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imaginário, arte e alquimia PDF

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Religare 10 (2), 152-163, setembro de 2013 IMAGINÁRIO, ARTE E ALQUIMIA: ITINERÁRIOS PARA UMA EDUCAÇÃO DA SENSIBILIDADE IMAGINARY, ART AND ALCHEMY: ITINERARIES FOR EDUCATION OF SENSIBILITY Fernando de Carvalho Lopes1 FE-USP ______________________________________________________________________ Resumo: Neste artigo procuraremos explicitar a ligação do simbolismo Alquímico com a Estrutura Mística e Dramática do Regime Noturno do Imaginário, bem como a relação entre a Alquimia e a Arte, mais especificamente a prática da pintura a óleo. Com as conclusões alcançadas abordaremos os paralelos entre o processo criativo próprio às experimentações alquímicas e às práticas artísticas, concluindo que Arte e Alquimia são práticas de manipulação sensível da matéria e que, por isso, se constituem como ricos elementos para pensarmos a Arte-educação enquanto itinerário de formação, exercício da imaginação material e educação da sensibilidade. Palavras-chave: Imaginário, Alquimia, Pintura e Criação-artística Abstract: In this article we will try to explain the binding of Alchemical symbolism with the Mystic and Dramatic Structure Regime Night of the Imaginary, and the relationship between alchemy and art, specifically the practice of oil painting. With conclusions reached will discuss the parallels between himself and the alchemic art practices creative process, concluding that Art and Alchemy practices are sensitive handling of the matter and, therefore, constitute elements to think how rich the Art education while route training, exercise equipment and education imagination sensitivity. Keywords: Imaginary, Alchemy, and the Creation Painting-Art _____________________________________________________________________________________ 1 Fernando de Carvalho Lopes é mestrando em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) e pesquisador do GEIFEC (Grupo de Estudos sobre Itinerários de Formação em Educação e Cultura) da FEUSP. Email: [email protected] 152 Religare 10 (2), 152-163, setembro de 2013 Dissertar á respeito da prática De um lado, então, a tese do historiador alquímica nos leva imediatamente a nos romeno, Mircea Eliade, que defende perguntarmos o que ela “É”. Difícil que há uma evolução das técnicas pergunta se tratando de um objeto tão arcaicas dos mineiros, ferreiros e complexo quanto a alquimia. curandeiros para as doutrinas Obviamente, então, que muitas serão as alquímicas. Diz ele que a origem da respostas, mas, como era de se esperar, alquimia está ‘nas relações do homem nenhuma delas se apresentará como arcaico com as substâncias minerais, e definitiva nem, tão pouco, servirá como particularmente no seu comportamento definição. É comum questionar se a ritual de minerador, de metalurgista, alquimia se propõe como uma sabedoria assim como de ferreiro’. (Eliade, 1979) ou uma mântica2; uma teurgia3 ou uma Por outro lado, Milton Vargas (2005) filosofia; uma teoria ou uma técnica e acredita que é difícil aceitar uma assim por diante. Provavelmente não é simples evolução entre o universo uma teoria, pois se assim o fosse anímico do minerador, ferreiro ou poderíamos ao menos identificar um curandeiro arcaico e o do alquimista. preciso começo histórico, que não se Afirma o autor que há na alquimia algo limitasse à genérica informação de que que não se encontra nas técnicas as teorias tiveram sua origem na Jônica antigas. Há uma “sabedoria” ausente clássica e no século VI a. C.(Vargas, naquelas. Uma “sabedoria” que aparece 2005, 15). Se uma técnica, sua origem simultaneamente entre todas as se confunde com a historia do civilizações, no período da história que surgimento do homem e da sua relação Karl Jaspers chama de “tempo eixo”, com a natureza. localizado entre 800 e 200 anos a.C., Nesse sentido, provavelmente, a quando surge no Oriente o alquimia instala-se à meio caminho confucionismo, o taoísmo e o budismo, entre o que podemos considerar uma e no Ocidente, o zoroatroísmo, as técnica e uma sabedoria. Ou seja, no profecias judaicas e a filosofia grega. ponto de contato entre, de um lado, os Dessa forma, a alquimia enquanto