UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA I E R NCOMENSURABILIDADE ACIONALIDADE C E T K : U A IENTÍFICA M HOMAS UHN MA NÁLISE D R E O ELATIVISMO PISTEMOLÓGICO Robinson Guitarrari Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Filosofia, do Departamento de Filosofia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Caetano Ernesto Plastino São Paulo 2004 AGRADECIMENTOS Agradeço à Capes o auxílio financeiro. Aos funcionários da biblioteca central da FFLCH, aos da secretaria do Departamento de Filosofia, e aos da seção de alunos de pós- graduação da FFLCH, a maneira prestativa e profissional com que sempre me atenderam. No departamento de filosofia, contei com pessoas admiráveis, com as quais mantive frutíferas trocas de ideias. Agradeço essas oportunidades a Antônio Mariano, Fernando Adorno, Gilmar de Moraes, Guilherme Rodrigues Neto, Maurício de Carvalho Ramos, Otávio Bueno, Paulo Tadeu e Roque Caeiro. A Claudemir Roque Tossato também sou grato pela acolhida em um momento em que os recursos eram extremamente escassos. A Valter Alnis Bezerra agradeço a cordialidade e o interesse com que discutiu vários tópicos de minha tese, bem como os esclarecimentos sobre os estudos que desenvolveu sobre Larry Laudan. A Maria Cecília Gomes dos Reis (Quilha) sou muitíssimo grato pelo apoio e pela oportunidade profissional. Agradeço a todos os professores do departamento de filosofia da USP, especialmente aos que investiram firmemente em minha formação. Agradeço à professora Andréa M.A. Loparic a orientação, desde os primeiros anos de minha graduação, nos estudos vinculados à lógica geral e a oportunidade de ter sido um dos monitores da disciplina de Lógica II. Ao professor Pablo Rubén Mariconda, coordenador de diversos grupos de estudos dos quais participei, sou grato pela orientação dedicada no programa de iniciação científica e pela motivação constante. Quanto ao desenvolvimento desta tese, sou grato ao professor Hugh Lacey pelas discussões sobre aspectos centrais de um modelo propriamente kuhniano de racionalidade científica e por seu excelente curso. Ao professor Osvaldo Pessoa agradeço a leitura atenta do texto apresentado em meu exame de qualificação e de uma versão preliminar do segundo capítulo desta tese, bem como as suas sugestões. Ao professor José R.N. Chiappin, a sua leitura crítica de meu texto de qualificação, com base em uma percepção aguda do curso de minha pesquisa, as suas claras sugestões sobre possíveis estratégias para o desenvolvimento de minha tese, o seu estímulo e o seu curso de filosofia da ciência. Sou muitíssimo grato ao meu professor e orientador Caetano Ernesto Plastino, por ter discutido comigo, detalhadamente, todos os passos deste trabalho, por conceder-me diversas sugestões e material bibliográfico de importância fundamental, por ter sido responsável por várias oportunidades abertas à apresentação de meus trabalhos, pela supervisão em meu estágio no Programa de Aperfeiçoamento de Ensino (PAE) e pelo respeito e compreensão com que me orientou. Este trabalho é dedicado ao Sr. José, a Dona Cida e a Mônica. Depois de tudo, foi a forma que encontrei para expressar a gratidão que sinto pelo conforto afetuoso com que me embalaram nessa empreitada. iii RESUMO O debate atual sobre a racionalidade científica tem envolvido uma tomada de posição quanto ao relativismo epistemológico. Um dos focos do debate consiste na superação do relativismo presente em pronunciamentos de Thomas Kuhn sobre a escolha científica. Procurando libertar-se de um relativismo kuhniano nas justificações de escolhas científicas, Hilary Putnam e Larry Laudan apresentam estratégias bastante distintas. Putnam vê incoerências autodestrutivas em tal relativismo, especialmente por duas razões: sua formulação seria autorrefutante e, quanto aos atributos cognitivos, essa posição não permitiria distinguir o homem de qualquer outro ser. Laudan procurou desmistificar os efeitos que a incomensurabilidade kuhniana teria causado para uma visão de racionalidade dirigida por regras metodológicas e, além disso, buscou mostrar a falta de poder explicativo do relativismo decorrente dela. O presente trabalho investiga se ainda há razão para considerar que o relativismo gerado pela incomensurabilidade kuhniana constitui uma ameaça à racionalidade científica. Apresentamos um modelo kuhniano de racionalidade, com base em uma análise dos textos de Kuhn sobre a escolha de paradigmas, que ressalta o papel da incomensurabilidade de problemas e padrões científicos. Procuramos mostrar que duas das principais acusações de incoerência, elaboradas por Putnam, não atingem tal modelo. Por fim, defendemos que esse modelo kuhniano de racionalidade apresenta várias restrições para o efetivo estabelecimento das críticas que Laudan lhe dirige. Palavras-chave: Thomas Kuhn; incomensurabilidade; relativismo epistemológico; relativismo cognitivo; racionalidade científica; mudança científica. iv ABSTRACT The current debate on scientific rationality