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Ideologias e mentalidades PDF

208 Pages·1991·40.796 MB·Portuguese
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MICHEL VOVELLE IDEOLOGIAS E MENTALIDADES A Bolsa eaVida A usura naIdade Média Jacques LeGoff A Idade Média: Nascimento do Ocidente Hilário Franco)r. Injustiça As basessociaisdaobediência e Tradução: darevolfa Maria lu/ia Cottvasser Barrington MooreJr. Os Intelectuais na Idade Média Jacques Le Goff 2!' edição Meretrizes eDoutores Osaber médico eaprostituição no Rio dejaneiro (1840-1890) Magali Gouveia Engel Mitologia Grega Pierre Grimal editora brasiliense , Copyright © by Êditions La Dêcouoerte, 1985 Título original em [rancêsi Idéologies et mentalités Nenhuma parte desta publicação pode sergravada armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor. ISBN: 85-11-14059-X Primeira edição, 1987 2~edição, 1991 Revisão: Carmem T.S. da Costa eOrlando Parolini Capa: Camila C. 'Costa Índice UNI-RIO Aquisição: CD/f/,44 Introdução: O .ta: Ideologias e mentalidades: um esclarecimento ne- Fornecedor:/t/cJ -1-t-8/f/JO cessário ~. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . 9 'L,cJ Preço:~/./. t?ék? éJ a Empenho: / (\~ .L Primeira Parte I. Nota Fiscal: ~/" _16/'3/30 N.o Tombo:jfJj A história das mentalidades na encruzilhada das Biblioteca: t/,t!1! fontes 27 _._-------------"" Rins e corações: pode-se escrever uma história religiosa a partir de traços? 33 iP Pertinência e ambigüidade do testemunho literário 48 Iconografia e história das mentalidades 65 Segunda Parte Rua da Consolação, 2697 01416 São Paulo SP Da história das culturas à história das atitudes: Fone (011) 280-1222 -Fax 881-9980 onde se encontra o 'inconsciente . . . . . . . . . . .. 103 Telex: (11) 33271 DBLM BR Existe um inconsciente coletivo? 107 Sobre a morte 127 IMPRESSO NO BRASIL Introdução " Terceira Parte O popular em questão 151 A religião popular 157 Os intermediários culturais 207 Dez anos de sociabilidade meridional 225 O retrocesso pela História na redescoberta da festa 240 Quarta Parte "Um tempo mais longo": resistências e longa du- ração nas mentalidades coletivas 255 A longa duração 259 História das mentalidades, história das resistên- cias ou das prisões de longa duração 299 Quinta Parte Existem revoluções culturais? 333 A sensibilidade pré-revolucionária 337 A Revolução Francesa: mutação ou crise de va- lores? 372 O evento na história das mentalidades 405 Bibliografia 4t 1 Ideologias e mentalidades: um esclarecimento necessário* Eis uma questão que poderá parecer ingênua, mas que de fato assume, sem timidez e falso pudor, a sua simplici- dade. Sou um historiador formado nos métodos de abor- dagem marxista - e não os renego, longe disso - mas ao mesmo tempo classificado na categoria dos historiadores das mentalidades, corretamente é provável, no que se re- fere às produções que me tornaram conhecido, ou seja: os estudos sobre as atitudes coletivas diante da morte; os en- saios sobre a festa e sobre fatos da história religiosa, tais como a descristianização do ano 11, tratada em termos de uma mutação crítica no centro do processo revolucionário. ** Não creio, com isso, estar sendo infiel aos meus pres- supostos iniciais, mesmo que minha trajetória possa parecer paradoxal a outros. Por exemplo, para historiadores que não * Comunicação inédita apresentada em dezembro de 1980, na Uni- versidade de Dijon, por ocasião do encontro sobre as mentalidades na época revolucionária. A ser publicada nas atas do colóquio. Está prevista a publicação de uma versão inglesa deste texto em: Mélanges ojjerts à Eric Hobsbawm. (Misturas oferecidas a Eric Hobsbawm). ** O autor se refere ao ano II do novo calendário instituído pela Revolução Francesa. (N.T.) 10 MICHEL VOVELLE INTRODUÇAO 11 se reconhecem - ou não se reconhecem mais - como bora