1 HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA Do Império Romano ao ano mil Organização Paul Veyne Tradução Hildegard Feist Consultoria editorial Jônatas Batista Neto http://groups.google.com.br/group/digitalsource Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá‐la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e‐book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente. Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras. HISTORIA DA VIDA PRIVADA Coleção dirigida por Philippe Ariès e Georges Duby 1. Do Império Romano ao ano mil organizado por Paul Veyne 2. Da Europa feudal à Renascença organizado por Georges Duby 3. Da Renascença ao Século das Luzes organizado por Philippe Ariès (t) e Roger Chartier 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra organizado por Michelle Perrot 5. Da Primeira Guerra a nossos dias organizado por Antoine Prost e Gérard Vincent Copyright © 1985 by Editions du Seuil Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Título original Histoire de la vie privée — Vol. 1: De l'Empire romain à l'an mil Na versão de bolso, foram suprimidas imagens que constam na primeira edição da série, que vem sendo publicada pela Companhia das Letras desde 1989. Capa Jeff Fisher Preparação Isabel Jorge Cury Revisão Diana Passy / Vivian Miwa Matsushita Índice remissivo Verba Editorial Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Título original: Histoire de la vie privée : vol. 1: de l'Empire romain à l'an mil. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-359-1378-1 1. Europa — Civilização 2. Europa — História 3. Europa — Usos e costumes I. Veyne, Paul. II Batista Neto, Jônatas. 08-11750 CDD-940.1 Índice para catálogo sistemático: 1. Europa : Vida privada : Civilização : História 940.1 2009 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 — São Paulo — SP Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br ∗ SUMÁRIO Prefácio — Georges Duby ........................................................................ 7 Introdução — Paul Veyne ..................................................................... 11 1. O IMPÉRIO ROMANO — Paul Veyne ................................................... 11 2. ANTIGUIDADE TARDIA — Peter Brown ............................................. 213 3. VIDA PRIVADA E ARQUITETURA DOMÉSTICA NA ÁFRICA ROMANA — Yvon Thébert ............................................................. 285 4. ALTA IDADE MÉDIA OCIDENTAL — Michel Rouche ................... 403 5. BIZÂNCIO: SÉCULOS XXI — Évelyne Patlagean ................................. 533 Bibliografia, ........................................................................................................ 608 Índice remissivo, ............................................................................................... 631 ∗ A paginação deste índice corresponde à edição original em papel. A numeração foi inserida entre colchetes no decorrer do texto, indicado sempre o final de cada página. PREFÁCIO À HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA Georges Duby A ideia, a excelente ideia de apresentar a um público vasto uma história da vida privada provém de Michel Winock. Philippe Ariès aproveitou-a e deu início à tarefa. Todo o trabalho que realizamos — durante alguns anos com ele e depois infelizmente sem ele, lamentando seu brusco desaparecimento — deve ser dedicado à memória desse historiador generoso que, como um cavalheiro, livremente, sob o impulso de suas penetrantes intuições, conduziu as pesquisas cuja fecundidade e ousadia conhecemos, aventurando-se sempre em primeiro lugar, como um explorador, nos setores da história moderna aparentemente impenetráveis, abrindo caminhos, conclamando outros pioneiros a se engajarem para melhor sentir o que foram, na Europa dos séculos XVII e XVIII, a infância, a vida em família, a morte. Ao entusiasmo de Ariès, a essa audácia mais intensa, já que ele não estava preso às rotinas universitárias, devemos o fato de não termos perdido a coragem e levado sua obra até o fim, guiados por suas reflexões, pelos conselhos que deu nas reuniões preparatórias, durante o colóquio que nos reuniu, medievalistas, em Sénanque em setembro de 1981, e no que conduziu em Berlim, última etapa de seu itinerário científico. O percurso na verdade foi singularmente arriscado. Em terreno inteiramente virgem. Não havia predecessores que tivessem selecionado ou pelo menos indicado o material de pesquisa. A primeira vista este parecia abundante, mas disperso. Precisávamos abrir as primeiras brechas no emaranhado, marcar o terreno e — como esses arqueólogos que, num espaço inexplorado que sabem ser de grande riqueza, mas que se revela extenso demais para ser vasculhado sistematicamente em toda a sua extensão, limitam-se