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INDEPENDÊNCIA, PODER JUDICIÁRIO E MINISTÉRIO PÚBLICO PDF

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Fábio Kerche INDEPENDÊNCIA, PODER JUDICIÁRIO E MINISTÉRIO PÚBLICO Fábio Kerche* Os estudos acadêmicos sobre a questão da independência do Poder Judiciário e dos juízes, tanto do ponto de vista normativo quanto descritivo, são razoavelmente desenvolvidos. A produção é significativa e discute os dilemas e as dificuldades da existência de um Poder de Estado com altas doses de autonomia em regimes democráticos. Do ponto de vista da democracia, a questão é como atores pouco accountable convivem em um sistema baseado fundamentalmente no voto dos cidadãos. Em relação a esse debate, menor atenção é dada ao Ministério Público e aos promotores. Este ensaio bibliográfico analisa, sintetiza e reinterpreta parte da produção acadêmica sobre independência e suas tensões na democracia em relação ao Poder Judiciário e apresenta uma proposta de como estudar o mesmo tema em relação ao Ministério Público. Palavras-chave: Poder Judiciário. Ministério Público. Independência. Democracia. INTRODUÇÃO número de pesquisas sobre promotores2 é sig- nificativamente reduzido quando comparado Os estudos sobre o Poder Judiciário, de aos trabalhos sobre juízes. Esse menor interes- maneira geral, e sobre a questão da indepen- se acadêmico não é proporcional à importân- dência dos juízes, de maneira específica, tanto cia da instituição que seleciona boa parte do do ponto de vista normativo quanto descritivo, que será decidido pelo Poder Judiciário. Nas são razoavelmente desenvolvidos, embora em palavras de um ex-ministro da justiça, procu- número menor do que os relativos à “política rador-geral e ex-ministro da Suprema Corte stricto sensu”. Diversas pesquisas, em especial dos Estados Unidos, Robert Jackson, aquelas realizadas nas universidades norte-a- [O] promotor tem mais controle sobre a vida, liber- mericanas, discutem os dilemas e as dificulda- dade e reputação que qualquer outra pessoa nos 8 1 des da existência de um Poder de Estado com Estados Unidos. Sua discricionariedade é tremenda 20 altas doses de autonomia em regimes demo- [...] Com a legislação preenchida com grande va- z. e D cráticos. De uma forma ou outra, praticamente riedade de crimes, um promotor tem uma grande et./ chance de encontrar ao menos uma violação técnica S todos tocam na questão de como atores pouco de algum ato da parte de quase qualquer um. Neste 80, accountable convivem em um sistema baseado 5 caso, não é uma questão de descobrir a responsabi- 7- fundamMeenntoarlm aetennteç ãnoo év odtaod dao sà sc iadgaêdnãcoisa.s res- lqiudea doe ceomm eutmeu c, rai mqeu ees teãnot ãéo epsrcooclhuerar ru pme loh ohmomemem e 4, p. 56 ponsáveis pela ação penal nas democracias, procurar na legislação, ou colocar investigadores n. 8 que chamarei aqui de Ministério Público.1 O para trabalhar, para colar nele algum delito3 (Fleiss- 1, 3 ner, 1997-1998, p. 430-431). v. *1 Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro or, Rua: São Clemente, 134, Sala L, Botafogo. Cep: 22260 000. Enquanto, para o Poder Judiciário, é ad v Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil. fabio.kerche@rb. al gov.br; [email protected] S 1 “Ministério Público” é adotado, entre outros países, por 2m eInmdberpoesn ddoe nMteimniesntétrei od Peú boluitcroo sn anso dmeems ocartaricbiuasíd (opsr oacous- rH, França, Itália, Portugal e Brasil. No Canadá, a instituição é rador, district attorney etc.), tratarei todos os responsáveis C chamada de Public Prosecution Service e, na Inglaterra, de pela ação penal pelo título de promotor. o Crown Prosecution Service. Nos Estados Unidos, em nível rn federal, é o US Attorneys’ Office e, em nível local, District 3 Todas as citações em que não há uma versão em portu- de a Attorney’s Office (Cf. Fionda, 1995). guês foram traduzidas pelo autor deste texto. C 567 http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792018000300009 INDEPENDÊNCIA, PODER JUDICIÁRIO E MINISTÉRIO PÚBLICO possível apresentar uma discussão sobre a ticos atuam com vistas a agradar eleitores jus- questão da independência baseando-se quase tamente porque buscam votos para continuar exclusivamente na literatura especializada so- na atividade política. Por outro, o Judiciário é bre juízes e em instrumental teórico e empírico o Poder contramajoritário, cabendo aos juízes desenvolvido especificamente para entender o papel de garantidor de direitos individuais e as particularidades desse Poder, em relação ao da sociedade, geralmente previstos em docu- Ministério Público é necessário “emprestar” mentos como a constituição, mesmo que isso ferramentas dos estudos sobre o Judiciário, so- seja contrário a maiorias conjunturais. bre a burocracia e sobre os políticos. Deve-se Para que esse papel de guardião de di- parte disso à falta de consenso de que a inde- reitos seja efetivo, é bastante comum, na litera- pendência também é necessária para promo- tura, a prescrição, que sempre envolve alguma tores, pelo menos no mesmo grau do que se normatividade, de que é necessário um grau entende necessária para juízes. razoável de independência do Poder Judiciário A proposta deste ensaio bibliográfico é frente aos outros atores. “Judiciários indepen- dupla: primeiro, fazer uma síntese do debate so- dentes estão melhor situados que suas contra- bre a questão da independência nas democracias partes menos independentes para fazer valer em relação ao Poder Judiciário