apresentem, incontestavelmente, uma área real de su- marxistas, como Emmanuel Le Roy Ladurie que, em uma perposição. Evidentemente, porém, ideologia e mentalidade avaliação sobre minha obra Piété baroque et déchristiani- não são uma única e mesma coisa, sation: les attitudes devant Ia mort en Provence au XV/Il" siêcle (Piedade barroca e descristianização: as atitudes dian- f' te da morte na Provença no século XVIIl), surpreende-se Ideologia ante um historiador marxista hábil em descrever o "como" e que se recusa a dizer o "porquê". Uma observação talvez Não cairei na armadilha de iniciar com uma nova de- tão simplista quanto a minha, pois parece investir o histo- finição do conceito marxista de ideologia. Outros já o fize- riador marxista da perigosa responsabilidade de dizer o por- ram, a começar pelos fundadores, até os recentes exegetas quê ... o que, afinal, é uma homenagem nada desprezível. como Louis Althusser, que define a ideologia como" a rela- Por outro lado, causei surpresa, algumas vezes, a his- ção imaginária dos indivíduos com suas condições reais de toriadores marxistas devido a uma aparente complacência existência" (em Ideologia e aparelhos ideológicos de Esta- com ternas heterodoxos. Recordo, assim, uma interrogação do). Em outras palavras: o conjunto de representações, mas amistosa de Pierre Vilar, preocupado em saber se, em lugar também de práticas e comportamentos conscientes ou in- dos temas que evidentemente me atraem - a morte ou, conscientes. O caráter muito geral da definição parece apto então, a festa - não seria preferível que eu estudasse os a congregar em torno de uma hipótese de trabalho comum processos de tomada de consciência entre as massas: voca- tanto marxistas como não-marxistas. Se é possível objetar- ção certamente menos ambígua para um historiador mar- lhe o caráter incontestavelmente vago, também se pode xista. Cada qual tem seu estilo; e as duas histórias refletem afirmar ter sido essa a intenção de Marx mesmo, preocupa- pelo menos um mal-entendido, ou talvez até um pouco mais do, em sua Introdução de 1857, em responder às acusações do que um mal-entendido. Acima de minha aventura pes- de econornicismo reducionista de que fora alvo A ideologia soal, porém, percebi, naquela pergunta, uma questão mais alemã. Nessa Introdução, ele define modo de produção em ampla e profunda: a necessidade que se coloca para o his- termos talvez citados demais, mas sempre essenciais: "em toriador marxista de precisar os seus próprios conceitos, todas as formas de sociedade, é um modo de produção de- confrontando com o refinamento de sua própria problemá- terminado e as relações por ele engendradas que determi- tica assim como de solicitacões exteriores. Também a ne- nam todos os outros modos de produção e as relações en- , > - cessidade, para toda uma nova geração de historiadores de gendradas por estes últimos, como também seu nível e sua mentalidades, de definir - de maneira muito simples, po- importância. É como uma luz geral onde estão mergulha- rém rigorosa - a própria noção de mentalidade, tornan- das todas as cores e que lhes modifica as tonalidades par- do-a operatória, embora guardando um certo toque artís- ticulares. É como um éter particular que determina o peso tico. específico de todas as formas de existência que dali . Para isso, é necessário tomar claramente consciência emergem". da coexistência, dentro de um mesmo campo, d dois con- Luz geral, éter particular: podemos, sem nos tornar- ceitos que, além de rivais, são herdeiros de duas correntes mos iconoclastas, reconhecer com' Pierre Vilar que. estilis- diferentes e, por isso mesmo. difíceis de s ajustar m, em- ricamente, esse não é "o melhor de Marx ". Porém, pouco 12 MICHEL VOVELLE INTRODUÇAO 13 importa, desde que a intenção seja nitidamente percebida, mesmo recompensados por sua prudência, visto que