História Alemã: do século aos VI nossos dias Ulf Dirlmeier, Andreas Gestrich, Ulrich Herrmann, Ernst Hinrichs, Konrad H. Jarausch, Christoph KleBmann, Jürgen Reulecke Tradução de Marian Toldy e Teresa Toldy Esta coleção tem como objectivo proporcionar textos que sejam acessíveis e de indiscutível seriedade e rigor, que retratem episódios e momentos marcantes da História, seus protagonistas, a construção das nações e as suas dinâmicas. Introdução O que se entende por «história alemã»? ULRICH HERRMANN O presente livro apresenta uma «história alemã», da Idade Média até à atualidade. Poderá, sequer, existir uma história «alemã»? Antes de iniciarmos a leitura e a apresentação de uma «história alemã», parece aconselhável certificarmo-nos do que é, na realidade, uma «história alemã» ou do que poderia ser entendido ou designado como tal, uma vez que a narrativa de um passado e de um presente pressupõe a construção do seu objeto. Existem numerosas possibilidades de (re-)construções deste tipo -- enquanto história de um povo, de uma nação, de um Estado, uma história dos acontecimentos num determinado território, uma história cultural e social. O ponto de vista e a perspetiva específica adotados determinam aquilo que é considerado uma «história alemã». É concebível uma história «alemã», uma história «dos alemães» enquanto um único povo? Dificilmente, uma vez que não existiram fronteiras que fixassem, de alguma maneira, um espaço de povoamento, ou um espaço linguístico e cultural destes «alemães» ao longo dos séculos. Por «os» alemães poder-se-ia entender -- mais ou menos -- um sentimento de afinidade para além de fronteiras políticas, em zonas de povoamento protegidas de emigrantes, que chegou até territórios ultramarinos. Mas isso não significava, regra geral, que os alemães possuíssem um passado e uma história comuns. É certo que, após a divisão do império franco que se seguiu a Carlos Magno e depois da passagem do domínio dos francos para os saxónios, os francos começaram -- também na mentalidade da época -- a separar-se dos «alemães» da margem oriental do Reno. Falava-se do regnum teutonicum. Mas nesta fase não se poderia falar de uma consciência nacional «alemã», nem de um Estado «alemão» como uma identificação territorial inequívoca. Isto só surgiu no século XI. Pelo contrário, «os alemães» faziam parte de um «império» que se estendia do mar Báltico à Sicília. Este Sacro Império Romano da «nação alemã» -- estruturado como governo no século XV -- só terminou em 1806, quando Francisco II renunciou à coroa imperial. «Os alemães» não estavam organizados nem como Estado nem como nação, neste império, embora as populações germanófonas tenham conseguido autonomia política (por exemplo, os neerlandeses e os suíços, no fim da Guerra dos Trinta Anos) dentro dele. De facto, foi dentro deste império que, por exemplo, no século XVIII, alguns principados do império -- a Prússia e a Áustria -- entraram em guerra uns contra os outros. É manifesto que a língua comum e a pertença ao império não transmitiam uma consciência «nacional» comum, nem uma compreensão de si próprios como «alemães», por exemplo no sentido de uma nação cultural. «Os alemães», à época, não eram uma nação ou um Estado no sentido «político». Viviam na «Alemanha», sem que fosse possível indicar com precisão as suas fronteiras. Além disso, não eram um povo no sentido «cultural»; estavam separados do ponto de vista confessional, orientados territorialmente, organizados a nível local e regional numa diversidade de cidades e residências. Schiller e Goethe descreveram esta situação em duas os Xénias que se tornaram famosas (n. 95 e 96): O Império Alemão Alemanha? Mas onde fica ela? Não consigo encontrar o país, Onde começa a erudição, acaba a política. Caráter nacional alemão Alemães, esperais em vão constituir-vos como nação; Procurai antes cultivar-vos, isto, podeis fazê-lo, transformando-vos em seres humanos. Contudo, no final do século XVIII, existia a necessidade de criar uma «consciência nacional», consciência essa cujos inícios podem ser, de facto, identificados retrospetivamente com a Reforma e o desenvolvimento de uma língua literária alemã. A criação de uma literatura «nacional» e a instituição de um teatro «nacional» constituem provas desta necessidade. Mas não era concebível uma unidade «estatal» nacional. Quando a Alemanha, na sequência da reorganização territorial da Europa e da «Alemanha», foi redefinida, primeiro, por Napoleão, depois pelo Congresso de Viena em 1814, entendia-se por «Alemanha» a Confederação Germânica (1815 a 1866). Mas os patriotas «alemães» queriam mais: queriam a unidade do Estado. Este foi o objetivo declarado da Assembleia Constituinte de Frankfurt, ocorrida em 1848-1849, na