geralmente, nas regiões tropicais, o dono não dava qualquer alimento ao escravo; era este que o conseguia trabalhando, aos domingos, num pequeno bocado de terreno, donde tirava todos os produtos necessários à sua alimentação. Seis dias por semana o escravo trabalha na plantação; é um trabalho cujos produtos não lhe são destinados, que cria portanto um sobreproduto social que abandona logo que for produzido e que pertence exclusivamente aos donos dos escravos. A semana de trabalho é aqui de sete dias, decomposta em duas partes: o trabalho de um dia, o domingo, constitui o trabalho necessário, o trabalho pelo qual o escravo obtém os produtos para o seu sustento, para se manter vivo a ele e à família; o trabalho de seis dias por semana constitui o trabalho excedente, cujos produtos revertem exclusivamente para os donos e servem para sustentá-los e enriquecê-los. Outro exemplo é o dos grandes domínios da alta Idade Média. As terras destes domínios estavam divididas em três partes: as comunas, a terra que permanecia propriedade coletiva, isto é, os bosques e as pradarias, os pântanos, etc.; as terras nas quais os servos trabalhavam para conseguir o seu sustento e o da família; e, finalmente, a terra em que o servo trabalhava para sustentar o senhor feudal. Em geral, a semana de trabalho é aqui de seis e não de sete dias, dividida em duas partes iguais: três dias por semana o servo trabalha na terra cujos produtos lhe são destinados; três dias por semana trabalha na terra do senhor feudal, sem qualquer remuneração, fornecendo trabalho gratuito à classe dominante. Podemos definir o produto destas duas diferentes espécies de trabalho por um termo também diferente. Quando o produtor realiza trabalho necessário, produz produto necessário. Quando realiza trabalho excedente, produz sobreproduto social. O sobreproduto social é, portanto, a parte da produção social que é produzida pela classe dos produtores, da qual a classe dominante se apropria sob várias formas, sejam sob a forma de produtos naturais, de mercadorias destinadas a serem vendidas ou ainda sob a forma de dinheiro. 6 A mais-valia é apenas a forma monetária do sobreproduto social. Quando é exclusivamente sobre a forma de dinheiro que a classe dominante se apropria da parte da produção de uma sociedade a que acima chamamos ―sobreproduto‖, já não falamos do sobreproduto, mas sim de ―mais-valia‖. Isto não é senão uma primeira tentativa de definição da mais-valia, à qual voltaremos em seguida. Qual é a origem do sobreproduto social? O sobreproduto social apresenta-se para nós como produto de apropriação gratuita — isto é, a apropriação sem ter em troca qualquer contrapartida em valor — de uma parte da produção da classe produtiva pela classe dominante. Quando o escravo trabalha seis dias por semana na plantação do dono, e todo o produto do trabalho é apropriado pelo proprietário sem qualquer remuneração, fornecido pelo escravo ao dono. Quando o servo trabalha três dias por semana na terra do senhor, a origem deste rendimento, deste sobreproduto social, é ainda o trabalho não remunerado, o trabalho gratuito fornecido pelo servo. Veremos em seguida que a origem da mais-valia capitalista, isto é, do rendimento da classe burguesa na sociedade capitalista é exatamente o mesmo: o trabalho não remunerado, o trabalho gratuito, o trabalho fornecido pelo proletário sem contra valor, pelo assalariado ao capitalista. 