conti- tal como foi depois comentada por Engels, em 1890, em nuaram a ser solicitados ou confrontados por objeções que uma carta a Ernst Bloch: "Segundo a concepção materia- pesquisas em novas áreas de investigação colocavam sem lista da História, o fator determinante é, em última instân- cessar a uma leitura supostamente marxista. cia, a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx Essas objeções são fortes - sobretudo quando apre- nem eu jamais afirmamos mais do que isso. Se, mais tarde, sentadas por críticos que não são adversários do marxismo. alguém torce essa proposição, fazendo-a dizer que o fator '/ Vejamos, limitando-me ao próprio campo de minha pes- econômico é o único determinante, transforma-a em uma quisa sobre o século XVIII, o questionamento maior que frase vazia abstrata e absurda ... ". suscitou o estudo da ruptura entre a ideologia "burguesa" Assim, En eIs em seguida a Marx, respondia, por an- do Iluminismo e o grupo que era seu porta-voz nas acade- tecipação, a toda uma crítica ao mesmo tempo opinativa e mias de província, repúblicas literárias e nas lojas maçôni- tão elementar que não deveríamos nos deter nela: a do cas. Nas estatísticas irrefutáveis de Daniel Roche, o bur- ")Earxismo vulgar", como explicação mecânica através do guês se oculta, deixando no proscênio os aristocratas ou econômico, em-um universo onde as superestruturas ideoló- os representantes de uma "elite" de talento .. , Pergunta-se . gicas responderiam, ~em um passe de mágica, às soli- então: o que significa uma ideologia que não é representa- citações da infra-estrutura. Debate acadêmico, certamente, da pelos agentes apropriados, ou melhor, que é avançada que deixaremos a cargo dos críticos "vulgares" do marxis- justamente por aqueles cuja destruição ela porta em germe? mo "vulgar". É preciso, porém, reconhecer que tais este- Daí o sucesso, em determinada época, da teoria das elites, reótipos têm vida longa e eficácia real. Nem sei se essa crí- naturalizada francesa, como tentativa de romper o encadea- tica não teria contribuído na historiografia francesa para mento "mecânico" das participações e opções, ou das to- esse tipo de prudência; aliás, mesmo uma certa timidez dos madas de consciência. historiadores marxistas em abordar objetos que poderiam À medida que se atingem as representações mais com- expô-Ios a tais censuras. Até data recente, tinha-se a im- plexas, a dificuldade cresce para explicar corretamente, e pressão de uma partilha implícita à qual subscreviam, pelo até mesmo levar em conta, um certo número de dados. menos por seu silêncio, numerosos historiadores marxistas, Uma tese muito recente de história social à luz do marxis- confinando-se no domínio da economia e das estruturas so- mo, que visa a reconstituir em toda a sua profundidade ciais (mas em liberdade muito vigiada), e reservando aos o grupo da aristocracia parlamentar francesa do século mais qualificados que eles os territórios mais complexos da XVIII, esbarra em obstáculos que ela não pode nem elidir história religiosa, das mentalidades e das sensibilidades. nem reabsorver no momento mesmo em que reúne com Assim, o Goldmann de Dieu caché (Deus escondido) per- muito brilho todos os elementos do estudo. Por exemplo: maneceu por longo tempo como a exceção que confirma a o jansenismo dos magistrados persistindo no século XVIII regra de não-intervenção dos pesquisadores marxistas em seria uma sobrevivência, uma forma vazia? 