HISTÕRIA CONCISA. DA LITERATURA BRASILEIRA. ALFREDO BOSI (Da Universidade de S. Paulo) EDITORA CULTRIX. 2 ' edição. 5 imprcssão. MCMLXXV Direitos Reservados. EDITORA CULTRIX LTDA. Rua Conselheiro Furtado, 64o, 6",fone 278-4o11. Impreseo no Brasil. Frinied In Braxsl I N D I G E I. CONDIÇAO COLONIAL Literatura e situação, 13. Textos de informação, 15. A carta de Caminha, 16. Gândavo, 18. O "Tratado" de Gabriel Soares 2O. A informação dos jesuítas, 21. Anchieta, 22. Os "Diálogos das Grandezas do Brasil", 27. Da Crônica à história: Frei Vicente, II. ECOS DO BARROCO O Barroco: espírito e estilo, 33. O Barroco no Brasil, 39. A "Prosopopéia" de Bento Teixeira, 41. Gregório de Matos, 42. Botelho de Oliveira, 44. Menores, 47. A prosa. Vieira, 47. Prosa alegórica, 51. As Academias, 52. III. ARCÁDIA E ILUSTRAÇAO Dois momentos: o poético e o ideológico, 61. Cláudio Manuel da Costa, 6o. Basílio da Gama, 72. Santa Rita Durão, 75. Árca- des ilustrados: Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Silva Alvarenga, 78. Da Ilustração ao Pré-romantismo, o9. Os gêneros públicos, 92. IV. O ROMANTISMO Caracteres gerais, 99. A situação dos vários romantismos, 99. Temas, 1O1. O nível estético, 1O4. O Romantismo oficial no Brasil. Gonçalves de Magalhães, 1O6. Pôrto-Alegre 1O9. A histo- riografia, 1O9. Teixeira e Sousa, 111. A poesia. Gonçalves Dias, 114. O romantismo egótico: a 2' geração,12O. tLlvares de Azevedo, 121. Junqueira Freire, 124. Laurindo Rabêlo, 125. Casimiro de Abreu,127. Epígonos,12o. Varela 129. Castro Alves,132. Con- dores, 137. Sousândrade, 137. A ficção, 139. Macedo, 143. Ma- nuel Antônio de Almeida,145. Alencar,14o. Sertanistas: Bernardo Guimarães, Taunay, Távora, 155. O teatro, 163. Martins Pena, 163. Gonçalves Dias, 167. Alencar, 16o. Agrário de Meneses, Paulo Eiró, 169. A consciência histórica e critica, 171. Tradiciona- lismo,172. Radicalismo,174. Permanência da Ilustração. J. Fran- cisco Lisboa, 175. V . O REALISMO Um nôvo ideário, 181. A ficção, 18o. Machado de Assis,193. Raul Pompéia, 2O3. Aluísio Azevedo e os principais naturalistas, 2O9. Inglês de Sousa, 214. Adolfo Caminha, 216. O Naturalismo e a inspiração regional, 217. Manuel de Oliveira Paiva, 218. Na- turalismo estilizado: "art nouveau", 219. Coelho Neto, 222. Afrâ- nio Peixoto, 23O. Xavier Marques, 231. O regionalismo como programa, 232. Afonso Arinos, 234. Valdomiro Silveira, 236. Simões Lopes Neto, 23o. Alcides Maia, 24O. Hugo de Carvalho Ramos, 241. Monteiro Lobato, 241. A Poesia, 244. O Parna- A CONDIÇo O COLONlAL #Literatura e situação O problema das origens da nossa literatura não pode formu- lar-se em têrmos de Europa, onde foi a maturação das grandes nações modernas que condicionou tôda a história cultural, mas nos mesmos têrmos das outras literaturas americanas, isto é, a partir da afirmação de um complexo colonial de vida e de pen- samento. A colônia é, de início, o objeto de uma cultura, o "outro" em relação à metrópole: em nosso caso, foi a terra a ser ocupa- da, o pau-brasil a ser explorado, a cana de açúcar a ser culti- vada, o ouro a ser extraído; numa palavra, a matéria-prima a ser carreada para o mercado externo ( 1 ) . A colônia só deixa de o ser quando passa a sujeito da sua história. Mas essa passa- gem fêz-se no Brasil por um lento processo de aculturação do português e do negro à terra e às raças nativas; e fêz-se com na- turais crises e desequih'brios. Acompanhar êste processo na es- fera de nossa consciência histórica é pontilhar o direito e o avêsso do fenômeno nativista, complemento necessário de todo comple- xo colonial ( z ) . Importa conhecer alguns dados