Ficha Técnica Copyright © 2016 Mary del Priore Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora. Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Preparação: Breno Barreto Revisão: Luana Luz de Freitas e Pedro Staite Projeto gráfico de capa e iconografia complementar: Victor Burton Pesquisa iconográfica: Renato Venancio Pesquisa documental: Carlos Milhon Imagem de capa: montagem a partir da obra de Carlos Julião, imagens cedidas pela Fundação Biblioteca Nacional. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Priore, Mary del Histórias da gente brasileira : volume 1 : colônia / Mary del Priore. – São Paulo : LeYa, 2016. ISBN: 9788544103869 1. Brasil – História 2. Brasil – Período colonial, 1500-1822 - Usos e costumes I. Título 16-0180 CDD 981 Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil – História Todos os direitos reservados à LEYA EDITORA LTDA. Av. Angélica, 2318 – 13º andar 01228-200 – São Paulo – SP www.leya.com.br Agradeço a Renato Venancio, pela seleção de imagens, e a Carlos Milhono, pela ajuda na pesquisa documental. Ofereço este livro a Vasco Mariz, por uma história de amizade, e às minhas netas, Maria e Sophia, para que gostem de história como a avó. RUGENDAS, Johann Moritz. Vista tomada da Igreja de São Bento, Rio de Janeiro. CASA LITOGRÁFICA ENGELMANN, PARIS, 1835. GRAVADOR V. ADAM. PREFÁCIO V ocê gosta de história? Então, está com o livro certo nas mãos. Porque nele você há de conhecer uma história do Brasil diferente. Não aquela dos grandes feitos, nomes e datas que marcaram o nosso passado; tampouco aquela dos fenômenos extraordinários que provocaram rupturas na nação, mas as histórias do dia a dia, ou melhor, de todos os dias da semana. Histórias feitas por personagens anônimos do passado, que raramente nos são apresentados, pois se confundem com o tecido social em construção. Uma história da gente brasileira no labor cotidiano, inventando, produzindo e ganhando o “pão de cada dia”! Sim, no gerúndio mesmo, pois a vida real se passa nesta forma de verbo. Do que era feita essa gente, prisioneira da vida ordinária? Sob qual clima cresceu, se multiplicou e desapareceu? E, de suas crenças e tradições, o que ficou para as gerações que a sucederam? De que trama foi tecido esse povo? Para responder a essas questões vamos discorrer sobre o básico, o tradicional. Mas de forma nova e fresca. Vamos falar com simplicidade dos lugares- comuns, das coisas pequenas que podem ser muito relevantes, quando damos voz às comunidades de ontem, ouvindo-as sobre seu cotidiano; dos pequenos detalhes da existência sobre os quais se colam gestos precisos, exercidos por personagens que ritualizam suas ações. O seu “saber fazer”. Nas mãos de nossa gente, vamos encontrar objetos. Objetos, eles também atores históricos, cujos usos nos ajudam a compreender a complexidade de nossa vida material. Em cada um deles reside a narrativa de sua produção, de suas viagens, de seus usos e apropriações. Não podemos reduzi-los a sua simples significação ou uso. Marcados pela intenção de seu criador, e depois de seus detentores, eles são o signo de uma ação. Sua historicidade nos convida a inscrevê-los na sucessão da vida coletiva. Um mundo habita cada coisa: panelas, roupas, instrumentos de trabalho, móveis. Contrariamente às grandes obras de arte, o encanto das pequenas coisas reside em não individualizar o gesto criador. Não há assinatura na parte inferior de tais peças. Arrancados de seu silêncio, de sua quietude, eles nos acenam com descobertas imprevisíveis. E é a história de nosso cotidiano que se expressa através de artefatos concretos. Da lembrança de ofícios esquecidos. Descobrir a grande história das pequenas coisas é também uma forma de olhar. Nesse olhar está contida a arte de viver, mas também de ver. De ver de perto. Pois atrás dos objetos está contida uma história outra. Aquela da mão dos homens, atarefada em extrair da natureza objetos de metal, madeira, vidro. E essa história é também a da destruição de florestas, rios e carreiras de pedras para a confecção de instrumentos de exploração. Os vários artefatos usados nos ofícios responsáveis pela mineração do ouro e diamantes, pela criação de muares e bovinos, pela plantation de cana e outros produtos agrícolas estiveram associados a vários momentos de nossas transformações econômicas e de nosso empobrecimento ecológico. E, sobretudo, é a história da exploração de um homem pelo outro. Nas mãos do escravo, a enxada; na do feitor, o chicote; na do senhor, o “pão” ou o saco de