a cavar algumas valas de referência — tínhamos de nos contentar com sondagens sem alimentar a ilusão de poder separar os conjuntos. Obrigados a avançar tateando, desde o início nos conformamos em apresentar aos [pág. 7] leitores não um balanço, mas um programa de pesquisa. O que se segue apresenta, com efeito, mais perguntas que respostas. Esperamos ao menos que aguce as curiosidades e incite outros pesquisadores a continuar o trabalho, desbravar novos trechos, se aprofundarem naqueles que superficialmente aplainamos. Havia outro obstáculo, menos aparente porém mais difícil. Decidíramos estender nossas pesquisas a história da civilização ocidental em toda a sua extensão. Por conseguinte, tratava-se de aplicar a mais de dois milênios, e do Norte ao Sul, por entre múltiplas províncias de costumes e modos de vida bastante diversos, um conceito — o da vida privada — que, sabíamos, sob a forma pela qual o conhecemos realmente adquiriu consistência em tempos bem recentes, no século XIX, em algumas regiões da Europa. Como esboçar sua pré-história? Como definir, em suas variações, as realidades que encobriu ao longo do tempo? Ainda era preciso delimitar o tema com exatidão, não se desviar uma vez mais para a vida cotidiana — a casa, por exemplo, o quarto, o leito —, não cair numa história do individualismo, numa história da intimidade. Partimos, portanto, da evidência de que, sempre e por toda parte, se exprimiu no vocabulário o contraste, claramente detectado pelo senso comum, que opõe o privado ao público, aberto á comunidade do povo e submetido a autoridade de seus magistrados. De que uma área particular, claramente delimitada, é atribuída a essa parte da existência que todas as línguas denominam privada, uma zona de imunidade oferecida ao recolhimento, onde todos podemos abandonar as armas e as defesas das quais convém nos munirmos quando nos arriscamos no espaço público; onde relaxamos, onde nos colocamos a vontade, livres da carapaça de ostentação que assegura proteção externa. Esse lugar é de familiaridade. Doméstico. Íntimo. No privado encontra-se o que possuímos de mais precioso, que pertence somente a nós mesmos, que não diz respeito a mais ninguém, que não deve ser divulgado, exposto, pois é muito diferente das aparências que a honra exige guardar em público. Naturalmente inscrita no interior da casa, da morada, encerrada sob fechaduras, entre muros, a vida privada parece, portanto, enclausurada. No entanto, por dentro e por fora dessa "clausura", [pág. 8] cuja integridade as burguesias do século XIX pretenderam defender a todo custo, constantemente se travam combates. Voltado para o exterior, o poder privado deve sustentar os assaltos do poder público. Deve também, do outro lado da barreira, conter as aspirações dos indivíduos à independência, pois o recinto abriga um grupo, uma formação social complexa, na qual as desigualdades, as contradições parecem atingir o ápice, o poder do homens se choca mais intensamente do que fora com o poder das mulheres, o dos velhos com o dos jovens, o poder dos amos com a indocilidade dos criados. Desde a Idade Média, todo o movimento de nossa cultura tornou mais agudo esse duplo conflito. O fortalecimento do Estado provocou intrusões mais agressivas e penetrantes, enquanto a abertura das iniciativas econômicas, a decadência dos rituais coletivos, a interiorização das atitudes religiosas tendiam a valorizar, a liberar a pessoa, ajudavam a fortificar — fora da família, da casa — outros grupos de convívio, levando, assim, a diversificar o espaço privado. Progressivamente para os homens e a princípio nas cidades e nos vilarejos, tal espaço distribuiu-se em três partes: a morada, onde se confinava a existência feminina; as áreas de atividades também privatizadas — a oficina, a loja, o escritório, a fábrica; e, finalmente, os lugares propícios às cumplicidades e ao lazer masculinos, como o bar ou o clube. A ambição desses cinco volumes é precisamente tornar perceptíveis as mudanças, lentas ou bruscas, que, ao longo do tempo, afetaram a noção e os aspectos da vida privada. Com efeito, os traços da vida privada se transformam incessantemente. Em cada etapa "alguns provêm de um passado distante", anotou Philippe Ariès num dos documentos de trabalho que nos deixou. Outros, acrescentou ele, "mais recentes, estão destinados a evoluir, desenvolvendo-se, abortando ou modificando-se a ponto de se tornarem irreconhecíveis". Mais consciente dessa mobilidade que associa de modo permanente a continuidade e a inovação, o leitor talvez se sinta menos desorientado em face da evolução que se processa diante de seus olhos e cujo ritmo, ao acelerar-se, de algum modo o perturba. Não vê se estiolarem, entre o lar e o local de trabalho, os espaços intermediários da