despertar da consciência do homem no técnica arcaica seria universal, pois embate com a natureza – momento que emerge do próprio despontar da surge as técnicas arcaicas e as crenças consciência humana, comum a toda a aurorais da humanidade ligada a um humanidade. Porém, enquanto pensamento mágico e a crença no sabedoria, ela difere segundo as sobrenatural; e, do outro lado, a mentalidades e circunstâncias dos irrupção do espírito como uma nova sábios que a criaram, as quais se atrelam maneira de pensar que surge nos anos necessariamente às concepções do entre 800 e 200 a.C – tendo o mundo e do espírito, peculiares a cada surgimento da filosofia grega como uma das civilizações sapienciais em que expoente no Ocidente – , ali quando a surgiram. Assim, Vargas conclui que consciência humana já atingiu seu alto ‘se a alquimia tem uma origem nas nível de sabedoria. técnicas arcaicas mágico- ritualísticas dos curandeiros, mineiros e ferreiros, ela só pode instituir-se, como tal, a partir da mesma sabedoria que procura 2 Relativo as adivinhações em todos os seus compreender a relação anímica do aspectos: pela inspiração ou possessão, pelos homem com a material. (Vargas, 2005, sonhos e pelos oráculos etc. 3 Trata-se da possibilidade da manipulação p.19) mágica dos deuses em prol da satisfação de desejos humanos. 153 Religare 10 (2), 152-163, setembro de 2013 Uma coisa, então, é certa: se a alquimia certa maneira vegeta, de sorte que todos tem uma origem, essa é remota, os seus pedações tornam-se muito complexa e nada precisa. Ela se localiza maiores’(Eliade, 1979: 38)5. na conjunção, mescla e intercruzamento Essas duas concepções foram das técnicas arcaicas constituídas por responsáveis, por criar no homem um crenças aurorais da humanidade e sentimento de confiança e até mesmo de surgidas com o despertar da orgulho em relação ao seu trabalho na consciência; e das interpretações Terra. Nas palavras de Eliade: ‘o sapienciais ligadas ao advento das homem sente-se capaz de colaborar na religiões reveladas, da filosofia grega e obra da Natureza, capaz de ajudar os das profecias judaicas – momento em processos de crescimento que se que surgem os primeiros escritos sobre efetuam no seio da Terra. O homem alquimia. apressa e acelera o ritmo dessas lentas Mas explorando um pouco mais o tema maturações ctonianas, de certa maneira, das técnicas e crenças mágico- ele substitui o tempo’(1979: 39) Graças ritualísticas dos curandeiros, mineiros e a essa crença, a arte techné dos ferreiros de que nos fala Eliade, nos alquimistas consistiria, então, em perguntamos: Quais seriam essas reproduzir em suas oficinas os mesmo crenças arcaicas? processos, de forma mais acelerada, por Basicamente podemos pensar em duas que passariam os minérios na terra em fundamentais, a saber, a crença que sua lenta evolução, até atingir a forma concebe a Terra como a Grande- Mãe definitiva dos metais, o ouro (Vargas, progenitora e a concepção 2005). Onde, no tratado alquímico do embriológica dos minerais. A primeira século XIV, Summa Perfectionis,6 lê-se: delas entende que a Terra seria um ‘o que a natureza não é capaz de grande útero acolhedor, onde, nas suas aperfeiçoar num largo espaço de tempo, profundezas, geram-se os metais podemos, com a nossa arte (alquimia), (embriões) da mesma forma como levar a termo em pouco tempo.’ (Eliade, crescem os fetos no ventre das 1979) mulheres; e onde a ritualística dos Com tudo que dissemos sobre estas mineiros ao extraí-los se semelharia à duas crenças arcaicas que estão na dos parteiros. Já a segunda, entende que origem da prática alquímica, é possível os minerais se equivaleriam a notar, sem dificuldade, como elas se ‘embriões’ que são gestados no interior ancoram na Estrutura de Sensibilidade da terra, e que dessa forma, podem, Mística (ou antifrásica) ligada ao como um feto, se desenvolver até a regime Noturno do imaginário, tal como forma madura e perfeita do ouro, ou elaborado por Gibert Durand (1995), na manterem-se prematuras e sofrerem um sua obra Estruturas Antropológicas do ‘aborto’. Nas palavras do frade Roger Imaginário. Bacon4, sec. XII: ‘Contam alguns Como sabemos, o regime Noturno do autores antigos que existe na ilha de Imaginário, no qual pertence a Estrutura Chipre uma espécie de ferro que, de Sensibilidade Mística, caracteriza-se cortado em pedacinhos e metido numa pela inversão do aspecto negativo do terra frequentemente irrigada, nela de Regime Diurno. Ou seja, no Regime Noturno de Imagens e na sua Estrutura 4 Bacon, R. (Ilchester, Somerset, 1214 – 1294, Oxford). Também conhecido como Doctor 5 Bacon. R., Sylva sylvarum, III, p.153. Citado Mirabilis, foi um conhecido frade do século XII por M. Eliade, p. 38 e considerado um dos primeiros europeus de seu 6 Livro erroneamente atribuído a Geber. Cf. tempo a ensinar a filosofia de Aristóteles. John Read, Prelude to Chemistry. 