dêsse complexo, pois foram ricos de conseqüências econômicas e culturais que transcenderam os limites cronológicos da fase colonial. Nos primeiros séculos, os ciclos de ocupação e de explora- ção formaram ilhas sociais ( Bahia, Pernambuco, Minas, Rio de rodapé ( 1 ) Para a análise em profundidade do fenômeno colonial, reco- mendo a leitura dos ensaios de J: P. Sartre ("Le colonialisme est un syr tème", in Les Temps Modernes, n" 123) e de Georges Balandier ("Socio- logie de la dépendance", in Cahiers Internationaux de Sociologie, vol. XII, 1952). V. a Bibliografia final dêste volume onde são arrolados alguns cstudos brasileiros já "clássicos". ( 2 ) V. Afrânio Coutinho, A Tradição Af ortunada, José Olympio Ed., 196o, onde o crítico estuda o fator "nacionalidade" em vários momen- tos ds critics brasileira. 13 Janeiro, São Paulo), que deram à Colônia a fisionomia de um arquipélago cultural. E não só no f acies geográfico: as ilhas de- vem ser vistas também na dimensão temporal, momentos suces- sivos que foram do nosso passado desde o século XVI até a In- dependência. p aís em subsiste- Assim, de um lado houve a dis ersão do p ( * ) a mas regionais, até hoje relevantes para a históre onsável pelo de outro, a seqüência de influxos da Europa, p paralelo que se estabeleceu entre os momentos de além-Atlântico e as esparsas manifestações literárias e aztísti.cas do Brasil-Coló- nia: Barroco, Arcádia, Ilustração, Pré-Romantismo . . . Acresce que o paralelismo não podia ser rigoroso pela óbvia razão de estarem fora os centros primeiros de irradiação men- tal. De onde, certos descompassos que causariam espécie a um estudioso habituado às constelações da cultura européia: coexis- tem, por exemplo, com o barroco do ouro das igrejas mineiras e baianas a poesia arcádica e a ideologia dos ilustrados que dá côr doutrinária às revoltas nativistas do século XVIII. Códi- gos literários europeus mais mensagens ou conteúdos já colo- niais conferem aos três primeiros séculos de nossa vida espiritual um caráter lv'brido, de tal sorte que parece uma solução aceitá- vel de compromisso chamá-lo luso-brasileiro, como o fêz AntB- nio Soazes Amora na História da Literatura Brasileira ( ** ). Convém lembrar, por outro lado, que Portugal, perdendo a autonomia politica entre 15oO e 164O, e decaindo verticalmen- te nos séculos XVII e XVIII, também passou para a categoria de nação periférica no contexto europeu; e a sua literatura, de- ois do clímax da épica quinhentista, entrou a girar em torno de outras culturas: a Espanha do Barroco, a Itália da Arcádia, a Fran a do Iluminismo. A situação afetou em cheio as inci- pientes letras coloniais que, já no limiar do século XVII, refle- tiriam correntes de gôsto recebidas "de segunda mão". O Bra- sil reduzia-se à condição de subcolônia . . . A rigor, só laivos de nativismo, pitoresco no século XVII e já reivindicatório no século seguinte, podem considerar-se o di- rodapé (*) No ensaio Uma Interpretaiãá d p LásrregiõesBbásileirasi dna Moog da ênfase ao ilhamento cultura as es mntados certos exageros, a tese é plenamente sustentável (V. o es do, datado de 1942, agora incluido em Temas Brasileiros de diversos autores, Rio, Casa do Estudante do Brasil, 196o). ( ** ) S. Paulo, Ed. Saraiva, 1955. 