e, segundo, apre- [enforce] direitos constitucionais contrários sentar uma proposta de como estudar a mesma às maiorias populares e, dessa forma, corrigir questão em relação ao Ministério Público. injustiças detectadas” (Clark, 2011, p. 264). Assim, é um “consenso normativo” (Melton; Ginburg, 2014, p. 187), um “estereótipo nor- PODER JUDICIÁRIO E INDEPEN- mativo” (Maravall, 2003, p. 264) ou um “con- DÊNCIA ceito quase religioso” (Taylor, 2017, p. 5) que independência é necessária e essencial para A democracia não é somente o sistema que os juízes resolvam disputas (Cf. Shapiro, em que as decisões são tomadas, direta ou in- 2013). Mesmo que independência não seja um diretamente, pela maioria dos cidadãos. Nas “valor supremo” – já que também são impor- sociedades contemporâneas, a democracia tantes consistência, precisão, previsibilidade e também é o sistema em que certos direitos pre- rapidez das decisões –, é inegável que é “um cisam ser assegurados para indivíduos e mino- importante componente em muitas definições 8 1 0 rias, mesmo frente ao desejo de maiorias con- de qualidade da Justiça” (Melton; Ginburg, 2 z. junturais. Em outras palavras, a democracia 2014, p. 190). e D et./ contemporânea é, na verdade, o encontro de A definição de independência tem pe- S 0, duas tradições que nascem separadamente na quenas variações de amplitude, embora todas 8 5 história e que se relacionam de maneira com- digam respeito a atores externos à instituição 7- 56 plexa e desigual entre os países que vivem sob e “conexões – ou, mais precisamente, ausên- 4, p. seus princípios: a democracia, com sua lógica cia de certas conexões” (Russell, 2001, p. 2). 8 n. majoritária, e o liberalismo político, calcado O Poder Judiciário é independente quando 1, em direitos (Cf. Bobbio, 1988). detém a “habilidade para tomar decisões que 3 v. A organização dos Estados democrático- não são afetadas por pressão política de fora do r, o d -liberais reflete essas duas tradições. Por um Judiciário” (Clark, 2011, p. 5), quando “decide a v al lado, os Poderes Executivo e Legislativo ba- casos à luz da lei sem considerar as indevidas S H, seiam sua atuação primordialmente nos pro- opiniões de outros atores governamentais” r C cedimentos majoritários. Não somente porque (Melton; Ginburg, 2014, p. 190), ou quando o n r decisões são tomadas por maioria no parla- “decisões judiciais não podem ser anuladas e d Ca mento, como pelo axioma de que todos os polí- por legislação retroativa ou por recursos para 568 Fábio Kerche o parlamento ou o governo” (Maravall, 2003, texto legal significa, em algum grau, em algum mo- p. 266).4 mento, e sob algumas circunstâncias, fazem a lei. Se juízes fazem a lei, eles não devem ser independen- Mas não é somente o Poder Judiciário tes de forma absoluta. Eles devem ser accountable como um todo que deveria ser protegido de por alguém (Shapiro, 2013, p. 253-254). ingerências externas de outras instituições ou grupos (Cf. Ferejohn, 1999). O juiz, para exer- Há um razoável grau de concordância cer seu dever público, deve ser “independente de que existe uma tensão, uma “dificuldade de consideração venal ou ideológica” (Fere- contramajoritária” (Bickel, 1986, p. 16) entre john, 1999, p. 353). Isso seria facilitado quan- os princípios liberais, representados pelo Ju- do o juiz é protegido por instrumentos como diciário, e a democracia, que prevê que atores inamovibilidade, não redução de salários, es- com discricionariedade sejam accountable, tabilidade etc.5 A questão, não totalmente re- uma “premissa fundamental da democracia li- solvida, é se a independência de jure, prevista beral” (Seidman, 1987-1988, p. 1571). Na ver- constitucionalmente, reforça ou garante a in- dade, “a realidade essencial [é] que a revisão dependência de facto.6 judicial é uma instituição desviante na demo- Se o pressuposto madisoniano de que cracia norte-americana” (Bickel, 1986, p. 18), os homens não são anjos é aceito de maneira mas não somente nesse país. “Quis custodiet geral pelos teóricos da democracia, os juízes ipsos custodies [quem guarda os guardiões] é independentes serem protegidos da accoun- o ponto fraco no papel atribuído ao rule of law tability dos cidadãos é uma ponta que não se na teoria democrática liberal” (Maravall, 2003, encaixa facilmente no modelo de democracia p. 266). E a questão fica mais delicada quan- contemporânea, podendo ser descrita como to mais alto é o tribunal em análise, em espe- um “paradoxo da independência – accountabi- cial para casos de revisão constitucional (Cf. lity” (Shapiro, 2013, p. 264):7 Shapiro, 2013). Isso porque “[...] constituições tendem a ser ainda mais genericamente escri- Independência judicial é tanto um problema quanto tas que leis ordinárias, juízes comprometidos uma solução. A principal tarefa dos juízes é resolver com a interpretação constitucional têm maior disputas. Independência é essencial para o suces- probabilidade de exercer grandes poderes para so dessa missão. Juízes, entretanto, não apenas re- solvem disputas. Tribunais judiciais são ‘tribunais fazer leis” (Shapiro, 2013, p. 258). Por isso, nos da lei’ que resolvem disputas de acordo com a lei. tribunais responsáveis primordialmente pelo 8 Quaisquer intérpretes da lei ou que digam o que um controle constitucional, em que os juízes são 01 2 4 Taylor inclui também variáveis internas para a indepen- apenas accountable por meio de impeachment ez. D dlaêçnãcoi aa. Sateogruens ddoe efloer,a h dá oa P“oinddeer pJeunddicêinácriiao ;e ax t“earuntao”n, oemm irae”-, e que legisladores somente podem corrigir as et./ rpeelnatdiêvna cài al iibnetredrandae” , a“dom girnaiust rcaotmiv aq duoe Jcuaddiac ijáuriizo ;i ne dai v“iindudea-l decisões desses juízes por meio de mudanças 0, S ou tribunais de instâncias baixas podem ficar constrangidos baseadas em maiorias qualificadas e em longos 58 pela revisão dos altos tribunais” (Cf. Taylor, 2017, p. 1). 