154 Religare 10 (2), 152-163, setembro de 2013 Mística, verifica-se a valorização do o bosque sagrado, a viagem mortuária, a processo antifrásico que, nas palavras representação pela mandala da iniciação de Ferreira Santos & Almeida, ‘reside labiríntica, enfim, os continentes e essencialmente em que pelo negativo se também os conteúdos, como o leite, o constitui o positivo, por uma negação mel, os processos alquímicos em que a ou por um ato negativo se destrói o transubstanciação é homologa à efeito de uma primeira negatividade’. digestão, o sal e o ouro secreto, oculto, (2012: 24) filosofal da alquimia’ (Ferreira Santos Assim, indo direto ao nosso ponto, não & Almeida, 2012: 25). é difícil identificar como as crenças No entanto, se as crenças que estão na arcaicas na Terra-Mãe progenitora e a origem da alquimia são tributárias da concepção embriológica dos minerais Estrutura Mística, a alquimia, em seu que estão na origem da prática sentido operatório mais geral, liga-se a alquímica são tributários dos símbolos Estrutura Dramática do Imaginário que de inversão e intimidade pertencentes a é responsável pelo ritmo, pelo devir e Estrutura Mística do Imaginário. Onde, pelo tempo domesticado. E onde se no conjunto desses símbolos, se vê localiza um vasto conjunto de símbolos valorizado o ‘calor próprio da da mediação: a ponte, a barca, o profundidade, da intimidade, o ventre, o caminho, o mestre, o crepúsculo, o acolhimento, a digestão, a opacidade psicopompo etc. Na qual a figura mítica das substâncias (aquáticas ou telúricas)’ de Hermes é altamente representativa, já (Ferreira Santos & Almeida, 2012: 24). que expressa o guia, o pastor o Dessa forma, no sentido de inversão, o condutor. simbolismo da ‘noite’, que antes era De maneira resumida, podemos indicar assustadora e confusa, se mostra, agora, que a operatória alquímica liga-se tranquila e divinizada como espaço de fortemente a figura de Hermes e, repouso e comunhão: ‘noite que é portanto, a Estrutura Dramática, pois ela ventre, que como mar nos engole, que foi capaz de exemplificar com maestria como túmulo nos abriga, que como a ‘hermesiana conciliação e mulher nos gera, feminilidade presente harmonização dos contrários’ nas na percepção da natureza, na gestão da “núpcias químicas” da união conjugal terra-fêmea, na liquidez viscosa dos do “Rei e da Rainha”, ou seja, a mistura conteúdos conformados por seus de Mercúrio e Enxofre (polos continentes’ (Ferreira Santos & contrários) efetuada pelos alquimistas Almeida, 2012:25). práticos, como aparece no Rosarium Já no sentido de intimidade, o philosophorum, manuscrito do séc. simbolismo que se ligam a maternidade, XVI. Ou ainda, como nos mostra o ‘a mãe, a grande mãe, a mãe- terra, a Chymisches philosophorum , em que o mãe doadora da vida, matriz que “Rei e a Rainha” aparecem não mais na aproxima ventre, berço e túmulo, cópula, mas na forma andrógina de um fazendo do nascimento uma morte e da mesmo corpo. (Ferreira Santos, 1998.) morte um nascimento, de onde se Essa dimensão mais operatória e originam os rituais iniciáticos que laboratorial da alquimia, onde se lida materializam a passagem encenando a com substâncias como mercúrio e morte simbolizadora do segundo enxofre, e ligada a estrutura Dramática nascimento, o nascimento xamã’. Bem do Imaginário, nos reconduz a nossa como os símbolos da ‘a caverna, a questão inicial, a saber, a dificuldade gruta, a barca, o cesto, o sepulcro, o de abordar o que vem a ser a alquimia. ventre, a concha, o vaso, a casa, o ovo, Podemos, desse modo, apelar para a 155 Religare 10 (2), 152-163, setembro de 2013 definição que Jorge Machado nos pintura, por vezes, usaram a oferece. Este autor, acreditando que a linguagem da alquimia, falando de alquimia se desenvolveu a partir da ingredientes alquímicos como vitríolo, sal amoníaco e sangue. metalurgia e da prática médica, nos dará (Elkins, 1999: 19) 7. uma interpretação mais material dessa Para ficarmos num só par de substâncias prática milenar, diz ele: comum à pintura e à alquimia, vejamos A experimentação alquímica era o caso do Mercúrio e do Enxofre – o essencialmente a Química de altas “Rei e a Rainha” de que nos fala o temperaturas e o trabalho com metais, de um lado; de outro, a manuscrito do séc. XVI Rosarium Homeopatia. Os alquimistas philosophorum. trabalhavam com fornos e cadinhos Estas duas tradicionais e simbólicas para temperaturas elevadas, foles substâncias que foram largamente (acionados pelos sopradores), manipuladas pelos alquimistas, são os matrazes, balanças, pinças e banho- elementos básicos para se produzir a cor Maria(tradicionalmente atribuído a Vemelha (Vermelion), ou seja, o Maria, a Judia, uma alquimista cinábrio. Este pode ser encontrado em Alexandria), o alambique para a sua forma mineral no estado impuro, destilação e toda a sorte de mas como seu processo de purificação é instrumentos rudimentares que complexo, optou-se por fazê-lo eram, basicamente, mediadores entre o calor brutal da forja e a sintetizado a partir do aquecimento de delicada dosagem de energia mercúrio e do enxofre em retortas8. No necessária ao feliz andamento da Manual de Ateliê do século XII, experimentação (Machado, 1992: Diversarum Artium Schedula, atribuído 41). a Monge Teófilo, localizamos Aí está, a nosso ver, uma interpretação descrições de processos metalúrgicos, interessante da prática alquímica, pois tais como a copelação9 e a realça seu aspecto mais operatório, cementação10; além de oferecer claras material e laboratorial, não se apegando instruções sobre o preparo de pigmentos tanto a sua dimensão espiritual ou envolvendo tratamentos químicos, tais mesmo esotérica. Justamente por essas como o cinábrio, o “sal verde”, o “verde características, ela nos será útil para espanhol”, a cerusa (chumbo branco) e adentrarmos no nosso tema seguinte, a o míneo. Mas vejamos a receita de saber, a ligação entre a operatória preparo do cinábrio. alquimia – bem entendido, as suas operações e ingredientes – e a pintura a óleo. 7 What Painting is? How think about Oil Sobre está ligação, vejamos o que nos Painting, using the language of Alchemy. Está obra não possui tradução para o Português. diz James Elkins: Todas as citações que fizermos foram traduzidas ... o salto da pintura para a alquimia por nós. não é tão grande como parece, 8 Retorta é um recipiente com gargalo estreito e porque os ingredientes da pintura arqueado, largamente empregado em nunca foram muito diferentes dos laboratórios químicos e alquímicos para da alquimia. No século XVII, destilações. quando a alquimia estava sendo 9 O Diversarum Artium Schedula apresenta, praticada em cada pequena cidade, provavelmente, a primeira descrição facilmente pintores e alquimistas identificável do processo utilizado para compartilharam muitas substâncias separação do ouro, a copelação. 10 Atualmente entende-se que a cementação - óleo de linhaça, bebidas consiste, essencialmente, no processo de espirituosas, minerais brilhantes carbonização das partes superficiais do aço ou para cores –, e os manuais de ferro. 156 Religare 10 (2), 152-163, setembro de 2013 Se deseja fazer cinábrio, tome tanto por artistas (pintores) como por enxofre quebre sobre uma pedra alquimistas, não daremos continuidade seca, e adicione duas partes iguais ao exame mais detalhado desta obra. de mercúrio, pesados em uma Ainda no livro V de Dioscórides, balança, quando os tiver misturado Materia medica (século I), verificamos cuidadosamente, coloque-os num a breve menção ao cinábrio, não ligada jarro de vidro. Cubra tudo com a sua receita de preparo, mas ao país argila, vede a boca de modo que onde este pigmento pode ser nenhum fumo possa escapar, e encontrado: ‘mas o cinábrio é trazido da coloque perto do fogo para secar. Então enterre (o vaso) em carvões África e em quantidades tão pequenas em chamas