14 visor de águas entre um gongórico português e o baiano Bote- lho de Oliveira, ou entre um árcade coimbrão e um lfrico mi- neiro. E é sempre necessário distinguir um nativismo estático, que se exaure na menção da paisagem, de um nativismo dinâ- mico, que integra o ambiente e o homem na fantasia poética ( Ba- sílio da Gama, Silva Alvarenga, Sousa Caldas ) . O limite da consciência nativista é a ideologia dos inconfi- dentes de Minas, do Rio de Janeiro, da Bahia e do Recifc. Mas, ainda nessas pontas-de-lança da dialética entre Metrópole e Co- lônia, a última pediu de empréstimo à França as formas de pen- sar burguesas e liberais para interpretar a sua própria realidade. De qualquer modo, a busca de fontes ideológicas não-portuguê- sas ou não-ibéricas, em geral, já era uma ruptura consciente mm o passado e um caminho para modos de assimilação mais dinâ- micos, e pròpriamente brasileiros, da cultura européia, como se deu no periodo romântico. Resta, porém, o dado preliminar de um processo colonial, que se desenvolveu nos três primeiros séculos da vida brasilei- ra e condicionou, como nenhum outro, a totalidade de nossas reações de ordem intelectual: e se se prescindir da sua análise, creio que não poderá ser compreendido na sua inteira dinâmica nem o próprio fenômeno da mestiçagem, núcleo do nosso mais fecundo ensaísmo social de Sílvio Romero a Euclides, de Olivei- ra Viana a Gilberto Freyre. Textoé de informação Os primeiros escritos da nossa vida documentam precisa- mente a instauração do processo: são in f ormações que viajantes e missionários europeus colheram sôbre a natureza e o homem brasileiro. Enquanto informação, não pertencem à categoria do literário, mas à pura crônica histórica e, por isso, há quem as omita por escrúpulo estético ( José Veríssimo, por exemploe na sua História da Literatura Brasileira). No entanto, a pré-histó- ria das nossas letras interessa como reflexo da visão do mundo e da linguagem que nos legaram os primeiros observadores do país. n graças a essas tomadas diretas da paisagem, do índio e dos grupos sociais nascentes, que captamos as condições primi- tivas de uma cultura que só mais tarde poderia contar com o fe- nomeno da palavra-arte. 15 E não é s6 como testemunhos do tempo que valem tais g Em documentos: também como su estões temáticas reaomdoscontra mais de um mommto a inteligência brasileira, g certos processos agudos de europeização, procurou nas raizes da terra e do nativo imagens para se afirmar em face do estrangei- ro: então, os cronistas voltaram a ser lidos, e até glosadós, tan- to por um Alencar romântico e saudosista como por um Mário ou um Qswald de Andrade moderáistas. Daí o interêsse obli- quamente estético da ` literatura e informação. Dos textos de origem portuguêsa merecem destaque: a) a Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel, referindo o descobrimento de uma nova terra e as primeiras im- ressões da natureza e do aborígine; p o Diário de Navegação de Pêro Lopes e Sousa escri- ) , vão do primeiro grupo colonizador, o de Martim Afonso de Sousa ( 153O ); c) o Tratado da Terra do Brasil e a História da Provfn- cia de Santa Cruz a gue Vulgarmente Chamamos Brasil de Pêro Magalhães Gândavo ( 1576 ) ; Gen- d) a Narrativa Epistolar e os Tratados da Terra e da te do Brasil do jesuíta Fernão Cardim ( a primeira certamente de 15o3); de e ) o Tratado Descritivo do Brasil de Gabriel Soares Sousa (15o7); f ) os Diálogos das Grandezas do Brasil de Ambrósio Fer- nandes Brandão ( 1618 ) . g) as Cartas dos missionários jesuítas escritas nos dois q (a meiros séculos de cateq uese ); dos Gentios do Pe. Ma- h) o Diálogo sobre a Conversão nuel da Nóbrega; d Salvador ( 1627 ) . i) a História do Brasil de Fr. Vicente o A carta de Cs a O qué para a nossa história significou uma autêntica cer- tidão de nascimento, a Carta de Caminha a D. Manuel, dando RODAPÉ ( a ) liá volumes antológims preparados lo Pe. Serafim Leite S. J.: Cartas Jesuiticas, 3 vols., Rio, 1933; Novar Ca artá edotBráil a e Mas,E - Ed. Nacional,194O. V. também: Nóbrega critos, ed. org. pox Serafim I.eite, Coimbra, 1953. 