CLAUDE LÉVI-STRA USS HISTÓRIA DE LINCE Tradução: BEATRIZ PERRONE-MOISÉS Copyright © 1991 by Librairie Plon Título original: Histoire de lynx Capa: Moema Cavalcanti sobre O lince do Canadá, ilustração extraída de Daniel Giraud Elliot, A monograph of the Felidae or family of cats, Londres, Edição do autor, 1883 (foto: Biblioteca do Museu Nacional de História Natural) Preparação: Mareia Copo/a índice remissivo: Beatriz Calderari de Miranda Revisão: Cecllia Ramos Ana Maria Barbosa Obra publicada com apoio do Ministério da Cultura do governo francês Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lévi-Strauss, Claude, 190B- Historia de Lince / Claude Lévi-Strauss; tradução Beatriz Perrone-Moisés. - São Paulo : Companhia das Letras, 1993. Bibliografia ISDN 85-7164-324-5 !. Antropologia 2. lndios -Religião e mitologia 1, Título. 93.1810 coo-844.91 índices pnrn cntdlogo sistemdtico: 1, lndios americanos: mitologia 299.7 2. Mitologia ameríndios 299.7 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - sp Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 Sed haec prius fuere: nunc recondita senet quiete, seque dedicat tibi, gemei/e Castor, et gemei/e Castoris. Catulo, IV: Dedicatio phaseli, 25-7 ÍNDICE Prefácio 9 Primeira parte DO LADO DO NEVOEIRO 1. Uma gravidez intempestiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 2. Coiote pai e filho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 3. As ladras de dentais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 4. Um mito para voltar no tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 5. A sentença fatídica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 6. Visita às Cabras-das-Montanhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68 Segunda parte CLAREANDO · 7. A criança raptada pelo Mocho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 8. Ornamentos, ferimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94 9. O filho da Raiz . . . . .. .. . .. . . . . . .. . .. . .. . . .. . .. . .. . 104 10. Gêmeos: salmões, ursos, lobos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114 11. Meteorologia familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 12. Ornamentos, alimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128 13. Da lua ao sol ..................................... 137 14. A mulher do cão ................................... 143 Terceira parte DO LADO DO VENTO 15. A captura do vento ................................ 157 16. Mitos indígenas, contos franceses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166 17. Último retorno do desaninhador de pássaros . . . . . . . . . 17 6 18. Relendo Montaigne ............ ·. ................... 190 19. A ideologia bipartida dos ameríndios ................ 204 Notas ............................................ 219 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 Lista das ilustrações ............................... 241 Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243 PREFÁCIO A imagem do tabuleiro de xadrez no início deste livro se apre senta ao mesmo tempo como um esclarecimento e uma desculpa. Desculpa pela possível sensação de ser infrutífera a leitura de capí tulos iniciais, nos quais, antes de começar o debate, foi preciso con sagrar certas páginas àquilo que em xadrez se denomina abertura, que, em dez ou quinze jogadas, às vezes repete o início de outras partidas já conhecidas. Do mesmo modo, um leitor que possua al guma familiaridade com meus outros livros sobre a mitologia ame ríndia poderá julgar que os primeiros capítulos deste patinam. É que eu também tenho de redistribuir minhas peças, os elementos dos mi tos por meio dos quais vai se iniciar uma nova partida. Contra quem jogamos? É o que convém esclarecer. Pois já se poderia hesitar quanto à própria natureza do jogo. Assemelha-se ao xadrez ou não se deve, antes, compará-lo a um jogo de paciên cia, no qual nos sujeitamos a certas limitações e observamos certas regras para colocar em ordem um número finito de elementos - as cartas - cuja distribuição inicial era aleatória? Mas o jogo de ·cartas é passivo e a distribuição aleatória do princípio decorre da iniciativa do jogador, que começou por embaralhar as cartas. O analista dos mitos está diante de uma situação totalmente ou tra. Não é ele o autor da desordem que lhe cabe reduzir. Não ape nas essa desordem nada deve à sua intervenção e a precede, como mesmo aquilo que lhe parece ser uma desordem não o é realmente: antes, ordem diferente, que obedece a limitações e regras distintas daquelas por meio das quais o analista vai operar. Para el_e, os mi tos são adversários. Trata-se de saber qual das duas estratégias - a deles ou a dele - vai vencer. 9 Joga-se contra o mito; e não se deve crer que o mito, que vem a nós de muito longe no tempo ou no espaço, pode apenas nos pro porcionar uma partida perempta. Os mitos não constituem partidas jogadas e acabadas. São incansáveis, entabulam uma nova partida a cada vez que são contados ou lidos. Mas, como no xadrez, à me dida que a partida avança, a estratégia inicialmente impenetrável de um dos adversários se revela. No final, quando ele só pode escolher entre um número limitado de jogadas, o jogador prestes a vencer pode até prever uma estratégia então transparente, e obrigá-la a moldar-se pela sua. Mas afinal para que, dirão alguns, esforçar-se em perceber, ana lisar, desarmar uma estratégia que os mitos repetem sem renovar há dezenas, talvez centenas, de milênios, quando, para explicar o mundo, o pensamento racional, o método e as técnicas científicas suplantaram-nos definitivamente? O mito já não perdeu a partida há muito tempo? Isso não é garantido, ou pelo menos não mais. Pois pode-se duvidar de que uma distância intransponível separe as formas do pensamento mítico e os paradoxos famosos que, sem es peranças de se fazerem compreender de outro modo, os mestres da ciência contemporânea propõem aos ignorantes que somos: "o ga to" de Schrõdinger, o "amigo" de Wigner, ou os apólogos que se inventam para colocar ao nosso alcance o paradoxo EPR (e agora GHZ). Falando assim não creio estar ironizando o pensamento cientí fico, no qual reside, a meu ver, a grandeza do Ocidente. Parece-me apenas que, se nas sociedades sem escrita os conhecimentos positi vos estavam muito aquém dos poderes da imaginação e cabia aos mitos preencher esse espaço, nossa própria sociedade se encontra na situação inversa mas que, por razões opostas sem dúvida, leva ao mesmo resultado. Entre nós, os conhecimentos positivos transbor dam de tal forma os poderes da imaginação que esta, incapaz de compreender o mundo cuja existência lhe é revelada, tem como único recurso voltar-se para o mito. Em outras palavras, entre o especialista que atinge pelo cálculo uma realidade inimaginável e o público ávi do de captar algo dessa realidade cuja evidência matemática desmente todos os dados da intuição sensível, o pensamento mítico volta a ser um intercessor, único meio para os físicos de se comunicar com os não-físicos. Somos informados de que o elétron palpita 7 milhões de bilhões de vezes por segundo, que pode ser ao mesmo tempo onda e cor púsculo, existir simultaneamente aqui e alhures, que as combina- 10