sociabilidade privada? Não assiste a rápida e perturbadora eliminação da diferença entre masculino e feminino, que a história nos mostra [pág. 9] fortemente ancorada na distinção entre o exterior e o interior, entre o público e o privado? Não percebe que hoje em dia é urgente procurar salvaguardar a própria essência da pessoa, pois, demolindo as últimas muralhas da vida privada, o fulgurante progresso técnico desenvolve essas formas de controle estatal que, se não tomarmos cuidado, logo reduzirão o indivíduo a um número no meio de um imenso e aterrador banco de dados? [pág. 10] INTRODUÇÃO Paul Veyne De César e Augusto a Carlos Magno, e até a ascensão dos Comneno ao trono de Constantinopla, este livro abrange oito ou mesmo dez séculos de vida privada. Não deixa de haver lacunas, que são intencionais; um inventário completo não teria atrativos para um leitor erudito. Conhecem-se muitos séculos através de uma documentação tão pobre que não tem vida; o tecido desse milênio está crivado de lacunas esparsas. Nesse manto excessivamente grande preferimos recortar fragmentos mais ou menos coerentes, cujas imagens ainda se animam. Primeiro fragmento: o Império Romano na época do paganismo, relatado com detalhes suficientes para ressaltar o contraste da cristianização; devemos agradecer ao grande historiador Peter Brown por ter se encarregado de colocar tal ácido no reagente. Esse quadro de duas faces — paganismo e cristianismo — articula-se, portanto, como um drama: o drama da passagem do "homem cívico" ao "homem interior". Segundo fragmento: o quadro material da vida privada; a casa, na Antiguidade pagã e cristã, é estudada em detalhe, menos na materialidade do que nas funções, na arte e na vida; parece-nos que se trata de um estudo muito novo: esperamos que os leitores se contentem duplamente por termos nos estendido sobre o assunto. De início quisemos equiparar a abordagem da arquitetura privada ao estudo da arquitetura pública urbana que, na Histoire de la France urbaine, ocupa amplo espaço no texto. Nossa segunda razão é o grande interesse do público atual pela arqueologia; no verão vemos os turistas se aglomerarem em grande número nos sítios de pesquisa, com o guia nas mãos. O guia, porém, não é tudo: não pode ensinar a ver, a interpretar pobres restos, a reconstruir mentalmente as paredes, os anda- [pág. 11] res e o telhado de uma casa reduzida aos alicerces, a imaginar os habitantes, suas ocupações, sua circulação dentro da casa, sua promiscuidade ou seu distanciamento. Terceiro fragmento: a Alta Idade Média ocidental e o Oriente bizantino. No século V de nossa era, o Império Romano perde suas províncias ocidentais, onde os bárbaros delimitam reinos. Reduzido à metade oriental, o Império Romano continua; a civilização bizantina não é outra coisa senão a continuação da Antiguidade romana, transformada pouco a pouco apenas pela força do tempo que passa. Dois quadros contrastados fazem ver, no espírito da "nova história", a vida do Ocidente merovíngio e carolíngio e do Império Bizantino na época da dinastia macedônia. Diante disso, o leitor da presente história da vida privada pode perfeitamente nos perguntar: por que começar com os romanos? Por que não com os gregos? Por que os romanos? Porque sua civilização seria o fundamento do Ocidente moderno? Não sei. Não se tem certeza de que seja tal fundamento (importam muito mais o cristianismo, a tecnologia e os direitos do homem); não percebemos bem o sentido exato que devemos dar ao termo "fundamento" para evitar que uma discussão sobre o assunto conduza a meras divagações de conotações políticas ou didáticas. Enfim, podemos achar que um historiador não tem necessariamente como função reconfortar arrivistas em suas ilusões genealógicas. A história, essa viagem ao outro, deve servir para nos fazer sair de nós, tão legitimamente quanto nos confortar em nossos limites. Os romanos são prodigiosamente diferentes de nós e, em matéria de exotismo, nada têm a invejar aos ameríndios e aos japoneses. Essa foi uma primeira razão para começar a presente história por eles: para mostrar um contraste, e não o futuro Ocidente se delineando. A "família" romana, para falar só dela, parece-se tão pouco com sua lenda ou com o que chamamos de família… Mas, então, por que não os gregos? Porque os gregos estão em Roma, são o essencial de Roma; o Império Romano é [pág. 12] a civilização helenística nas mãos brutais (também aqui, nada de sermões humanistas) de um aparelho de Estado de origem Italiana. Em Roma, a civilização, a cultura, a literatura, a arte e a própria religião provieram quase inteiramente dos gregos ao longo do meio milênio de aculturação; desde sua fundação, Roma, poderosa cidade etrusca, não era
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