7- processos legislativos, a “accountability parece 6 5 5 Melton e Ginburg buscam identificar se a independência ser muito fraca” (Shapiro, 2013, p. 268). p. de jure, prevista na lei, reforça a independência de facto, 4, ndêan pcriaá tjiucad.i c“iNalo dsseo fsa crteos uplotaddeo ss esr uignecrreemm eqnutaed aa sine dpeapíesnes- Os instrumentos institucionais que ga- n. 8 adotarem procedimentos de seleção e de remoção que rantem autonomia aos juízes são, entre outros, 1, iGnisnubluemrg , o2s0 1ju4í,z pe.s 2d1e0 )o. utros Poderes do Estado” (Melton; a constitucionalização das garantias do Poder r, v. 3 6 Vários trabalhos buscam medir a independência de facto Judiciário (dificultando mudanças da legisla- do a nas democracias. O mais conhecido é o grande levanta- v mento feito por Linzer e Staton (2015). ção pelo parlamento), a estabilidade no traba- Sal 7 Independência é sempre uma questão delicada para a te- lho, a proteção em relação a remoções e salá- H, r oria democrática, não somente em relação ao Poder Judici- rios (Cf. Melton; Ginburg, 2014). Em suma, são C ário. Bancos Centrais independentes, agências reguladoras, o burocracia, Mistério Público (que será visto na segunda parte “garantias corporativas” (Maravall, 2003, p. rn deste ensaio bibliográfico) etc. são instituições em que os di- de lemas da accountability e da democracia também ocorrem. 268). Esses instrumentos insulariam os juízes Ca 569 INDEPENDÊNCIA, PODER JUDICIÁRIO E MINISTÉRIO PÚBLICO e garantiriam que eles não ficariam submeti- A solução teórica para justificar a ques- dos aos desejos dos políticos ou das maiorias tão da independência, contudo, passa, de al- conjunturais. guma forma, pela sempre lembrada afirmação Existem três tipos de explicações para a de que o Judiciário é o Poder “menos perigo- independência do Poder Judiciário, pelo me- so para os direitos políticos da constituição”, nos nos Estados Unidos, e todas elas possuem como escreveu Hamilton no texto Federalista suas limitações (Cf. Seidman, 1987- 1988). A n. 78 (Madison; Hamilton; Jay, [1788] 1993, p. primeira tentativa seria a explicação “origina- 479). Ou seja, a independência, na democra- lista”, em que a independência seria um subs- cia liberal, somente faz sentido se vier acom- tituto da accountability, porque se sustenta no panhada da ideia de que a autonomia não é texto constitucional que expressa o desejo dos contrária à própria democracia, porque os ju- “pais fundadores” e somente isso bastaria para ízes “não têm, estritamente, força nem vonta- legitimar as decisões judiciais e limitar o pa- de, mas tão somente julgamento, estando, em pel dos juízes. Embora não seja exatamente a última instância, na dependência do auxílio mesma abordagem, é bastante semelhante ao do braço executivo até para a eficácia de seus que Ferejohn (1999) chama de explicação “his- julgamentos” (Madison; Hamilton; Jay, [1788] tórica”. Segundo ele, o Poder Judiciário é inde- 1993, p. 479). Ou, dito de outro modo, pendente porque na sua criação essa solução Já que os teóricos liberais tratam a democracia como respondia a “conflitos políticos específicos” axiomática, há uma tendência natural para tentar (Ferejohn, 1999, p. 376). O problema, óbvio, é demonstrar que as decisões judiciais são, em al- que, sem a accountability, não há garantias de gum sentido, compatíveis com a democracia. Mas, que os juízes respeitarão a constituição. na medida em que esse esforço é bem-sucedido, ele A segunda explicação seria a “teoria marginaliza a importância do Judiciário e rebaixa o argumento que é crucial para nosso sistema de go- baseada em direitos”, uma espécie de comple- verno (Seidman, 1987-1988, p. 1573). mentação normativa à teoria originalista. Nes- sa explicação de tipo contratualista, a indepen- Assim, a independência do Poder Judici- dência é a melhor opção, porque seria aquela ário seria justificada porque ele é frágil relati- escolhida por participantes desinteressados vamente aos outros Poderes – esses, sim, fortes da comunidade. Por essa explicação, “juízes, e que precisam ser limitados pela vigília dos livres das obrigações políticas, poderiam ser eleitores e dos próprios juízes. Ao serem frágeis 8 1 0 objetivos e desinteressados. Mas, certamente, e dependentes, a necessidade da accountability 2 z. a conclusão oposta é igualmente plausível” para o Poder Judiciário seria menos eminente. e D et./ (Seidman, 1987-1988, p. 1581). A questão é que não é mais verdade que S 0, E, finalmente, existe a explicação da “te- o poder de julgar é “invisível e nulo” (Montes- 8 5 oria majoritária”, em que a independência do quieu, [1748] 1973, p. 157) nas democracias 7- 56 Poder Judiciário é justificada porque a maioria contemporâneas. Entre outras coisas, porque, 4, p. prefere que certas questões, como as relativas ao interpretar as leis, um juiz “faz lei” (Shapi- 8 n. à constituição, sejam decididas pelo Poder Ju- ro, 2013, p. 254). Depois, porque os políticos 1, diciário. “Este argumento confunde o exem- levam em consideração os tribunais em suas 3 r, v. plo da delegação com o exemplo da ausência estratégias (Cf. Maravall, 2003). Além disso, o d da accountability” (Seidman, 1987-1988, p. a v al 1586). Ou, para usar outros termos, confunde McCubbins; Noble, 1995). Caso haja algum tipo de con- S H, “abdicação” com o que seria um caso para “de- tinroslter uomrçeanmtoe nintásrtiiotu ec io(onua)l oqsu ep ogleírteic ionsc menatnivteons hpaamra adlegtuemr- r C legação”.8 minados comportamentos por parte dos atores não eleitos, o mesmo que indiretos, a relação não poderia ser classifi- rn cada como uma abdicação. Essa definição, entretanto, é de 8 Nem toda a delegação de tarefas e poderes dos políti- muito extrema e não capta fenômenos intermediários (Cf. a C cos para uma instituição não eleita é uma abdicação (Cf. Kerche, 2009). 