16 notícia da terra achada, insere-se em um gênero copiosamente representado durante o século XV em Portugal e Espanha: a literatura de viagens ( 4 ) . Espírito observador, ingenuidade ( no sentido de um realismo sem pregas ) e uma transparente ideolo- gia mercantilista batizada pelo zêlo missionário de uma cristan- dade ainda medieval: eis os caracteres que saltam à primeira lei- tura da Carta e dão sua medida como documento histórico. Des- crevendo os índios: A feição dêles é serem pardos maneiras d'avermelhados de bons rostros e bons narizes bem feitos. Andam nus sem nenhuma m- bertura, nem estimam nenhuma cousa cobrír nem mostrar suas ver- gonhas e estão acêrca disso com tanta inocência como têm de mos- tra o rosto. Em relêvo, a postura solene de Cabral: O capitão quando êles vieram estava assentado em uma cadei- ra e uma alcatifa aos pés por estrado e bem vestido com um colar d'ouro mui grande ao pescoço. Atenuando a impressão de selvageria que certas descrições po- deriam dar: Eles porém contudo andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo que as mansas, porque os mrpos seus são tão limpos e tão gordos e tão fremosos que não pode mais ser. A conclusão é edificante: De ponta a ponta é tóda praia... muito chã e muito fremosa. ( . . . ) Nela até agora não pudemos saber que haja ouro nem pra- ta... porém a terra em si é de muito bons ares assim frios e tem· perados como os de Entre-Doiro-e-Minho. Águas são muitas e in- findas. E em tal maneira é graciosa que querendo-a aproveitar, dar-se-â nela tudo por bem das águas que tem, porém o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente e esta deve ser a principal semente que vossa alteza em ela deve lançar. RODAPÉ (4) Duas boas edições do documento são: A Carta de P. V. de Ca- minha, com um estudo de Jayme Cortesão, Rio, Livros de Portugal, 1943, e A Carta, estudo critico de J. F. de Almeida Prado; texto e glossârio de Maria Beatriz Nizza da Silva, Rio, Agir, 1965. l7 #Gândavo Quanto a Pêro de Magalhães Gândavo, português, de ori- ( rofessor de H a- gem flamen a o nome deriva de Gand), p nidades e amigo de Camões, devem-se-lhe os primeiros infor- mes sistemáticos sôbre o Brasil. A sua estada aqui parece ter O Tratado foi redigi- coincidido com o govêrno de Mem dp bOcou em vida do autor, do por volta de 157O, mas não se vindo à luz só em 1826, por obra da Academia Real das Ciên- · gal uanto à História, saiu em Lisboa, em 1576,scom oetPulo completo de História da Provincia de Ambos os Santa Cru z a gue VuL armente Chamamos Brasil. ro aganda textos são, no dizer de Capistrano de Abreu, uma p p da imigração" ois cifram-se em arrolar os bens e o clima da , p ' "es ecialmen- colônia, encarecendo a possibilidade de os reinois ( p te aquêles que vivem em p obreza" ) virem a desfrutá-la. Gândavo estava ciente de seu papel de pioneiro A causa pzincipal que me obrigou a lançar mão da presente história, e sair com ela à luz, foi por não haver atégora pessoa que a empreendesse, havendo já setenta e tantos anos que esta Pro- vincia é descoberta (Prólogo) e procurou cumpri-lo com diligência, o que lhe valeu os enc“ mios de Camôes nos Tercetos com que o poeta apresenta a História: 'Tô claro estilo, engenho curioso. Trata-se naturalmente de uma objetividade relativa ao uni- verso do autor: humanista, católico, interessado no proveito do Reino. Assim, lamenta que ao nome de Santa Cruz tenha o "vulgo mal considerado" preferido o de Brasil, qdepois que o pau da tinta come