e logo que começar a que bastaria apenas para variar as linhas esquentar você ouvirá um ruído da pintura, pois seu preço é muito alto. interior, à medida que o mercúrio se Sua cor é tão profunda que alguns une com o flamejante enxofre. pensam que seja sangue de dragão12’ Quando o barulho cessar, remova (Beltran, farmácias e ateliês). imediatamente o vaso, abra-o e Continuando, então, constatamos que retire o pigmento (Teófilo, 1979, p. também na técnica holandesa13, 40) esmagavam-se juntos esses dois Sobre essa receita, vale notar o curioso ingredientes (mercúrio e enxofre), comentário presente no Il Libro obtendo-se uma substância negra dell’Arte, texto datado do final do coagulada chamada de Mineral Etíope século XIV, e compilado por um autor ou Mouro. Sobre este procedimento, identificado como ‘descendente da Elkins complementa que: linhagem profissional de Giotto’, Quando a mouro era colocado num Cinnino Cennini. Na passagem, o autor forno e aquecido, se desprendia se refere a preparação do “vermelho vapor que condensava sobre a chamado Vermelhão”, ou seja, o superfície de placas de argila. O cinábrio de Teófilo: mouro é negro, mas o seu vapor [...] essa cor é feita por alquimia, condensado é vermelho brilhante - preparada numa retorta. Deixarei de um exemplo típico da magia fora o sistema para isso, pois seria alquímica - e que poderia ser muito maçante apresentar em minha raspado e moído em Vermilion para discussão todos os métodos e a pintura. (Elkins, 1999: 20). receitas. Porque, se quiser dar-se a Além do mercúrio, enxofre e cinábrio, esse trabalho, você encontrará podemos fazer uma lista considerável muitas receitas para isso, e de outros ingredientes que ambos especialmente se perguntar a um operadores manipulavam. Sem frade. [...] vou ensiná-lo como podermos desenvolver este tema, comprar e como reconhecer o bom vermelhão. (Cennini, 1933, 24)11 propomos citar apenas alguns destes ingredientes. São eles: vinagre, vitríolo, Cennini ainda fará considerações urina, vinho, ferro, cobre, chumbo, semelhantes ao se referir ao ‘branco de chumbo’ (cesura de Teófilo) e ao ‘verdete’ (o verde espanhol de Teófilo). 12 Ingrediente muito raro e utilizado pelos alquimistas. Diz-se que era o sangue coletado de Como a discussão que pretendemos um dragão ao ser ferido pelas presas de um encetar consiste em sinalizar a elefante. Mas segundo Ralph Mayer, trata-se de proximidade e semelhança de produto vegetal tirado da fruta de uma árvore substâncias e ingredientes manipulados asiática. 13 Pintura realizada neste país no decorrer do século XVII. São seus representantes mais 11 Citado por BELTRAN, M. H. Roxo. conhecidos, Rembrandt, Vermeer, Willem van Receituários, manuais e Tratados. de Velde, entre outros. 157 Religare 10 (2), 152-163, setembro de 2013 madeira, carvão, mel, esterco, sal, ateliês dedicados às artes decorativas14. cobre, rochas (Realgar, Orpiment e Nesse ponto, não podemos deixar de Lápis –lazúli), orvalho, argila. E salientar a importância do sublimador também substâncias bizarras: ‘Sangue conhecido como Kerotakis, de Dragão’, extrato gelatinoso das possivelmente mais um dos inventos de bexigas natatórias de esturjões, bexigas Maria, a Judia, alquimista que viveu no de porco, colas de peixe, cascos dos Egito em meados do ano de 273 a. C.15 cavalos, chifres de veado, e pele de (Ares, 1996). coelho, cera de abelha, suco leitoso de O Kerotakis seria, de maneira sucinta, figos, plantas européias e asiáticas, uma espécie de sublimador que, nas óleos feitos de especiarias como palavras de Ana Maria Goldfarb: alecrim, cravo e âmbar fossilizado ...consistia em um vaso fechado, (Elkins, 1999). contendo na parte inferior o líquido Mas voltando ao cinábrio, sabemos que ou material reativo, cujo vapor deveria servir ao tratamento dos na alquimia chinesa esta substância metais ou de outros materiais possuia um papel de destaque, pois para colocados mais acima, numa estes alquimitas, “o cinábrio aparece, prateleira ou diafragma (geralmente num primeiro momento, como o “elixir” fixada num estreitamento do vaso). da longa vida. Sua cor vermelha lembra Na parte superior do vaso havia o sangue (vitalidade), ajustando-se uma pequena cúpula de perfeitamente à associação