570 Fábio Kerche “os grupos de interesse procuram o local ins- pelos menos na democracia norte-americana, titucional mais favorável para contestar políti- e muito possivelmente para os demais países cas públicas (venu-seeking)” (Taylor, 2007, p. democráticos, a dependência do Judiciário em 234) e o Poder Judiciário é, muitas vezes, uma relação “aos Poderes políticos não é um aci- das arenas escolhidas. A independência, na dente constitucional” (Ferejohn, 1999, p. 362). verdade, é melhor representada por um conti- Esses limites à independência são apre- nuum com diversas gradações. Num extremo, sentados pela literatura ora por instrumentos o Judiciário subserviente, totalmente subordi- institucionais previstos em legislação e contro- nado à pressão política; no outro, juízes im- lados por atores externos ao Poder Judiciário, periais, completamente distantes de qualquer aqueles típicos procurados por institucionalis- constrangimento externo ao Poder Judiciário tas de escolha racional; ora por constrangimen- (Cf. Clark, 2011; Seidman, 1987-1988).9 O tos sociais ou “instituições informais” (Taylor, ponto em que se encontra o Poder Judiciário, 2017, p. 3), importantes para a análise do ins- contudo, não é único, variando de país para titucionalismo sociológico; e ora por questões país, em momentos históricos diversos10 e, in- históricas, uma espécie de path dependence do clusive, entre instâncias de um mesmo sistema institucionalismo histórico. de justiça. A dificuldade da análise não se en- Em relação aos instrumentos institucio- contra nos extremos, mas na “área cinzenta” nais formais que limitam a independência dos (Clark, 2011, p. 7). juízes e geram alguma forma de accountability, Para além da normatividade, é fato que, a literatura aponta para aqueles situados nas nas democracias contemporâneas, os juízes e o mãos dos políticos, como a indicação de juízes Poder Judiciário não são totalmente indepen- (Cf. Ferejohn, 1999), o impeachment, outras dentes – embora alguns insistam que, se um formas de remoção e renovação de mandatos princípio não pode ser atingido, não deve ser (Cf. Seidman, 1987-1988), a possibilidade de abandonado (Cf. Russell, 2001). Assim como mudança na legislação (Cf. Clark, 2011), a não existe algo que seja a perfeita accounta- execução (enforcement) da decisão do juiz ser bility, porque sempre há espaço para o agent realizada pelo governo (Cf. Seidman, 1987- agir sem o controle do principal,11 “é similar- 1988) etc. Em outras palavras, juízes que têm mente impossível conceber um sistema que estabilidade podem ser accountable “se nós faça juízes completamente não accountable” restringirmos seus poderes” (Seidman, 1987- 8 1 (Seidman, 1987-1988, p. 1576).12 Na verdade, 1988, p. 1575). Todas essas seriam ferramentas 0 2 9 Segundo Maravall (2003), quanto maior a independên- que os políticos, e indiretamente a sociedade, ez. D cpiaar,t imciepnaorr d oa rpisoclíot ipcaar.a um juiz que tem suas preferências detêm para estimular certos comportamentos et./ S 10 Com as democratizações mais recentes, como na Améri- e desestimular outros no Poder Judiciário. Os 0, ca Latina, houve uma aproximação dos modelos da “civil juízes, por saberem disso, balizariam suas de- 58 law” com a “common law” do ponto de vista do uso polí- 7- tico do Poder Judiciário. Essa mimese, contudo, não teria cisões de forma a buscar evitar o uso desses 56 staidboil iatyc opmolpítaincah asdoab rdee o us mju íazuems e(Cnft.o M exaprarvesaslli,v 2o0 d0a3 )a. ccoun- instrumentos por atores externos, com vistas a 4, p. 8 11 O principal é aquele que delega ao agent uma tarefa. O não serem prejudicados, por exemplo, em suas n. exemplo citado por Przeworski (1998a) para ilustrar o mo- carreiras. Esse tipo de abordagem, chamada de 1, delo é quando se leva um carro para a oficina. O mecânico 3 é o agent e o dono do carro é o principal. O ponto é como “separação de Poderes”, mostra que, em algu- v. incentivar que o agent aja no sentido desejado pelo prin- r, o cipal (que o carro seja bem e rapidamente consertado, que mas situações, a decisão tomada pelos juízes d a o preço seja baixo, que ele use peças novas etc.) sem que v o proprietário acompanhe todo o serviço e não conheça é diferente da opção original do Poder Judici- Sal nada sobre mecânica de automóveis. Isso se aplica tam- ário, justamente pela influência de atores ex- H, bém para político e burocratas, eleitores e políticos. r ternos (Cf. Clark, 2011). “O resultado é que a C 12 A accountability é entendida aqui como prestação de con- o tas e capacidade de premiação ou punição por atores exter- independência judicial é a consequência da rn nos à instituição. Controles internos, como corregedorias ou de hierarquia, não são instrumentos de accountability político. interação entre as preferências do Judiciário e Ca 571 INDEPENDÊNCIA, PODER JUDICIÁRIO E MINISTÉRIO PÚBLICO dos outros Poderes do Estado” (Taylor, 