'assuntos que não eram considerados de sua competência. São essas formas "nobres"~pressão ideológica, mas .uma história ue amplia cada vez mais o campo de Confinados ao subsolo e abandonando para outros os sua curiosidade, englobando comportamentos mediante os andares nobres, os historiado~es marxistas não foram nem quais o homem se define em sua plenitude - isto é, a 14 MICHEL VOVELLE INTRODUCAO 1'1 família, os costumes, os sonhos, a linguagem, a moda ... grandes pânicos de estilo antigo na sociedade francesa? Pen- confronta-se, nesses domínios, com o aparentemente gratui- semos, em seguida. em alguns dos grandes clássicos, como to, mas nem por isso menos significativo. Le déclin du Moyen A.ge (O declínio da Idade Média) de Que significado, porém, lhe atribuir? Mais ainda: exis..: Huizinga, incontestavelmente uma das obras fundadoras te nos comportamentos humanos - proposição aparente- " dessa nova abordagem histórica. Se já é possível começar mente absurda em vista da definição de que partimos - a falar em história das mentalidades no sentido estrito a uma parte que escape à ideologia, que esteja abaixo ou de partir de Lucien Febvre e da escola dos Annales .(Anais) lado? O uso comum do termo no vocabulário cotidiano ten- - assim como em Le problême de l'incroyance au XV 1" de a ser desorientador nesse domínio: "Isto é ideológico", siêcle: Ia réligion de Rabelais (O problema da descrença ouve-se dizer, uma expressão que remete à representação no século XVI: a religião de Rabelais) - é apenas com que se faz no senso comum (a partir de uma certa prática Robert Mandrou e Georges Duby, nos anos sessenta, que social do discurso) da ideologia como um configuração or- se opera, com fortes resistências, o reconhecimento de um gazinada e polarizada, em contraste com um certo bom- novo terreno da História. Dir-se-ia, porém, que este com- senso, onde se refletiria a atmosfera da época. .. a men- pensou com uma agressividade conquistadora as dificulda- talidade talvez? des iniciais: na lista dos atuais sucessos editoriais, a his- tória das mentalidades pode perfeitamente figurar, na his- toriografia francesa, como o marco de mudança ou como I Mentalidade a alternativa para a história social anteriormente dominan- te. A curiosidade e o efeito de atração sentido por outras A noção de mentalidade conforme é atualmente defi- correntes historiográficas testemunham que ali reside, pro- nida, remete a uma herança diversa e muito mais recente vavelmente. muito mais do que um fenômeno de moda. - datando de vinte a trinta anos, se nos referíssemos à É aí também que se coloca o primeiro dilema de uma difusão geral do termo. Contudo, é preciso reconhecer que noção conquistadora, mas que conserva, ao .mesmo tempo, o conceito está longe de ser universalmente aceito: basta um caráter no mínimo muito vago. Embora não cessem há verificar com que dificuldade historiadores de fora da Fran- vinte anos as interrogações sobre a definição da própria ça conseguiram adaptar a noção ou mesmo traduzir o ter- noção de "mentalidade", não conheço ainda melhor defi- mo. Os alemães procuraram um termo congruente, enquan- nição do que a proposta por Robert Mandrou, centrada to os ingleses, seguindo-se aos italianos, resignaram-se prag- nesse ponto: uma história das "visões de mundo". Uma maticamente a utilizar a própria expressão francesa. definição ao mesmo tempo bela, satisfatória em minha opi- Por outro lado, sabe-se perfeitamente que se pode des- nião, mas incontestavelmente vaga. cobrir toda uma pré-história da historiografia das mental i- Poderia-se ainda contestar R. Mandrou, ao se verificar dades; e também que é evidente (exatamente como o sr. a forma como tem evoluído o próprio conteúdo dessa his- Iourdain, que fazia prosa sem o saber), que já se fez his- tória nos últimos vinte a trinta anos? Assumindo tudo que tória das mentalidades sem lhe dar esse título. O que é essa redução possa ter de empobrecedor, e até de caricatu- La Grande Peur (O Terror) de Georges Lefebvre, senão o ral, parece-me bem que se passou de uma história das men- estudo impressionantemente moderno de um dos últimos talidades que em seus primórdios situava-se essencialmente l I 16 MICHEL VOVELLE INTRODUÇAO 17 ao nível da cultura