has involved taking sides regarding the question of epistemological relativism. The debate is focused, among other things, in overcoming the relativism present in Thomas Kuhn‟s statements about scientific choice. Hilary Putnam and Larry Laudan, aiming at dispensing with a Kuhnian relativism in the justification of scientific choices, propose quite different strategies. Putnam sees self- destructive incoherencies in such relativism, mainly for two reasons: first, its formulation would be self-defeating and, second, this position wouldn‟t allow one to distinguish man from any other being as regards cognitive attributes. Laudan attempted to demystify the effects that Kuhnian incommensurability could cause to a vision of rationality governed by methodological rules, and, furthermore, attempted to show the lack of explanatory power of the relativism that follows from it. The present work inquires whether there is still reason to consider that the relativism originated by Kuhnian incommensurability constitutes a menace to scientific rationality. We present a Kuhnian model of rationality, based on an analysis of Kuhn‟s texts on paradigm choice, which highlights the role of incommensurability as regards scientific problems and standards. We aim to show that two of the main charges of incoherence, formulated by Putnam, aren‟t able to affect the model. Lastly, we maintain that this Kuhnian model of rationality poses various constraints on the actual establishment of the criticisms directed against it by Laudan. Keywords: Thomas Kuhn; incommensurability; relativism epistemological; cognitive relativism; scientific rationality; scientific change. v SUMÁRIO Resumo iii Abstract iv Introdução 1 Capítulo 1 Thomas Kuhn e a escolha científica: uma perspectiva relativista da racionalidade 7 1.1 A estrutura da dinâmica das ciências: o modelo de fases, 10 1.2 Ciência normal e ciência extraordinária, 18 1.3 Aspectos da concepção kuhniana de revolução científica, 22 1.3.1 Revolução científica e incomensurabilidade, 23 1.3.2 A força crítica das incomensurabilidades epistemológica e semântica, 30 1.3.2.1 Formulações da incomensurabilidade semântica, 32 1.3.2.2 A força da incomensurabilidade epistemológica, 44 a Um caso na história da química, 45 b Perdas de explicação e mudança de valores e padrões de avaliação, 47 1.4 Incomensurabilidade epistemológica e racionalidade: o relativismo em Kuhn, 51 1.4.1 As boas razões da comunidade científica, 53 1.4.2 O relativismo da racionalidade kuhniana, 62 1.4.2.1 A racionalidade kuhniana, 62 1.4.2.2 Descrição e norma na racionalidade kuhniana, 70 vi Capítulo 2: Putnam, o relativismo kuhniano e acusações de incoerência 79 2.1 Putnam e o relativismo kuhniano, 82 2.2 Relativismo e autorrefutação, 83 2.2.1 Relativismo e autorrefutação material, 86 2.2.2 Relativismo e autorrefutação formal, 96 2.3 Relativismo e padrões de correção, 101 Capítulo 3: Laudan e o relativismo kuhniano 114 3.1 Três modelos de racionalidade, 115 3.1.1 O modelo hierárquico e o modelo holista, 116 3.1.1.1 O modelo hierárquico, 117 3.1.1.2 O modelo holista, 120 3.1.2 O modelo reticulado, 122 3.1.2.1 As relações entre os níveis de compromissos científicos e a tese gradualista do modelo reticulado, 125 3.1.2.2 Uma teoria da investigação científica naturalizada e normativa, 133 3.2 Estratégias de refutação, 135 3.2.1 O modelo holista e as tarefas básicas da teoria da racionalidade, 137 3.2.1.1 O modelo holista e o problema da formação do consenso, 137 3.2.1.2 O modelo holista e a perpetuação do dissenso, 141 3.2.2 Laudan, a subdeterminação e a incomensurabilidade epistemológica, 143 3.2.2.1 Laudan, Kuhn e a subdeterminação, 146 a Problemas quanto à compreensão do quadro conceitual de Kuhn, 147 b A falta de respaldo textual, 151 c Função crítica, 161 3.2.2.2 Laudan contra as evidências do relativismo kuhniano, 163 a Os casos de padrões compartilhados, 164 a.1 A ambiguidade dos padrões de avaliação, 165 vii a.2 As divergências entre os padrões de avaliação, 167 b Os casos de problemas e padrões não compartilhados, 169 b.1 Contra as mudanças globais de padrões, 170 b.1.1 A falácia da covariação 171 b.1.2 A possibilidade de avaliação de axiologias distintas, 174 b.2 Contra a ideia das perdas cognitivas, 176 3.3 Avaliação crítica, 181 3.3.1 O modelo kuhniano e o consenso em ciência, 183 3.3.1.1 Dois aspectos do modelo holista que não representam o modelo kuhniano, 184 3.3.1.2 Implicações do modelo holista que não representam o modelo kuhniano, 190 3.3.2 A incomensurabilidade epistemológica foi superada?, 199 3.3.2.1 A questão da ambiguidade dos padrões compartilhados, 199 3.3.2.2 O problema do conflito entre os padrões de avaliação, 204 3.3.2.3 As mudanças em bloco dos compromissos paradigmáticos, 207 3.3.2.4 As perdas de explicação e as perdas epistêmicas, 210 a As bases da estratégia de Laudan, 211 b Tréplicas a Laudan, 213 b.1 Doppelt, o modelo reticulado e novamente as perdas epistêmicas, 215 b.2 Outras considerações sobre