2017, p. estar ocorrendo uma perda de apoio popular é 8). Em termos do neoinstitucionalismo de es- a introdução de projetos de lei, no Congresso, colha racional, é dizer que os agents (juízes) se contrários aos interesses e ao insulamento do adiantam aos desejos do principal (políticos), Poder Judiciário. Os políticos, buscando agra- buscando não ser punidos. dar seus eleitores descontentes com os juízes, Enquanto os instrumentos acima são tí- ameaçariam o Poder Judiciário com mudanças picos da accountability horizontal, nos Estados na legislação para frear o ímpeto dos juízes, o Unidos, grande parte dos juízes, e justamente que é chamado de “legislação moderadora da aqueles que decidem a maioria dos casos le- corte” [“court-curbing legislation”] pelo autor. vados à justiça, são eleitos diretamente pelos “Pesquisa mostra que quando o apoio popular cidadãos, em um instrumento típico da accou- para a [Suprema] Corte diminui, o público vai ntability vertical. No ano de 1994, 70,5% dos aumentando o apoio para os esforços de san- juízes estaduais foram eleitos em processos ções políticas que limitem os poderes formais baseados em partidos ou candidaturas avulsas da Corte” (Clark, 2011, p. 67).13 (Maravall, 2003). Isso pode ser apontado como No campo das instituições informais, a o inverso do clássico problema que envolve literatura aponta que a “ideologia” (Cf. Clark, democracia e Poder Judiciário: no lugar da “di- 2011), o “ideal da lei” (Maravall, 2003, p. 267), ficuldade contramajoritária”, teríamos a “difi- o “desejo de ser prezado e admirado” (Burbank; culdade majoritária”. A questão passa a ser Goldberg, 2002, p. 5), a “vida em comunida- de”, a “autoimagem” (Cf. Burbank; Friedman, como juízes eleitos/accountable podem ser justifica- 2002), a “classe social” e questões relativas à dos em um regime comprometido com o constitu- “moral” (Cf. Ferejohn, 1999) seriam elementos cionalismo. […] Juízes que protegem a minoria con- trária às vontades da maioria, por exemplo, podem que serviriam de estímulo para certos compor- ser derrotados na próxima eleição e substituídos por tamentos de juízes e desestimulariam outros, juízes mais sintonizados com a vontade majoritária limitando, nesse sentido, a total independên- (Croley, 1995, p. 694). cia do Poder Judiciário. “De fato, uma vez que Portanto, a opinião pública norte-ameri- o salário e a estabilidade no emprego estão cana, por via direta, e não somente os políti- garantidos, ironicamente a porta está aberta cos, detém instrumentos que limitariam a in- para muitos outros fatores para influenciar o dependência dos juízes, modelo que também comportamento judicial” (Burbank; Friedman, 8 1 0 apresenta desafios à democracia liberal. 2002, p. 27). Assim, para além dos instrumen- 2 z. Mesmo nos países que não adotam elei- tos institucionais formais e localizáveis na le- e D et./ ções como método de seleção dos integrantes gislação, existiriam outros, como S 80, do Poder Judiciário, a opinião pública é um [...] prêmios e penalizações que assumem um cará- 5 ator que entraria, de forma indireta, no cál- 7- ter mais social do que monetário. A responsabilida- 4, p. 56 ccuidlaod pãoolsí tiecsotã doo ps rjeusíezneste, sju nstoa mcáelnctuel op oerlqeuiteo roasl dsies tpermoafi sdsei opnrainl ceínpfiaotsiz (aédtiac,a e) min tbeoran amliezdadidoas, dpuorra unmte 8 n. dos políticos. No modelo chamado de “auto- o processo de educação e reforçados, em alguma 1, contenção condicional” [conditional self-res- medida, por punições formais e, mais amplamente, 3 v. traint], elaborado por Clark (2011) para pensar por reputações (Arrow, 1985, p. 50). r, o ad as instâncias superiores do Poder Judiciário, a É importante destacar, contudo, que, se v al Corte precisa do apoio da opinião pública para os instrumentos não formais fossem suficien- S H, se legitimar. Essa legitimidade, ou a “reserva de tes para limitar e moldar comportamentos dos r C boa vontade” (Clark, 2011, p. 67), permite que, o 13 O outro modelo apresentado pela literatura é o “atitudi- rn em alguns momentos, a Corte tome decisões nal”, em que os juízes levariam em conta, para a tomada de de decisão, somente sua própria ideologia (Cf. Clark, 2011; Ca impopulares. Um dos indicadores de que pode Gilman; Clayton, 1999). 572 Fábio Kerche atores estatais nas democracias, não haveria revisão constitucional. O direito de selecionar necessidade de outras formas de controle e, no o que será discutido no âmbito judicial é ex- limite, do próprio processo eleitoral. Levada tremamente importante. Como afirma William essa lógica ao extremo, a democracia funciona- West, citando Kenneth Davis, “geralmente as ria numa espécie de “piloto-automático”, para mais importantes decisões discricionárias são pegar emprestada a expressão de Sutherland as negativas, como não iniciar, não investigar, (1993). Na verdade, as instituições informais não processar, não entrar em acordo, e as deci- somente fazem sentido quando entendidas sões negativas geralmente significam uma dis- como um complemento das instituições for- posição definitiva” (West, 1995, p. 25). mais, aquelas buscadas pelos neoinstitutiona- Em suma, não cabe ao Poder Judiciário, listas de escolha racional. com algumas exceções, escolher quais os as- Outra abordagem é aquela, já descrita suntos que serão decididos pelos – se não to- neste ensaio bibliográfico, que entende que a talmente independentes, bastante autônomos independência do Poder Judiciário e seus li- – juízes. De certa forma, portanto, são os Po- mites são marcados