ou do pensamento claro Le problême apropriada. A história das mentalidades mudou em muito de l'incroyance au XVI siêcle: Ia réligion de Rabelais (O pouco tempo, a própria noção de mentalidade também: ex- problema da descrença no século XVI: a religião de Rabe- perimentamos atualmente o sentimento de lidar com uma lais), de L. Febvre, mas também De Ia culture populaire disciplina com bulimia, levada a anexar a si mesma, sem aux XVII" et XVIII" siêcles (Da cultura popular nos sé- complexos, áreas inteiras da História: religiosa, literária, culos XVII e XVIII), de Mandrou, para uma história das das idéias, mas também do folclore e de toda uma dimen- atitudes., dos comportamentos e das representações coletivas são da etnografia ... BuJimia perigosa em ato: quem de- inconscientes. B precisamente isso que se inscreve maciça- vorará o outro? mente nos novos centros de interesse em voga: a criança, a mãe, a família, o amor e a sexualidade. .. a morte. B tempo de fazer uma pausa e reenfocar o problema' que nos preocupa: mentalidade e ideologia. Entre um con- Para tomar consciência dessa trajetória, basta acompa- ceito elaborado, longamente amadurecido, mesmo que a nhar dois temas que aparecem constantemente na produ- última palavra esteja evidentemente longe ainda de ser dita; ção da História das mentalidades. Tomemos, por exemplo, e uma noção como a de mentalidade, reflexo conceitual de a feitiçaria. Desde o estudo histórico de R. Mandrou - cujo uma prática ou de uma descoberta progressiva - é verdade mérito nunca será suficientemente louvado -, Magistrats que recente, mas incontestavelmente fluida ainda -, carre- et sorciers en France au XVII" siêcle (Magistrados e feiti- gada de sucessivas conotações, compreende-se que o ajus- ceiros na França no século XVlI) , até as abordagens mais tamento seja difícil: eles provêm de duas heranças diferen- recentes de C. Ginzburg e R. Muchembled, a visão do his- tes; e também de dois modos de pensar: um mais sistemá- toriador tem-se modificado. Mandrou nos revela a mutação tico e o outro voluntariamente empírico, com todos os ris- histórica do ponto de vista da perspectiva das elites e do cos que isso acarreta. poder, quando os parlamentares, em algum momento em Todavia, existe entre os dois termos uma indiscutível e ampla área de superposição. Se nos reportarmos ao seu torno de 1660, decidiram não mais queimar os feiticeiros. emprego corrente, parecerá - no que se arrisca a tornar-se ê-tuªlmente, esforçamo-nos para passar para o outro lado um diálogo entre surdos - para alguns que as mentalida- da barreira a fim de tentar analisar, de seu próprio interior, des se inserem naturalmente no campo do ideológico, en- o universo mental dos marginais e desviantes. Da mesma q~ ara outros a ideologia, no sentido estrito do ter- maneira, seria talvez fácil demais demonstrar a mudança mo, não poderia ser senão um aspecto ou um nível no cam- operada entre o Rabelais de L. Febvre, hoje historicamen- po das mentalidades, isto é, o da tomada de consciência ou te datado - reflexo de uma história que permanecia ao de formaliza ão do ensamento claro. Percebe-se o que essa nível das elites, a meio caminho entre a história das idéias dupla apreciação contém de mal-entendidos fundamentais. e a história das mentalidades -, e o Rabelais de Mikhail 1 Os que aspiram a livrar o conceito de ideologia dessa má- Bakhtine - expressão e reflexo de uma cultura popular cula excessivamente grave de ser um conceito marxista fa- larão de um "terceiro nível" ... sem jamais se referir, con- L'oeuvre de François Rabelais et ia culture populaire au Moyen 1 Age et sous Ia Renaissance (A obra de François Rabelais e a cultura tudo, à hierarquização entre infra-estruturas econômicas, es- popular na Idade Média e Renascimento). truturas sociais e superestruturas ideológicas. Admitimos 18 MICHEL