ou de vir a êstes Reinos ao ual chamaram brasil por ser vermelho, e ter semelhança de brasa". Quem fala é o letrado medieval português. A sua atitude intima, na ue se rastreará até os épicos mineiros, esteira de Camões, e q de glória para a consiste em louvar a terra enquanto ocasião gabos ao metrópole. Por isso, não devemos enxergará os 1 e té a serviço clima e ao solo nada além de uma curiosida e so er , q outros cronis- do bem português. O nativismo a ui c m quá uer conotação tas, situa-se no nível descritivo e não te q subjetiva ou polêmica. 18 # Isto pôsto, pode-se entrever certo otimismo ( que em via- jantes não portuguêses chega a ser visionário) quanto às poten· cialidades da colônia: e quem respingou os louvores dêsses cro- nistas, ainda imersos em uma credulidade pré-renascentista, pôde falar sem rebuços em "visão do paraiso" como leitmotiv das des- crições: Eldorado, Éden recuperado, fonte da eterna juventude, mundo sem mal, volta à Idade de Ouro ( 6 ) . Mas o tom predominante é sóbrio e a sua simpleza vem de um espírito franco e atento ao que se lhe depara, sem apêlo fá- cil a construções imaginárias. Gândavo dá notícia geográfica da terra em geral e das capi- tanias em particular. Lendo-o aprende-se, por exemplo, que a escravidão começou cedo a suportar o ônus da vida colonial: E a prirneira cousa que (os moradores] pretendem adquirir são escravos para lhes fazerem suas fazendas e se uma pessoa che- ga na terra a alcançar dous pares, ou meia dúzia dêles ( ainda que outra cousa não tenha de seu), logo tem remédio para poder hon- radamente sustentar sua família: porque um lhe pesca e outro lhe caça, os outros lhe cultivam e grangeiam suas roças e desta manei- ra não fazem os homens despesa em mantimentos com seus escra- vos nem com suas pessoas ( cap. IV ) . Há na obra descrições breves mas vivas de costumes indi- genas: a poligamia, a "couvade", as guerras e os ritos de vingan- ça, a antropofagia. Nem faltam passagens pinturescas; no ca- pítulo "Das plantas, mantimentos e fruitos que há nesta Provin- cia", fazem-nos sorrir certos sizniles do cronista maravilhado com a flora tropical: Uma planta se dá também nesta Provincia, que foi da ilha de São Tomé, com a fruita da qual se ajudam mustas pessoas a sus- tentar na terra. Esta planta é mui tenra e não muito alta, não tem ramos senso umas fôlhas que serão seis ou sete palmos de comprido. A fruita dela se chama banana. Parecem-se na feição com pepinos e criam-se em cachos. ( . . . ) Esta fruita é mui sabrosa, e das boas, que há na terra: tem uma pele como de figo (ainda que mais dura) a qual lhe lançam fora qdo. a querem comer: mas faz dano à saúde e causa fevre a quem se desmanda nela ( c. V ). RODAPÉ ( 6 ) Cf. Sérgio Buarque de Holanda - Visão do Para£so. Os Motivos Edên£cos no Descobrimento e Colonização do Brasil, Rio, José Olympio, 1959. Uma excelente revisão do mito do bom selvagem e de suas fontes quinhentistas encontra-se no ensaio de Giuliano Gliozzi, "I1 mito del buon selvaggio", nella storiografia tra Ottocento e Novecento", in Rivista di Filoso jia, Turim, set. 1967, pp. 2oo-335. 