pelas escolhas originais deres políticos que controlam as duas pontas dos “pais fundadores”, ou, em outros termos, do processo judicial: a entrada, selecionando por uma “path dependency”: “A ideia básica, e o que merece a análise dos juízes, e a saída, enganosamente simples, é que escolhas políti- já que cabe especialmente ao Poder Executivo cas [policy] feitas quando uma instituição está fazer com que as decisões do Judiciário sejam sendo formada, ou quando a política pública cumpridas. O instrumento da seleção dos ca- é iniciada, terá uma influência contínua e, em sos apresentados ao Poder Judiciário, relati- grande parte, determinante sobre a política no vamente pouco lembrado, tem consequências futuro” (Peters, 2012, p. 70). As raízes históri- para o tema de sua independência. cas e a tradição, pensadas também como insti- tuições, moldam comportamentos e, portanto, também limitam a independência dos juízes. MINISTÉRIO PÚBLICO E INDE- Se a independência do Poder Judiciário PENDÊNCIA é limitada em diferentes graus por instrumen- tos institucionais formais e informais, além das Os Estados possuem um órgão encarre- escolhas feitas no passado, há um mecanismo gado da ação penal, não deixando a missão de 8 1 que, se não restringe a independência, limita processar criminalmente um cidadão na mão 0 2 que um ator pouco accountable tenha total de particulares. Geralmente, essa é uma tarefa z. e D autonomia para se posicionar sobre qualquer desempenhada por promotores, mas até a po- et./ S assunto, a qualquer momento. Refiro-me à ne- lícia já foi encarregada de apresentar matérias 0, 8 cessidade de que um ator externo provoque penais para os tribunais em algumas demo- 5 7- um juiz para arbitrar sobre uma questão, já que cracias (Cf. Fionda, 1995; Tonry, 2012). Além 56 o Poder Judiciário, com raras exceções, como de poder selecionar os casos que irão ser jul- 4, p. 8 os juízes de instrução na França, geralmente gados pelo Poder Judiciário e negociar penas n. só age quando acionado por um terceiro. Esse com réus,14 os responsáveis pela ação penal 1, 3 mecanismo permite que o Poder Executivo e, também participam da construção da sentença v. r, o em parte, também o Legislativo, controle uma [sentencing] “por meio da decisão das acusa- d a v porção substancial dos atores encarregados de ções do indiciamento, tipo de julgamento e as- al S romper a inércia do Judiciário (promotores e sim por diante” (Fionda, 1995, p. 1). H, r advogados do governo, por exemplo), assim C o como exerça um controle sobre a ação penal 14 Nos Estados Unidos, por exemplo, 95% das penas são rn resultados de negociação (plea bargain) entre o promotor e de e de parcela expressiva das matérias sujeitas à o advogado de defesa (Cf. Tonry, 2012). Ca 573 INDEPENDÊNCIA, PODER JUDICIÁRIO E MINISTÉRIO PÚBLICO Diferentemente do Poder Judiciário, a essencialmente executiva, antes que judicial, e por- organização da agência responsável pela ação que esses recursos são públicos e voltado para os interesses públicos, eles são essencialmente políti- penal varia significativamente de país para cos. Esse é o motivo que os sistemas de common law país. “Polícia, tribunais e sistema correcional usam na eleição ou indicação política para promo- são muito parecidos em todos os países de- tores (Shapiro, 2013, p. 255). senvolvidos, mas promotorias diferem radi- Por ser, portanto, uma atividade executi- calmente” (Tonry, 2012, p. 1). Mesmo a forma va, na maioria dos países, o Ministério Público como são chamados os seus integrantes e a de- é ligado ao governo, embora o grau dessa liga- nominação do órgão, nos diferentes países de- ção varie entre as democracias. Dessa forma, mocráticos, são diversos, e utilizar promotores o debate sobre a questão da independência e Ministério Público para todos é somente uma do Ministério Público permite que se utilize “questão de conveniência”, para esse autor. o mesmo instrumental acionado para o estu- O Ministério Público e o Poder Judiciá- do das burocracias de maneira geral. Promo- rio, embora façam parte do sistema de justiça tores, diferentemente de juízes, são burocratas e, em alguns casos, sejam formalmente parte do mesmo Poder de Estado,15 têm atribuições mais ou menos insulados, a serviço de gover- nos eleitos. E, por ser um órgão de governo, diversas. A simples transposição da prescrição são os políticos que decidem as prioridades da normativa da necessidade de independência instituição e são accountable politicamente, dos juízes para os promotores, como facilmen- em última instância, por essas decisões. É do te se identifica nos debates no Brasil, é equivo- interesse do governo, portanto, que os promo- cada. Atribuições diferentes (investigar, julgar, tores desempenhem bem suas atribuições com acusar etc.) demandam graus de independên- vistas a agradar seus eleitores. Esse modelo, cia diversos, embora o paradoxo independên- obviamente, também apresenta vantagens e cia-accountability – que, na verdade, pode ser desvantagens. Mesmo se referindo ao caso do atribuído para boa parte dos órgãos públicos Ministério Público Federal dos Estados Unidos – também esteja presente para o Ministério Pú- [U.S. Attorney’s Office], Fleissner sintetiza al- blico (Cf. Shapiro, 2013). guns dos dilemas: Diferentemente do Poder Judiciário, o Ministério Público não é inerte, sendo os pro- Se o poder é investido no Procurador-Geral [Attor- motores os atores privilegiados para provocar ney General], há o risco que o poder seja abusivo 8 1 0 os juízes, por poderem escolher as matérias quando