açúcar. Logo, prazer e angústia também coabitam na história das pequenas coisas. Civilização e barbárie, harmonia e conflito podem se concentrar numa mesma peça. Não à toa, a palavra “objeto” nasce no século XIV e designa, desde então, uma coisa material que pode ser percebida pelos sentidos: tato, olfato, visão, paladar – fazendo com que aquilo que na memória era pedra vire flor. Pois contém beleza, poesia e imaginação, mas não só. Por meio dos objetos e de nossa cultura material, encontramos as relações sociais e modos de produção de nossos ancestrais. Sua transformação e a daqueles que deles fizeram uso. O que os torna possíveis é tudo o que eles têm a dizer aos seus contemporâneos, e tudo o que a gente brasileira diz por meio deles. A histologia é o estudo dos tecidos. Gostaria de oferecer ao leitor uma “histologia histórica”, uma história do tecido multicolor e complexo da nossa gente. Ou seja, um estudo dos fios miúdos e, por vezes, invisíveis que entrelaçaram as tramas de nosso passado nos momentos mais óbvios da vida: em privado ou em público, frente aos ciclos da vida, na repetição dos gestos de sobrevivência. Fios que têm cor, mas também sons. O que parece uma cacofonia, ruído desencontrado, é música. São os sons da rua, da casa, dos instrumentos de trabalho ou de festas. Para isso é preciso olhar pelo retrovisor para ver como nossa gente era, como morava, se vestia, comia, trabalhava, ria, amava e sonhava. De que forma seus problemas foram ultrapassados de geração em geração. Mas é preciso também olhar pelo buraco da fechadura, para enxergar como se comportava em sua intimidade nos momentos de medo, dor ou prazer. Não há limites para se conhecer ou fazer história. O importante é que ela seja boa. Descobrir os caminhos da gente brasileira e conhecer mais e melhor o nosso passado é a receita para se gostar mais dele. RUGENDAS, Johann Moritz. Família de fazendeiros indo à igreja. CASA LITOGRÁFICA ENGELMANN, PARIS, 1835 ISTOCK PHOTOS “N este mesmo dia, à hora das vésperas, avistamos terra!”: era o dia 22 de abril de 1500, e um monte alto e redondo acusou solo novo no Atlântico meridional. Para os homens habituados a velejar ao norte do equador, o céu azul substituiu o esbranquiçado dos outonos e invernos. Em lugar dos campos cultivados, a capa verde da mata se espreguiçava ao longo das praias. O sol dourava a pele, em vez do astro frio que, salvo no verão, mal esquentava os corpos. Pássaros coloridos cruzavam os ares com sua música, diversa do grito estridente das aves marinhas. Do interior da massa verde de troncos e folhas se ouviam silvos, urros, sons de animais desconhecidos. A beleza da paisagem, que mais parecia uma visão do paraíso, interpelava os recém-chegados. No aconchego do abrigo mais tarde batizado de baía Cabrália, as caravelas deixavam para trás a fronteira entre o medo e a miragem: o Atlântico. Um caminho de águas que transportava homens, armas e mercadorias a serviço da ambição da monarquia católica de encontrar uma passagem para as cobiçadas Índias. Mas seria mesmo nova a terra que se avistava? Certamente não. Os espanhóis já conheciam suas regiões ao norte, e é de se perguntar quantas vezes emissários de d. João II, filho de d. Henrique, o Navegador, depois de chegar à Madeira e aos Açores, não teriam se aproximado das costas brasileiras. À sua maneira, os portugueses dominavam a extensão, a cor e as vozes do mar, que os convidava a olhar além do horizonte. E agora, superadas as dificuldades da viagem, eram recompensados pela atração do sol, da luminosidade e... do lucro possível. No início, para os aqui desembarcados, não era o Verbo, mas sim o nada. Apenas matas, medo e solidão. E um vasto litoral, desconhecido, que mais ameaçava do que acolhia. Um espaço aparentemente desabitado – a palavra já existia e designava o locus desérticos –, o lugar sem viva alma. Além das praias, o desconhecido gentio: escondido, armado e perigoso – e que, na maior parte das vezes, podia receber estranhos com uma chuva de flechas. E, no interior, terras incultas, cobertas de densas matas, difíceis de trabalhar. Frente à paisagem infinita, pairava a pergunta que lançara os portugueses à aventura ultramarina: que extraordinárias oportunidades os aguardavam? Nada se sabia sobre os habitantes dessa terra ensolarada. Seria gente como eles ou criaturas estranhas, bizarras, desnaturadas? Como adentrar essa terra desconhecida, que ultrapassava a imaginação e provocava ao mesmo tempo angústias e exaltação? Acreditava-se, então, na existência de povos