as perdas epistêmicas, 222 3.3.3 Restrições às críticas de Laudan, 223 Considerações finais 229 Referências bibliográficas 235 1 INTRODUÇÃO Quando se propõe um modelo de desenvolvimento da ciência, dentre tantos problemas filosóficos que precisam ser enfrentados, um central é o de compreender as mudanças de compromissos assumidos na atividade científica. Isso historicamente tem sido marcado por debates acerca das bases em que tais mudanças são ou devem ser feitas, se exclusivamente cognitivas ou não, se as disputas científicas podem ser racionalmente resolvidas e como essa racionalidade poderia ser descrita. Nas últimas décadas, os tratamentos de questões que envolvem a compreensão da racionalidade científica têm procurado se posicionar acerca de se alguma forma de relativismo cognitivo não pode ser admitida na modelagem de racionalidade das mudanças científicas. Assim, os problemas que cercam uma abordagem relativista da racionalidade científica voltaram a ganhar maior evidência com as repercussões, ao menos dentro da comunidade filosófica que discute tais problemas, das considerações de Thomas Kuhn e de Paul Feyerabend sobre a dinâmica do conhecimento científico. Ambos, contra os objetivos das metodologias científicas promovidas por empiristas lógicos e por popperianos, apresentaram alternativas que tiveram impacto na visão herdada de racionalidade, quer dizer, a que concebe que a ação racional na escolha de teorias é determinada por regras claras, explícitas, imparciais e decisivas que procuram realizar os objetivos da ciência. Essas alternativas soam notadamente relativistas, embora não seja tão evidente declarar que espécie de relativismo cada um de seus proponentes estaria disposto a defender. As reações vieram de Popper, Lakatos, Laudan, Shapere, Scheffler, Davidson, Putnam e Siegel, dentre outros. De lá para cá, muito já foi dito sobre o relativismo kuhniano, mas os tratamentos que tem recebido nem sempre se apresentam satisfatórios. O arsenal argumentativo 2 dirigido contra o relativismo exige análise, para quem quer compreender a situação atual desse debate e destacar as suas peculiaridades. Nessa corrente, o presente trabalho analisa duas linhas de refutação do relativismo presente nos pronunciamentos de Kuhn sobre a escolha científica: a desenvolvida por Putnam, principalmente, em Reason, truth and history (PUTNAM, 1981), e a que Laudan, desde Science and values (LAUDAN, 1984), vem elaborando. Putnam representa aqueles que descartaram o relativismo usando argumentos que se instalam no mesmo registro das clássicas acusações de incoerência.1 De modo geral, alega-se que da própria formulação da tese central defendida por uma doutrina relativista decorreriam proposições contraditórias, inconsistências conceituais, ou ainda disparidades entre implicações da doutrina e tarefas básicas que qualquer concepção filosófica acerca da natureza e valor do conhecimento deveria cumprir. Putnam, em particular, pensa que a relativização de propriedades epistemológicas seria autorrefutante ou implicaria a falência da capacidade cognitiva do ser humano. Laudan, diferentemente de Putnam, aponta as dificuldades de os aspectos da dinâmica da ciência serem compreendidos da perspectiva relativista mantida por Kuhn. Suas críticas se localizam no registro de uma epistemologia da ciência, e não naquele de uma epistemologia geral, como é o caso das acusações de incoerência. Quando Laudan se pronuncia sobre as questões básicas que qualquer teoria da racionalidade científica deveria resolver, ou mesmo quando julga os modelos de mudança científica, como veremos, nota- se claramente uma estratégia distinta daquela de Putnam. Ele supõe a coerência do relativismo e se atém aos problemas concernentes à ciência e à sua história que o relativismo kuhniano não resolveria. O confronto dessas duas linhas argumentativas com um exemplar de relativismo epistemológico se mostrará frutífero para analisar lacunas existentes no debate e, com tal análise, poderemos ter uma visão mais precisa da situação do debate atual, dada a importância das contribuições de Putnam, ao procurar apontar um modelo de racionalidade não criterial, e de Laudan, ao propor seu modelo reticulado de racionalidade científica. 1 De fato, há, em alguns casos, uma apropriação de argumentos largamente utilizados na história da filosofia que não deixa perder de vista as disputas em que a doutrina protagórica, comumente referida pelo lema o homem é a medida de todas as coisas, esteve envolvida. No debate travado por Siegel (SIEGEL, 1987) e Meiland (MEILAND, 1977; 1980), os argumentos claramente nos remetem a célebres passagens de Platão (PLATÃO, Teeteto, 166c-167d), Aristóteles (ARISTÓTELES, Metafísica, 1011a17-1011b12), Sexto Empírico (SEXTO EMPÍRICO, 1957 Against the Mathematicians 7, 389-390; 1976 Outlines of Pyrrhonism 1, 216-219) e Husserl (HUSSERL, 1959, 124-135), em que acusações de incoerência foram levantadas.
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