Igreja de São Paulo. A «solução da pequena Alemanha», que Bismarck forçou através de meios militares, afastou a Áustria desta «Alemanha», que, entre 1871 e 1945, adotou a designação de «Império Alemão». A Áustria tentou regressar ao Império Alemão depois da Primeira Guerra Mundial, mas os aliados não o permitiram. O austríaco Adolf Hitler considerou como um dos seus triunfos o facto de ter invertido esta situação em 1938, enquanto chanceler do Império Alemão. Em rigor, uma «história alemã» só poderia referir-se ao período posterior a 1871 (até 1945) no qual um «Estado-nação» -- sob a liderança da Prússia -- uniu «os alemães». Nessa altura, a Alemanha, enquanto «Império Alemão», adquiriu todos os símbolos e atributos «nacionais»: selos e notas com a «Germânia», o parlamento (Reichstag), governo (Reichsregierung), legislação imperial, etc. -- mas sem hino «nacional». O «hino nacional» da Prússia era Heil dir im Siegerkranz. Antes de 1866, considerava-se como hino nacional «alemão» a composição musical baseada no poema de Ernst Moritz Arndts Was ist des deutschen Vaterland? Mais tarde, depois de 1871, impôs-se o Deutschland, Deutschland über Alles (Alemanha, Alemanha, acima de tudo), o hino nacional alemão oficial a partir de 1922 -- na primeira República alemã --, baseado, ironicamente, na melodia de Gott erhalte Franz den Kaiser (Deus guarde Francisco, o Imperador). No entanto, este hino manteve-se na República Federal da Alemanha, mas apenas com o texto da terceira estrofe -- por razões facilmente compreensíveis. (Em resultado das tentativas malsucedidas do presidente Heuss para que fosse introduzido um novo hino nacional.) O poema, da autoria de Hoffmann von Fallersleben, foi escrito em 1841, antes da Revolução de Março de 1848, como Das Lied der Deutschen (A canção dos alemães), isto é, como expressão da esperança num governo do povo e em liberdades cívicas, bem como apelo à criação da unidade política nacional da «Alemanha», no quadro de uma ordem constitucional liberal. As esperanças da Revolução de 1848 não se cumpriram e a Alemanha imperial e imperialista cantou estrondosamente a sua missão e a sua alegada influência mundial: «Deutschland, Deutschland über Alles...» -- até se desfazer em pedaços. As «nações» surgem da vontade política, de uma ideia nacional. Esta surgiu -- seguindo o exemplo dos franceses -- da consciência política da Prússia a partir da ocupação napoleónica. O «Estado» foi, por assim dizer, acrescentado posteriormente a este «nacionalismo». Foi também esta a interpretação e a forma escrita dada à história «alemã» no século XIX: esta partia da ascensão da Prússia nos séculos XVII e XVIII, passando pela Confederação Germânica, até à fundação do império. A história «alemã» levou, no essencial, ao Segundo Império Alemão, como se o povo, a nação e o Estado, sob a liderança da Prússia, tivessem encontrado a sua unidade nas guerras contra inimigos externos -- a Dinamarca, a Áustria e a França -- no combate aos inimigos internos -- sobretudo os socialistas e os católicos. A Constituição Imperial de 1871 falava de «toda a Alemanha» como o conjunto de todos os Estados federados; o preâmbulo da Constituição de Weimar invocava «o povo alemão, unido nas suas tribos e animado pela vontade de renovar e consolidar o seu império, em liberdade e justiça». O que aconteceu ao povo, à nação e ao Estado «dos alemães» em 1945, depois do fim deste Império Alemão? Os austríacos desenvolveram uma consciência própria enquanto Estado-nação e os alemães voltaram a encontrar-se em dois Estados, sem no entanto terem perdido o sentimento de pertença a um povo -- como se revelou em 1989-1990. O preâmbulo da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha de 1949 falava de uma ordem estatal transitória para o «povo alemão», simultaneamente em nome dos «alemães» que não podiam participar na mesma, e terminava com o compromisso: «O povo alemão, como tal, é exortado a concluir, livremente, a unidade e liberdade da Alemanha». De resto, a primeira Constituição da RDA, de 1949, falava de «povo alemão» e da «Alemanha» neste mesmo sentido. A história alemã, como uma história de fronteiras pouco claras e, por fim, como uma história de dois Estados, terminou, na sequência da viragem de 1989, com o chamado «Tratado Dois Mais Quatro», assinado em Moscovo no dia 12 de setembro de 1990 (RFA, RDA, França, União Soviética, Reino Unido, EUA). Este tratado reconheceu o direito dos alemães ao exercício do direito à autodeterminação, mas consagrou, sobretudo, o seguinte: «As fronteiras atuais da RFA e da RDA são as fronteiras definitivas da nova República Federal da Alemanha, a qual não faz, nem fará no futuro, quaisquer reivindicações territoriais» (artigo 1.