a administração [o próprio governo] inves- 2 z. que serão judicializadas. Esse papel de selecio- tigar alegações contra o presidente ou outro funcio- e Set./D nar e priorizar é típico da atividade executiva: ntráarçiãoo d ree caelbtoe re uscma ltãroa.t aEmsteen rtios cfaov eonrávvoelvl ed oa pardommiontiosr- 80, O trabalho da promotoria envolve prioridades e que trabalha em um conflito de interesses. Por outro 5 7- alocação de recursos limitados de forma a otimizar, lado, se o poder é investido em um promotor inde- 6 p. 5 mas não alcançar plenamente, objetivos públicos ou pendente, há o risco de que o poder seja abusado 4, políticas públicas. Portanto, a decisão de se proces- por um promotor excessivamente agressivo, que não n. 8 sar não é totalmente, ou somente, judicial, mas é, presta contas e possivelmente [seja] politicamente 1, em algum grau, executiva. Baseia-se não apenas na motivado. Este risco envolve o uso inapropriado por 3 v. percepção de culpa ou inocência do acusado, mas um promotor não accountable do poder de investi- or, na importância relativa para atingir o controle da gar e indiciar (Fleissner, 1987-1988, p. 428). d a criminalidade buscando uma acusação em parti- v Sal cular em detrimento de outras. Como uma decisão Por outro lado, a atuação dos promotores H, relativa à alocação de recursos organizacionais é “garante a passividade do sistema judicial, isto r C é, a falta de iniciativa do Judiciário [self star], o 15 Os promotores da Suécia, Itália e França são integrantes rn do Poder Judiciário e suas posições são cambiáveis com as permitindo que o ambiente político regule, em de dos juízes. Ou seja, um mesmo indivíduo pode ser juiz e Ca promotor ao longo de sua carreira (Cf. Tonry, 2012). alguma medida, as demandas para que o Judi- 574 Fábio Kerche ciário atue” (Guarnieri, 1995, p. 244). Dito de ter a chance de observar coisas que os princi- outra forma, o governo eleito, em última ins- pals não podem ver” (Przeworski, 1998b, p. 45). tância, filtra e seleciona os casos que devem ser Suas atividades exigem um conhecimento espe- decididos por juízes não accountable, servindo cializado e tempo para se dedicar, além de que, de “guardião”, ou “porteiro” [gatekeeper], do Po- em algumas situações, o “agent tem incentivos der Judiciário (Cf. Aaken; Feld; Voigt, 2010). Se para usar essas informações estrategicamente os juízes não podem ser facilmente responsa- ou simplesmente mantê-las escondidas [...]” bilizados por suas decisões, o governo, por sua (Kiewiet; McCubbins, 1991, p. 25). vez, é responsável pelo fluxo de ações criminais Do ponto de vista democrático, é impor- que chegam ao Judiciário e é accountable pelas tante identificar se há e quais são os instru- decisões tomadas em relação às escolhas que mentos institucionais de que o governo dispõe orientam a atuação dos promotores. para incentivar determinadas ações e desesti- Em suma, o governo é o principal e os mular outras. Afinal, mesmo quando “[...] por promotores são os agents, com todos os proble- uma feliz coincidência, burocratas [leia-se mas típicos dessa relação. O principal delega ao promotores] agem no sentido que os cidadãos agent parte importante da execução da política desejam que eles ajam, a burocracia pode pare- criminal do país. “Como é impossível formular cer não ser um problema tão grande, mas não leis que especifiquem todas as ações dos agents está sob controle democrático” (Gruber, 1987, sob todas as contingências, as agências execu- p. 12). Isso porque tivas e administrativas conservam um espaço Controle deveria ocorrer por meio de um processo considerável de autonomia para decidir” (Pr- de reações antecipadas. Se os burocratas antecipas- zeworski, 1998b, p. 53, destaque do autor). sem com precisão o que os cidadãos gostariam que Aos moldes de outras delegações para fosse feito, e então se sentissem constrangidos a agir burocracias – delegações que são inevitáveis baseados nesta antecipação, uma forma de controle por conta da grande quantidade de funções do democrático teria ocorrido. Mas, se os burocratas estiverem errados na sua antecipação e agirem em Estado (Cf. Przeworski, 1998a) e mesmo dese- um sentido em que os cidadãos e o Legislativo não jáveis (Cf. Kiewiet; McCubbins, 1991) –, há, na aprovem, não se pode dizer que suas ações foram relação entre governo e Ministério Público, o controladas pelos cidadãos (Gruber, 1987, p. 12-13). tradicional problema do “conflito de interes- ses” e da “assimetria de informações”. O con- A tarefa não é tão simples, porque parte 8 flito se dá quando os interesses dos promotores desses instrumentos não é facilmente identi- 01 2 não são coincidentes com os dos políticos que ficável e pode não ser formal, sendo constitu- z. e fazem parte do governo. Promotores, assim ída mais de constrangimentos sociais do que et./D como burocratas, podem ter preferências po- incentivos financeiros (Cf. Arrow, 1985). Além 0, S líticas diversas do principal: priorizar estraté- disso, o fato de o principal não lançar mão de 58 7- gias individualistas para a construção de suas punições constantemente não significa que 56 carreiras (Cf. Goodin, 1996), buscar maximizar não haja um acompanhamento das atividades 4, p. sua autonomia, prestar favores clientelistas do agent, mas pode indicar que ele tão somen- n. 8 para amigos (Cf. Przeworski, 1998a), trabalhar te se adiantou aos desejos de seu principal para 1, 3 menos tempo, aumentar o orçamento ou até evitar punições. Em outras palavras, um dos v. r, enriquecer (Cf. Przeworski, 1998b). desafios