de resfriamento, e um pequeno coletor, equivalências entre o interno e o externo onde eram recolhidos os líquidos no universo alquímico” (Goldfarb, produzidos durante a operação 2005:66). (Goldfarb, 2005: 63). Um dos procedimentos dos alquimistas Beltran, por sua vez, descreve o chineses era aquecer o cinábrio Kerotakis de maneira mais sucinta, (mortificado), para obtenção do dizendo que ele consistia basicamente Mercúrio (metal vivo) que representava numa ‘folha de metal depositada sobre o princípio Yin parte feminina e uma placa perfurada que assumia cores receptora que seria fecundada pelo variadas à medida que diferentes princípio masculino Yang, um princípio vapores aqueciam-na’(2000:74). sulfuroso, ativo e penetrante. Dessa Segundo a pesquisadora, essa placa união nasceria o ‘ouro alquímico’ que, pode ser considerada como uma como o ouro metálico, encerra em si as derivação da paleta em que os antigos idéias de perenidade, incorruptibilidade pintores preparavam as tintas, e resistência, ou seja, o equilíbrio misturando os pigmentos com cera e perfeito de Yin e Yang. aquecendo brandamente. Já nas palavras Outro ponto no qual podemos de Nelson Lage da Costa, ‘o kerotakis estabelecer paralelos entre alquimia e era usado como um aparelho para pintura diz respeito aos intrumentos amolecer os metais e misturá-los com utilizados pelos alquimistas. A agentes corantes’(2012: 600). O próprio pesquisadora Maria Helena Roxo nome do instrumento revela sua relação Beltran sinaliza que há uma forte com a produção de cores, donde relação, senão uma presença efetiva, Kerotakis deriva de Keros, palavra entre os aparatos laboratoriais utilizados pelos primeiros alquimistas alexandrinos e aqueles empregados nos 14 Ver comentários de J. Hopkins, Alchemy child of Greek philosophy, p.73 15 Alguns pesquisadores sugerem que Maria viveu na época de Aristóteles (384 –322 a.C.). 158 Religare 10 (2), 152-163, setembro de 2013 grega que significa cera16, e esta, por ocidental verifica-se que as quatro (ou sua vez é um dos elementos básicos na cinco) fases da obra denomina-se constituição da tinta encáustica. nigredo, albedo, citrinitas, rubedo e, Além desse instrumento, autores como algumas vezes, viriditas e cauda Vanin (1994) e Patai (2009) sugerem pavonis. que Maria teria inventado o Alambique Essa última classificação é usada por por volta dos anos de 200 ou 300 a.C., Beltran, que nos diz que a nigredo (cor instrumento que foi tradicionalmente negra) seria a primeira operação (ou manipulado pelos alquimistas e que, etapa) sofrida pela matéria e que segundo Beltran, constava nos equivaleria a sua indispensável “morte”. laboratórios e ateliês de boticários A etapa seguinte era a purificação (2006, p. 49). Dois aparelhos para alvejante (branca), verificada no estágio destilação também foram desenvolvidos de albedo. A seguir manifestava-se o pela alquimista, o Dibikos e o Tribikos, amarelo do ouro, na fase conhecida cada um com duas e três saídas para como citrinitas. Por fim, a fase final da destilados, respectivamente. Apesar de rubedo (Vermelho) que significaria a não termos informação a respeito da perfeição atingida graças a que a presença destes dois aparelhos nos reunião de todas as qualidades ateliês de artistas e boticários, é possível elementares da matéria. (Beltran, supormos que, por outro lado, 2000:75). instrumentos típicos dos laboratórios Pierre Laszo, por sua vez, é mais alquímicos – forjas, fornos sintético na sua apresentação das cores metalúrgicos, retortas, cadinhos e assumidas nas operações da Grande almofarizes17 –, tenham ocupado as Obra. Diz ele que essas operações prateleiras e bancadas de pintores e repartem-se em 3 estádios: “ nigredo, ou boticários. “a Obra ao negro”, depois albedo, ou “a Já que salientamos a relação do Obra ao branco”, e finalmente rubedo, Kerotakis com a obtenção de cores, vale ou “a Obra o vermelho”. Onde a obra agora apresentar suscintamente como as em negro conta seis operações cores se apresentam na operatória sucessivas, que são: Calcinação, alquímica. Segundo Eliade, A opus Dissolução, coagulação, Sublimação, magnum que conduz á Pedra Filosofal, Putrefação, Congelação. (Laszlo, 1997). popularmente conhecida como Diante dessas