2. Mercadorias, valor de uso e valor de troca Eis então algumas definições de base que são os instrumentos com que trabalharemos ao longo dos três capítulos desta exposição. É necessário juntar-lhes, ainda, algumas: Todo o produto do trabalho humano deve ter, normalmente, uma utilidade, deve poder satisfazer uma necessidade humana. Portanto, todo o produto do trabalho humano possui um valor de uso. O termo ―valor de uso‖ será utilizado, no entanto, de duas maneiras diferentes. Falaremos do valor de uso de uma mercadoria e falaremos também dos valores de uso, diremos que nesta ou naquela sociedade não se produzem senão valores de uso, isto é, produtos exclusivamente destinados ao consumo direto daqueles que os apropriem (os produtores ou as classes dirigentes). Mas ao lado deste valor de uso, o produto do trabalho humano pode ter, também, um outro valor, um valor de troca. Pode ser produzido para consumo direto dos produtores ou das classes poderosas, mas para ser trocado no mercado, para ser 7 vendido. A massa dos produtos destinados a serem vendidos deixa de constituir uma simples produção de valores de uso, para ser uma produção de mercadorias. Uma mercadoria é, então, um produto que não foi criado com o fim de ser consumido diretamente, mas com o fim de ser trocado no mercado. Toda a mercadoria deve, portanto, ter, simultaneamente, um valor de uso e um valor de troca. Deve ter um valor de uso, pois se não o tivesse, ninguém compraria, pois só se compra uma mercadoria com o fim de a consumir, de satisfazer uma necessidade qualquer com a sua compra. Se uma mercadoria não possui valor de uso para ninguém, é invendável, terá sido produzida inutilmente e não terá valor de troca. Só tem valor de troca na medida em que é produzido numa sociedade baseada na troca, numa sociedade onde a troca é normalmente praticada. Haverá sociedades nas quais os produtos não têm valor de troca? Na base do valor de troca e, com tanto mais razão, do comércio e do mercado, encontra-se um grau determinado de divisão de trabalho. Para que os produtos não sejam imediatamente consumidos pelos produtores, é necessário que nem todos produzam o mesmo. Se numa coletividade determinada, não há divisão de trabalho, ou apenas existe divisão muito rudimentar, é manifesto que não há motivo para que a troca apareça. Normalmente, um produtor de trigo não tem nada para trocar com outro produtor de trigo. Mas, desde que haja produtos com um valor de uso diferente, a troca que pode estabelecer-se, a princípio ocasionalmente, pode em seguida generalizar-se. Começam, portanto, pouco a pouco, a aparecer ao lado de produtos criados com o simples fim de serem consumidos pelos seus produtores, outros destinados a serem trocados, as mercadorias. Na sociedade capitalista, a produção para o mercado, a produção de valores de troca, conhece a maior extensão. É a primeira sociedade da história humana na qual a maior parte da produção é composta de mercadorias. Não podemos dizer que toda a produção é uma produção de mercadorias. Há duas categorias de produtos que continuaram a ter valores de uso simplesmente. Em primeiro lugar, tudo o que é produzido para o autoconsumo dos camponeses, tudo o que é consumido nas fazendas que produzem os produtos. Encontramos a produção para autoconsumo dos agricultores mesmo nos países capitalistas mais avançados como os Estados Unidos, mas onde não constitui senão uma pequena parte da produção agrícola total. Quanto mais atrasada estiver a agricultura de um país, maior é em geral a fração da produção agrícola destinada ao autoconsumo, o 8 que cria grandes dificuldades para calcular de uma maneira precisa o rendimento nacional destes países. Uma segunda categoria de produtos que são ainda simples valores de uso e não mercadorias, em regime capitalista, é tudo o que é produzido nos trabalhos domésticos. Ainda que necessite do dispêndio de grande quantidade de trabalho, toda a produção de trabalhos domésticos constitui uma produção de valores de uso e não uma produção de mercadorias. Quando se faz a sopa ou quando se pregam botões, produz-se, mas não se produz para o mercado. A aparição, depois a regularização e a generalização da produção de mercadorias transformaram radicalmente o modo de trabalho dos homens e o modo como organizam a sociedade. (...) 