VOVELLE INTRODUCAO ser este um compromisso burguês, mas que tem pelo menos nos esquemas dogmáticos de um reducionismo sócio-econô- o mérito - tal como foi apresentado por Pierre Chaunu - mico. Inversamente, a ênfase posta sobre o mental e sobre de atrair a atenção para a importância considerável assu- a especificidade da "prisão de longa duração" atesta a preo- mida nesses últimos decênios pela História "no terceiro ní- cupação de Braudel em afirmar, senão a autonomia do vel" dentro das preocupações coletivas de pesquisa. mental, pelo menos a originalidade dos ritmos aos quais Nesse investimento coletivo na historiografia dos paí- este se subordina. Dentro dessa perspectiva - ela própria ses liberais, e particularmente na França, parece nitidamen- histórica - apesar de uma boa parte dos historiadores fran- te ser a noção de mentalidade - mais flexível, desemba- ceses atuais das mentalidades terem vindo da história social racada de toda conotação "ideológica" - a parte premia- e de não a terem repudiado, pelo contrário, vê-se também da: a mais operatória, a melhor habilitada, graças à própria adquirir um lugar mais amplo. de ambos os lados do Atlân- sutileza de que se reveste, a responder. às necessidades de tico, uma nova geração de especialistas que não passaram uma pesquisa sem pressupostos. pelo desvio antes obrigatório, e preferiram escolher "o mé- todo curto de fazer oração". Esses novos historiadores das mentalidades, preparados para todas as tentações da psico- Mentalidade contra ideologia história, acentuarão provavelmente - e sem felicidade - uma parte dos traços que logo se destacam, para sublinhar A história das mentalidades é antimarxista? Esse é um a autonomia do mental. problema que só pode ser tratado a partir de uma perspec- tiva histórica. É inegável que durante longo tempo tem ha- Em um primeiro nível, o conceitqde mentaljdade se I vido uma real inquietude entre os historiadores marxistas constitui, como observamos, mais amplo qu~ o de ideologia: em face de uma abordagem suspeita de ser, conscientemen- ele integra o que não está formulado, o que permanece apa- te ou não, mistificante. É justificada a atitude? Certamen- rentemente como "não significante ", o que se conserva te não, considerando-se uma parte dos incentivadores da es- muito encoberto ao nível das motivações inconscientes. Daí cola francesa, Mandrou ou Duby, particularmente atentos a vantagem, talvez, dessa referência mais maleável para em manter unidas as duas pontas da cadeia, desde o social uma História total. ao mental e, portanto, abertos a todas as confrontações. Além dessa característica, as mentalidades se distin- Não se pode dizer o mesmo, talvez, da geração precedente, guem de outros registros da História por aquilo que R. como L. Febvre e de uma parte dos primeiros Annales. Se Mandrou definiu como "um tempo mais longo", alusão à os criadores da revista procuraram manter a ênfase sobre longa duração braudeliana e às "prisões de longa duração". a trilogia economia-sociedade-civilização (esse último termo As mentalidades remetem, portanto, de modo privilegiado, como lembrança de uma codificação mais antiga, abrindo- à lembranca, à memória, às formas de res' êncías. Em re- se para o superestrutural), e se FernandBraudel conserva sumo: ap;nta aquilõ que ~e tornou corrente definir como a ênfase sobre a importância da mediação social ("civiliza- "a força de inércia das estruturas mentais", mesmo que essa ção material 'e capitalismo"), não se distingue menos no explicação continue de caráter verbal. Especialmente da espírito dos Annales a preocupação em diferenciar-se de perspectiva que nos interessa, essa constatação - à pri- uma História marxista, tida como envelhecida e fechada meira vista irrefutável de inércia das mentalidades - abre-

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