19 cc " Dos ananases diz que nascem como alcachofres ,e do ca u que "é de feição de peros repinaldos e muito amarelo . Sua atitude em face do índio prende-se aos comuns padrões culturais de português e católico-medieval; e vai da observação euriosa ao juízo moral negativo, como se vê neste comentário entre sério e jocoso sôbre a língua tupi: Esta é mui branda, e a qualquer nação fácil de tomar. tllRu vocábulos há nela de que não usam senão as £êmeas, e outros que não servem senão para os machos: carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R cousa digna de espanto porque assim não têm Fé, nem Lei nem Rei, c desta maneira vi- vem desordenadamente sem terem além disso conta, nem pêso, nem medido (Cap. X). A História termina com uma das tônicas da literatura in- formativa: a preocupação com o ouro e as pedras preciosas que se esperava existissem em grande quantidade nas terras do Bra- sil, à semelhança das peruanas e mexicanas. E, espelho de toda a mentalidade colonizadora da época, afirma ter sido, sem dú- vida, a Providência a atrair os homens com a tentação das rique- zas, desde o âmbar do mar até as pedrarias do sertão, como o interêsse seja o que mais leva os homens trás si que outra nenhuma cousa que haja na vida, parece manifesto querer entretê-los na terra com esta riqueza do mar, até chegarem a des- cobrir a uelas andes minas que a mesma terra promete, pera que assi des á manei a tragam ainda tôda aquela cega e bárbara gente que habita nestas partes, ao lume e conhecimento da nossa Santa Fé Católica, que será descobrir-lhe outras maiores no céu, o que nosso Senhor permite que assim seja pera glória sua e salvação de tantas almas ( cap. VIII ) . No mesmo parágrafo, e em tranqüilo convívio, o móvel eco- nômico e a cândida justificação ideológica. n "Tratadó ' de Gabriel Soares Quanto a Gabriel Soares de Sousa ( 154O2-1591 ), a crid s histórica tem apontado o seu Tratado Descritivo do Brasil em 15O7 ( g ) como a fonte mais rica de informações sobre a colonia 1 O7 lo XVI. RODAPÉ ( g ) Eo ção aconselhável, a incluida na Col. Brasiliana, vol. 117, Cia. Ed. Nacional, 193o. 2O Notícias de Varnhagen sôbre o autor dão-no como portu- guês, senhor de engenho e vereador na Câmara da Bahia, onde registrou suas observações durante os dezessete anos em que lá morou ( 1567-15O4 ). Tendo herdado do irmão um roteiro de minas de prata que se encontrariam junto às vertentes do Rio São Francisco, foi à Espanha pedir uma carta-régia que lhe con- cedesse o direito de capitanear uma entrada pelos sertões minei- ros; obteve-a, mas a expedição malogrou vindo êle a perecer em 1591. O Tratado consta de duas partes: "Roteiro Geral com Lar- gas Informações de Tôda a Costa do Brasil", de caráter geo-his- tórico e bastante minucioso; e o "Memorial e Declaração das Grandezas da Bahia de Todos os Santos, de sua Fertilidade e das Outras Partes que Tem". Partilha com Gândavo o objetivo de informar os podêres da Metrópole sôbre as perspectivas que a colônia oferecia, ace- nando igualmente, ao cábo do livro, com as minas de ouro, pra- ta e esmeralda, por certo aquela mítica Vupabuçu ( "alagoa gran- de" ) em cuja procura acharia a morte. Mas é muito mais vário e sugestivo que o autor da História da Provincia de Santa Cruz; com um zêlo de naturalista que espantaria um antropólogo mo- derno da altura de Alfred Métraux ( 7 ), Gabriel Soares de Sou- sa percorre tôda a fauna e a flora da Bahia fazendo um inventá- rio de quem vê tudo entre atento e encantado. Os capítulos sô- bre o gentio acercam-se do relatório etnográfico, pois não só co- brem a informação básica, da cultura material à religiosa, como sublinham traços peculiares: são de ler as descrições vivas da "couvade", dos suicidas comedores de terra, dos exibicionistas e dos feiticeiros chamadores da morte. A lnformação doa lesuitaa Paralelamente à crônica leiga, aparece a dos jesuítas, tão rica de informações e com um "plus" de intenção pedagógica e moral. Os nomes mais significativos do século XVI são os de Manuel da Nóbrega e Fernão Cardirn, merecendo um lugar à parte, pela relevância literária, o de José de Anchieta. RODAPÉ ( 7 ) "Soares de Sousa a un esprit scientifique étonnant pour son époquc", em La Civilisation matérielle des tribr<s tupi-yuarani, Parin , 192o. 21 De Nóbre a além do epistolário cu o valor histórico não ach se faz mister encarecer, temos o Diálogo sôbre a Conversão-do sa, Gentio ( 155O7 ), documento notável pelo equih'brio com que o sensato jesuíta apresentava os as ectos "negativos" e "positi- vin vos" do índio, do ponto de vista da sua abertura à conversão. E vale a pena citar um trecho em que, com agudeza rara para o tempo, mostra desprezar argumentos de ordem racial: so Texem os romanos e outros mais gentios mais polícia [= ci- fiI vilização, urbanidade] que êstes não lhes veio de tereç natural- mente melhor entendimento mas de terem melhor cria ão e cria- tú rem-se mais pollticamente (Diálogo, 93). dt I ual realismo, mas menor perspicácia, encontra-se nas rela- ções que o Pe. Fernão Cardim, na qualidade de Provincial, en- viava a seus superiores europeus relações que circulam enfeixa- das sob o título de Tratado da Terra e da Gente do Brasil ( s ). Anchieta. Assim como os cronistas se debruçaram sôbre a terra e o nativo com um espírito ao mesmo tempo ingênuo e prático, os missionários da Companhia de Jesus, aqui chegados nem bem criada a ordem, uniram à sua fé ( nêles ainda de todo ibérica e medieval ) um zêlo constante pela conversão do gentio, de que os escritos catequéticos são cabal documento. E, se um Nóbrega exprime em cartas incisivas e no Diálogo o traço prag- mático do administrador; ou, se um Fernão Cardim lembra Gân- ela có ia de informes que sabe recolher nas ap ániaselu eaper órre, só em José de Anchieta (") é que RODAPÉ ( a o aconselhável, a da Brasiliana (Cia. Rd. Nacional, 1939), com introdução de Rodolfo Garcia e notas de Capistrano de Abreu e Batista Caetano. ( 9 C JOSÉ DE ANCHIETA. NaSCeU naESll(cid:18)htO Sá t (cid:3) xlem uma das Ca- nárias, em 1534 e faleceu em Reritiba ( p 1597. Veio para o Brasil ainda noviço em 1553; logo fêz sentir sua ação apostólica fundando com Nóbrega um colégio em Piratininga, núcleo da cidade de S. Paulo. Pelo zêlo religioso e pela sensibilidade humana, Anchieta ficou na história da colônia como exemplo de vida espiritual particularmente heróica nas condições adversas em que se exerceu. Suas Poesias em por- tuguês, castelhano, tupi e latim foram transcritas e traduzidas por M. de Lourdes de Paula Martins, S. Paulo, Comissão do IV Centenário, 1954. O De Beata Virgine foi traduzido pelo Pe. Armando Cardoso S. J· (5 o, Arquivo Nacional, 194O). Cf. Domingos Carvalho da Silva, "As origens da poesia", in A Lit. no Brasil, vol. I, t. 1, Rio, 1956. 22 acharemos exemplos daquele veio místico que tôda obra religio- sa, em última análise, deve pressupor. Há um Anchieta diligente anotador dos sucessos de uma vida acidentada de apóstolo e mestre; para conhecê-lo precisa- mos ler as Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Ser- nzões que a Academia Brasileira de Letras publicou em 1933. Mas é o Anchieta poeta e dramaturgo que interessa ao estudio- so da incipiente literatura colonial. E se os seus autos são de- finitivamente pastorais ( no sentido eclesial da palavra ), destina- dos à edificação do índio e do branco em certas cerimônias li- túrgicas (Auto Representado na Festa de S. Lourenço, Na Vila de Vitória e Na Visitação de Sta. Isabel), o mesmo não ocorre com os seus poemas que valem em si mesmos como estruturas literárias. A linguagem de "A Santa Inês", "Do Santíssimo Sacra- mento" e "Em Deus, meu Criador" molda-se na tradição medie-
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