3. A lei do valor Uma das conseqüências do aparecimento e da generalização progressiva da produção de mercadorias é que o próprio trabalho começa a se tornar uma coisa regular, uma coisa medida, quer dizer que o próprio trabalho deixa de ser uma atividade integrada nos ritmos da natureza, conforme os ritmos fisiológicos próprios do homem. Até ao séc. XIX e talvez mesmo até ao séc. XX, em certas regiões da Europa Ocidental, os camponeses não trabalhavam de maneira regular, não trabalhavam todos os meses do ano com a mesma intensidade. Em algumas épocas do ano, eles tinham um trabalho extremamente intenso. Mas, fora isto, havia grandes interrupções na atividade, nomeadamente durante o inverno. Quando a sociedade capitalista se desenvolveu, encontrou nesta parte mais atrasada da agricultura da maior parte dos países capitalistas, uma reserva de mão-de-obra particularmente interessante, isto é, uma mão-de-obra que ia trabalhar 06 ou 04meses por ano na fábrica e que podia trabalhar em troca de salários muito inferiores, visto que uma parte da sua subsistência era fornecida pela exploração agrícola que se mantinha. Quando se examinam explorações muito mais desenvolvidas, mais prósperas, estabelecidas, por exemplo, à volta das grandes cidades, isto é, explorações que estão efetivamente a industrializar-se, encontra-se um trabalho muito mais regular e um emprego de trabalho muito maior que se efetua regularmente ao longo de todo o ano e que elimina pouco a pouco os tempos mortos. Isto não é só verdadeiro da nossa época, 9 mas já era mesmo na Idade Média, digamos a partir do séc. XII: quanto mais próximo das cidades, isto é, dos mercados, mais o trabalho do camponês é um trabalho para o mercado, isto é, uma produção de mercadorias, e mais este trabalho é regularizado, mais ou menos permanente, como se fosse um trabalho dentro de uma empresa industrial. Noutros termos: quanto mais a produção de mercadorias se generaliza tanto mais o trabalho se regulariza, e mais a sociedade se organiza em torno de uma contabilidade fundamentada no trabalho. Se se examinar a divisão do trabalho já bastante avançada de uma comuna no início do desenvolvimento comercial e artesanal da Idade Média; se se examinarem coletividades de civilizações como a civilização bizantina, árabe, hindu, chinesa e japonesa, fica-se admirado em perceber sempre a existência de uma integração muito avançada entre a agricultura e diversas técnicas artesanais, de uma regularidade do trabalho tanto no campo como na cidade e que faz da contabilidade em trabalho, da contabilidade em horas de trabalho, o motor que regulamenta toda a atividade e a própria estrutura das coletividades. No capítulo relativo à lei do valor do ―Traité d'Économie Marxiste‖2, dei grande número de exemplos de uma contabilidade em horas de trabalho. Em certas aldeias indianas, uma determinada casta monopoliza o trabalho de ferreiro, mas continua simultaneamente a lavrar a terra para produzir os seus alimentos. Foi estabelecida a seguinte regra: quando o ferreiro fabrica um instrumento de trabalho ou uma arma para uma Comunidade agrícola, é esta Comunidade que lhe fornece as matérias-primas e, durante o tempo em que ele as trabalha para fabricar o instrumento, o camponês para quem ele produz trabalha na terra do ferreiro. Quer dizer, que há uma equivalência em horas de trabalho que regula as trocas de um modo perfeitamente claro. Nas aldeias japonesas da Idade Média, há dentro da comunidade da aldeia uma contabilidade em horas de trabalho no sentido exato do termo. Um habitante da aldeia tem uma espécie de livro grande em que registra as horas em que os diferentes aldeões trabalham reciprocamente nos campos uns dos outros, pois a produção agrícola é ainda largamente baseada sobre a cooperação do trabalho, e em geral a colheita, o cultivo e a criação de animais são feitas em comum. Calcula-se de maneira extremamente exata o número de horas de trabalho que os membros de uma família têm de fornecer aos membros de uma outra família. Deve haver, no fim do ano, um equilíbrio, isto é, os 2 Ernest Mandel, Traité d'Economie Marxiste, Juiliard, Paris, 1964. 10