°). Os aliados da Segunda Guerra Mundial puseram fim aos seus direitos e às suas responsabilidades: «Por conseguinte, a Alemanha unificada possui plena soberania sobre os seus assuntos internos e externos» (artigo 7.°). A segunda fundação de um Estado-nação alemão no fim do século XX responde, pela primeira vez na história, de forma inequívoca e definitiva, com a aprovação de todos os alemães, à questão de Ernst Moritz Arndt: «O que é a pátria dos alemães?». A Alemanha passou, assim, de foco de instabilidade no centro da Europa a fator de estabilidade e integração, o que coincide com o surgimento de uma nova consciência nacional, comprometida com a paz e com uma vizinhança cooperante, idêntica a uma aprovação da ordem constitucional da nova «República de Berlim». É a primeira vez na história alemã que um Estado-nação alemão possui fronteiras fixas, aprovadas pelos seus vizinhos, sobretudo a Polónia. A história da reunificação alemã resulta de uma longa história prévia -- a política de integração orientada para o Ocidente, de Konrad Adenauer, a Ostpolitik, de Willy Brandt levada por diante pelo Processo de Helsínquia, que visava a segurança e a cooperação na Europa e que ficou associado ao nome de Hans-Dietrich Genscher, ministro dos Negócios Estrangeiros alemão. É também a ele que se deve o modelo «Dois mais Quatro». Por fim, Mikhail Gorbachev, o secretário-geral do PCUS e chefe de Estado da União Soviética, desimpediu o caminho para a unificação alemã, confiando na política do governo Kohl / Genscher. O início do século XXI deu origem a um novo tipo de leitura da história alemã: não em torno da questão das fronteiras, mas no quadro do processo europeu de unificação. São cada vez mais as decisões em áreas políticas importantes que deixaram de ser tomadas em Berlim, para passarem a sê-lo em Bruxelas e em Estrasburgo. Porém, as energias a favor de uma centralização também despertam sempre energias contrárias, de regionalização cultural. A promoção das regiões também constitui uma agenda importante para a Comissão em Bruxelas e o apoio às regiões estruturalmente desfavorecidas na Alemanha de Leste, que continuará a ser necessário por um período de tempo indeterminado, constitui um tema central da nossa política interna germano-europeia, desde logo por causa do seu enorme impacto do ponto de vista da política orçamental. A nova República Federal da Alemanha não necessita de se afirmar ou de provar algo a nível externo: a sua tarefa principal consiste na conclusão da união interna -- um novo capítulo na história dos alemães. Mas o que significa «união interna»? As mesmas condições de vida no Leste e no Oeste, no Norte e no Sul? Estas também não existiam na antiga República Federal. Uma «distribuição normal» pela população das opções partidárias a nível regional? Esta é contrariada pelos sucessos constantes da CSU (União Social-Cristã) na Baviera e do PDS (Partido do Socialismo Democrático) no Leste. Oportunidades de futuro iguais para os jovens? Este objetivo é contrariado pela elevada taxa de desemprego dos jovens nas regiões estruturalmente desfavorecidas do Leste e do Norte. Não é possível concretizar objetivos importantes da política interna a nível do Estado federal e dos estados federados, como a diminuição da taxa de desemprego, orçamentos equilibrados, diminuição da dívida pública, sem contar com as transferências do Oeste para o Leste, que continuarão a ser inevitáveis por muito tempo. Por enquanto, reina a perplexidade, incluindo na União Europeia alargada. Estamos perante duas situações transitórias que parecem bloquear-se reciprocamente. Este nosso livro remete para outras obras. Ao contrário dessas, os autores do presente volume perseguiram um objetivo diferente: não pretendem reconstruir e narrar «a» história alemã -- o que seria, necessariamente, impossível a priori, tendo em conta o espaço disponível --, mas tão-só proporcionar uma introdução à compreensão dos «traços principais» e das «estruturas fundamentais» existentes em cada época da história alemã. Por isso, a sequência do livro orienta-se pelas épocas da história política, sendo que a exposição se refere a aspetos importantes da história social, cultural, económica e intelectual. As exposições das épocas não podem, em princípio, senão oferecer «análises das constelações», bem como uma «história estrutural» da época em causa. Esta abordagem tem a vantagem de colocar no centro das atenções as forças motrizes e as condições gerais dos acontecimentos, sobretudo nas suas «encruzilhadas», e de transformar «o presente passado» naquilo que o passado lembrado e narrado deve ser: história enquanto perspetiva acerca do caráter histórico do presente. Idade Média Arcaica e Alta Idade Média (séculos a ) VI XIII ULRICH HERRMANN