do pesquisador é identificar se houve do a O clássico problema da assimetria de in- uma “delegação” ou uma “abdicação”. alv S formações, já apontado por Weber ([1919] 2014) Além desse “modelo burocrático” de Mi- H, r quando de seus estudos sobre a burocracia, se nistério Público, existem, pelo menos, outros C o dá porque os promotores detêm expertise e in- dois que podem ser analisados sob a perspec- rn e formações que o principal não possui e “podem tiva da independência. Um é o “modelo elei- Cad 575 INDEPENDÊNCIA, PODER JUDICIÁRIO E MINISTÉRIO PÚBLICO toral” adotado nos Estados Unidos em âmbito com as mesmas ferramentas da relação entre local, e o outro é o “modelo independente”, en- políticos e burocratas, aqui se empresta o ins- contrado na Itália e no Brasil, que assegura al- trumental das análises voltadas para a relação tas doses de autonomia para seus promotores. entre eleitores e políticos, a chamada accoun- Nos estados Unidos, em âmbito local, tability vertical, em que o principal é o eleitor. 45 dos 50 estados escolhem seus promotores, Esse modelo tem consequências no sis- geralmente chamados de district attorney, por tema judicial. “Os promotores americanos, al- meio de eleições diretas. Até os “Secretários de gumas vezes de forma aberta e sem constran- Justiça [State attorneys general], mesmo não gimento, levam em conta as reações da mídia, sendo considerados promotores no sentido a opinião pública e as razões políticas quando tradicional, também são funcionários eleitos” decidem a que casos irão dar prosseguimento e (Worrall, 2008, p. 4). Assim, o promotor é inde- como lidarão com eles” (Tonry, 2012, p. 2). Em pendente em relação ao governo, mas accoun- anos eleitorais, os promotores são mais puniti- table em relação aos eleitores. O promotor lo- vos, levam mais casos ao júri e dão preferência cal é o chefe do escritório formado também por para os processos de maior repercussão do que funcionários não eleitos. Nesse caso, o princi- nos anos sem eleições (Cf. Tonry, 2012). Ou pal é o promotor eleito, e os agents são os pro- seja, se o modelo tem a vantagem da accounta- motores subordinados e outros funcionários. bility direta por parte dos cidadãos, por outro, Se, para os juízes, há uma dificuldade de a utilização de critérios não judiciais é estimu- se descobrir o que os move16 e para o modelo lada pela lógica da disputa partidária eleitoral. burocrático de Ministério Público, como vimos O modelo independente,18 adotado na acima, os interesses podem ser diversos, no caso Itália e no Brasil, assegura autonomia interna e do modelo eleitoral, aplica-se o axioma da Ciên- externa aos promotores, à semelhança daquela cia Política: políticos, assim como promotores prevista para os juízes do Poder Judiciário. No locais norte-americanos querem permanecer no caso italiano, inclusive, promotores e juízes fa- poder, e, na democracia, é necessário ser eleito zem parte da mesma carreira e do mesmo Po- para alcançar esse objetivo. E é aos eleitores que der de Estado. Desligados de sua subordinação esses promotores prestam contas,17 podendo ser ao governo após a promulgação das constitui- premiados ou punidos por sua atuação, o voto ções democráticas de ambos os países, como accountability, ou pelas promessas em relação uma espécie de resposta ao período autoritário 8 1 0 ao futuro, o voto mandate (Cf. Manin; Przewor- anterior, os promotores também não se sub- 2 z. ski; Stokes, 1999). O instrumental teórico para meteram aos instrumentos de accountability e D et./ estudar a questão da independência dos district vertical como seus politizados pares norte-a- S 0, attorneys, portanto, é o mesmo utilizado para os mericanos. Essa distância de partidos políti- 8 5 políticos que disputam cargos no Poder Execu- cos e eleições, paradoxalmente, não afastou os 7- 56 tivo ou Legislativo. Enquanto, no modelo mais promotores italianos e brasileiros da política, 4, p. comum, o burocrático, a análise pode ser feita pelo contrário. 8 n. 16 “O mais básico trabalho em modelagem econômica e De certa forma, as reflexões sobre o para- 1, psicologia cognitiva demanda conhecimento da ‘função doxo independência-accountability, que se co- 3 utilitária’ dos atores relevantes. Por exemplo, quando cien- v. tistas políticos estudam o processo legislativo, eles podem r, operar com alguma noção simples que motiva o parlamen- 18 Nos estados Unidos, entre 1978 e 1999, existiu a figura o d tar. Eles querem ser reeleitos e aprovar leis que comportem do promotor independente [Independent Counsel]. Em ca- va seu entendimento do que é melhor para a sociedade. Mas sos em que fosse necessário investigar e processar o pre- Sal estudiosos do comportamento do Judiciário admitem que sidente do país ou outros funcionários de alto escalão do rH, jturaíztaems seãnoto a tmorueist om baoism c osmobprlee xoo sq ue eq uoes nmóos tnivãao nteam poesr fuomr- greosvpeornndo,e ruima a por oMminoitsotrr oe rdaa i nJudsictiaçdao [ aptetolor nCeoyn ggerneessraol ]e. nDãeo- C mance da função judicial” (Burbank; Goldberg, 2002, p. 5). pois do escândalo Clinton-Lewinsky, e de debates sobre os o riscos de “abuso de poder”, o Congresso adotou a figura rn 17 “Promotores locais eleitos, claro, devem responder aos do Special Counsel que, em última análise, é accountable de eleitores, mas há numerosas outras fontes de pressão e in- pelo Ministro da Justiça (Cf. Fleissner, 1987-1988; Johson; a C fluência no ambiente” (Worrall, 2008, p. 19). Brickman, 2001). 576

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