variadas classificações, Transmutação, é alcançada fazendo-se podemos notar que ao longo do passar a matéria por quatro fases, intrincado labirinto de operações denominadas segundo as cores que alquímicas que constitui os sucessivos adquirem os ingredientes. Segundo o estágios de exploração da matéria na autor teríamos, então: “mélansis(preto), busca da Pedra Filosofal, há presença leúkosis(branco), xánthosis(amarelo) e marcante de mudanças cromáticas. Ao íôsis(vermelho), onde o “preto” (a qual, conclui Beltran, “as cores nigredo dos autores medievais) infundem-se na linguagem da alquimia, simboliza a “morte”. (1979:14). tingindo os diversos e variados temas Naturalmente que essa classificação é através dos quais se expressava a busca suscetível a inúmeras variantes, onde da realização da Grande Obra” em toda a história da alquimia árabe e (2000,74). Outra maneira interessante de estreitar a 16 Ver comentários de J. Hopkins, Alchemy child relação entre pintura e alquimia é pensar of Greek philosophy, p.73 está última como sendo uma ‘antiga 17 Almofariz é um pilão de menor proporção, ciência empenhada em lutar com para trituração ingredientes menores. 159 Religare 10 (2), 152-163, setembro de 2013 materiais’, manipulando-os por Assim, portanto, nesse envolvimento do ‘experiência cega e sem inteiramente alquimista e do pintor com suas entender o que está acontecendo’ substâncias está implicado, como (Elkins, 1999). Ou seja, assim como a vimos, sua coporeidade integral na pintor experimenta seus materiais – apreensão das qualidades perceptivas pincel, pigmentos, óleos, carvão – sem desses mesmos materiais. E é essa idéia, o domínio pleno de suas possibilidades finalmente, que nos possiblita entender e propriedades expressivas, da mesma que na relação entre a prática alquímica forma o alquimista calcina, sublima e e artística existe uma dimensão ligada a destila o enxofre, mercúrio, óleos, sais e Arte- Educação ou, em outras palavras, muitas outros ingredientes – muitos que pintura e alquimia enquanto deles idênticos aos do pintores –; e atividades de manipulação sensível da ambos seguem realizando seu trabalho matéria, se propõem como um possível tomando decisões e assumindo direções. itineráiro de formação. Onde, por Dessa forma, artistas e alquimistas, por itinerário de formação entendemos os não terem conhecimento profundo das ‘múltplos caminhos que se abrem à propriedades químico-moleculares dos nossa escolha e que propiciam uma ingredientes com que trabalham, autoformação, ou seja, a aquisição, mas contam necessáriamente com seus cinco também construção, elaboração, criação sentidos, tato, olfato, audição, visão e de valores, pensamentos, sentimentos paladar para atentarem as suas que nos situam no mundo, em suas qualidades perceptivas e qualitativas, múltiplas manifestações, sejam podendo, dessa forma, lhes impor uma estéticas, sociais, éticas psicológicas ordem racional (na pintura) e divina (na etc.’ (Ferreira Santos & Almeida, 2012: alquimia). 142). Portanto, contando apenas com seus Desse modo, o que está presumido sentidos, os artistas-pintores tornam-se nessa idéia de itinerário de formação é delicados especialistas em distinguir que, diferente da pedagogia da escola, entre graus de brilho, cor, umidade, não há uma só forma de aprender que se textura, sombra, viscosidade, ‘resume a impor de modo metodológico durabilidades etc; e os alquimistas, um corpus de conhecimento sensíveis experimentadores em tradicionalmente cristalizado ao longo destinguir e ordenar as ‘substâncias da história’ (Ferreira Santos & Almeida, numa cadeia contínua de sólidos através 2012: 142). Ao contrário disso, os dos mais refinados às coisas mais tênues itinerários de formação evidenciam que como névoas, fumos, exalações, ar, éter a educação pode se dar fora dos muros e ... espíritos animais, a alma, e os seres portões escolares e, principalmente, não espirituais’ (Elkins, 1999). se efetuar por meio da definição prévia O que estamos querendo sugerir com de conteúdos e métodos, mas de ‘forma tudo isso é que tanto os pintores em plural, aberta, mobilizando toda a seus ateliês quanto os alquimistas nos atenção e energia e modificando a seus laboratórios exploraram e compreensão que [o educando] tem de acessaram seus materiais e substâncias si e do mundo’ (Ferreira Santos & orientados por uma postura sinestésica e Almeida, 2012: 142). qualitativa, atentos as suas propriedades É assim que o cinema, a literatura, o aparentes e não na sua propriedade teatro, a música, a prática esportiva etc, químico particulares e profundas, que só configuram-se como possíveis a ciência do séc XVII em diante poderia itinerários de autoformação, onde conhecer. educar-se não se torna mais um meio 160 Religare 10 (2), 152-163, setembro de 2013 para se alcançar um fim – passar no Ela engendra um imaginário que vestibular, conseguir um emprego, ‘resgata o valor da “mão que sonha” e ascender socialmente, desrutar de produz realidades artísticas, quer estatus etc –, mas uma prática de movida pela vontade de criar que a leva construção da pessoa enolvida em a enfrentar a resistência do mundo, quer responder suas questões cotidianas, gerando novas realidades por meios filosíficas, existenciais, sentimentais, “alquímicos” (por exemplo, na gravura sexuais. A educação, nesse sentido, e na pintura)’(Simões, 1999). Assim, a ocorre de maneira necessáriamente Imaginação Material alimenta um múltipla, plural, dinâmica, processual e imaginário que transparece, sobretudo, ‘feita de avanços e retrocessos, de nos devaneios, na arte, e numa filosofia dúvidas e retomadas, de conhecimentos ativa das mãos, a qual pertence obreiros que se revisitam’ (Ferreira Santos & como artistas, alquimistas e todos os Almeida, 2012: 144). que enfrentam a matéria para Dito isso, sob nosso ponto de vista, a transformá-la. E é graças a essa relação relação que estabelecemos entre a primordial que se estabelece entre o alquimia e a arte (Pintura) enquanto corpo do artista/alquimista e sua atividades práticas de manipulação matéria, que pode engendrar-se a con- sensível de inúmeras substâncias e fusão do âmago destes obreiros com a materialidades configura-se também profundida substanciosa da matéria, que como um possível itinerário de só a mão conhece. (Ferreira Santos & formação. Ora, pela necessidade de Almeida, 2012: 35), e onde a ambos operadores empenharem seus imaginação Material efetua-se de sentidos e sua corporeidade ao maneira demiúrgica, criando novas perscrutarem os mistérios, propriedades sintaxes, novos jogos de signos e possibilidades expressivas dos independentemente do discurso do materiais empregados, surge a abertura mundo habitualmente dado aos sentidos para o exercício da imaginação material humanos. e realização de uma educação da Já por educação da sensibilidade, sensibilidade. entendemos a educação que se A imaginação material é uma noção configura como o refinamento da desenvolvida por Gaston Bachelard que sensibilidade através de todos os consiste na faculdade capaz de formar sentidos (visão, audição, paladar, tato, imagens que transcendem a realidade, olfato, intuição, cinestesia), enquanto que cantam a realidade e que permitem processo de autoformação, ou seja, ao homem ultrapassar sua própria enquanto possibilidade autoconstrução condição humana. Este tipo de da própria humanidade da pessoa dando imaginação, fazendo oposição a vasão à potência que se inscreve na sua imaginação formal que se alicerça no corporeidade em contato com seus sentido da visão, na linguagem lógico- materiais plástico, expressivos e, porque matemática e na simplificação não, alquímicos. psicológica, resulta de nossa inserção O artista e o alquimista, então, no enquanto corpo no corpo do mundo ou, diálogo manual e operatório que pare ser mais específico, da ‘relação da estabelecem com seus materiais, incuti- nossa corporeidade com os elementos lhes novas feições cuja potencialidade é líquidos, com os elementos aéreos, com explorada ao receberem significados os elementos ctônicos e com os cada vez mais ampliados. Noutras elementos ígneos’ (Ferreira Santos & palavras, artistas e alquimista, cada um Almeida, 2012: 35). a sua maneira, acariciam e tateiam com 161

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Arte e Alquimia são práticas de manipulação sensível da matéria e que, por alquimia instala-se à meio caminho Smith & John G. Hawthorne,.
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