ebook img

Hannah Arendt: pensar a crise da educação no mundo contemporâneo PDF

15 Pages·2010·0.19 MB·Portuguese
by  
Save to my drive
Quick download
Download
Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.

Preview Hannah Arendt: pensar a crise da educação no mundo contemporâneo

Hannah Arendt: pensar a crise da educação no mundo contemporâneo Maria Rita de Assis César André Duarte Universidade Federal do Paraná Resumo Dividido em três etapas complementares, o presente artigo discute a reflexão de Hannah Arendt sobre a crise da educação no mundo contemporâneo. Na primeira parte se estabelecem algumas conexões teóricas gerais entre as teses de Arendt a respeito da crise da educação e sua reflexão filosófico-política sobre a crise política da modernidade. Na segunda parte do texto, discute-se a hipótese arendtiana de que a crise da educação também está relacionada à introdução de abordagens educacionais de caráter psicopedagógico, as quais, em vez contribuir para educar os jovens para a responsabilidade pelo mundo e para a ação política, os mantêm numa condição infantilizada que se estende até a idade adulta, trazendo, em consequência, novos problemas políticos. Finalmente, na terceira parte do texto, propõe-se a hipótese de que uma das principais contribuições do pensamento arendtiano para pensar a crise contemporânea da educação se encontra em sua interessante discussão do binômio “crítica” e “crise”, o qual põe em questão o binômio tradicional “crise/reforma”. Arendt, assim como Foucault e Deleuze, nos ensina que crítica e crise são fenômenos modernos indissociáveis e nos convida a enxergar a crise como momento privilegiado para o exercício da atividade da crítica. Para Arendt, a crise na educação deve ser entendida como oportunidade crucial para reflexões críticas a respeito do próprio processo educativo. Palavras-chave Arendt — Educação — Crise — Crítica. Correspondência: André Duarte Rua Mariano Torres, 275, apt. 101 80060-120 – Curitiba – PR Email: [email protected] Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n.3, p. 823-837, set./dez. 2010 823 Hannah Arendt: thinking the education crisis in the contemporary world Maria Rita de Assis César André Duarte Universidade Federal do Paraná Abstract Comprised of three complementary parts, the present article discusses Hannah Arendt’s reflection on the education crisis in the contemporary world. In the first part general theoretical connections are established between Arendt’s theses on the education crisis and her philosophical-political thinking about the political crisis of modernity. The second part of the text discusses the Arendtian hypothesis that the education crisis is also related to the introduction of educational approaches of a psychopedagogical character which, instead of contributing to educate the young to the responsibility for the world and for political action, keep them in a childlike condition that lasts up to adulthood, consequently bringing new political problems. Finally, in the third part of the text, the hypothesis is proposed that one of the main contributions from Arendt’s thinking to the reflection about the contemporary crisis of education can be found in her fruitful discussion of the “critique”-“crisis” pair, which brings into question the traditional “crisis/reform” couple. Arendt, similarly to Foucault and Deleuze, teaches us that critique and crisis are inseparable modern phenomena, and invites us to see crisis as a privileged moment for the exercise of the activity of critique. For Arendt, the education crisis should be understood as a crucial opportunity for critical reflection about the education process itself. Keywords Arendt — Education — Crisis — Critique. Contact: André Duarte Rua Mariano Torres, 275, apt. 101 80060-120 – Curitiba – PR Email: [email protected] 824 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n.3, p. 823-837, set./dez. 2010 A crise da educação no contexto da nham ao mundo ou, como afirmara Heidegger crise política da modernidade (2003), que eles sejam “formadores de mundo” (p. 400). Para Arendt (1995), o mundo é uma A principal reflexão de Hannah Arendt construção propriamente humana, constituído (2005) sobre a educação encontra-se no ensaio por um conjunto de artefatos e de instituições “A crise na educação”, do final dos anos cin- duráveis, destinados a permitir que os homens quenta, incluído na coletânea intitulada Entre o estejam continuamente relacionados entre si, passado e o futuro. O diagnóstico arendtiano a sem que deixem de estar simultaneamente se- respeito da crise contemporânea nos modos de parados. O mundo não se confunde com a ensinar e aprender insere-se no contexto teórico terra onde eles se movem ou com a natureza de sua discussão da condição humana e da crise de onde extraem a matéria com que fabricam política da modernidade, temas centrais de sua seus artefatos, mas diz respeito às múltiplas reflexão filosófico-política. Vejamos em linhas barreiras artificiais, institucionais, culturais, que gerais como se estabelecem tais conexões. os humanos interpõem entre eles e entre si e Em primeiro lugar, chama a atenção a própria natureza. No pensamento de Arendt o fato inusitado de Arendt (2005) abordar a (1995), o mundo refere-se também àqueles as- questão da educação referindo-a à condição suntos que estão entre os homens, isto é, que humana da natalidade: “a essência da educação lhes interessam quando entram em relações é a natalidade, o fato de que seres nascem para políticas uns com os outros. Neste sentido mais o mundo” (p. 223). Em A condição humana, sua restrito, o mundo também designa o conjunto principal obra teórica, a autora afirma que cada de instituições e leis que lhes é comum e apare- nascimento humano constitui um novo início, ce a todos. Trata-se daquele espaço institucional distinguindo-se, assim, da aparição de um ser que deve sobreviver ao ciclo natural da vida e segundo o modo da repetição de uma ocorrência da morte das gerações a fim de que se garanta já previamente dada. Para os humanos, nascer alguma estabilidade a uma vida que se encontra não significa simplesmente aparecer no mundo, em constante transformação, num ciclo sem mas constitui um novo início no mundo. A na- começo nem fim no qual se englobam o viver talidade não se confunde, portanto, com o mero e o morrer sucessivos. fato de nascer, mas constitui o ser no modo de Entendendo o mundo nestes sentidos ser do iniciar, da novidade. É a condição hu- complementares, Arendt pensa que somente os mana da natalidade que garante aos homens a homens mantêm uma relação privilegiada com possibilidade de agir no mundo, dando início ele, cabendo à educação a delicada tarefa de a novas relações não previsíveis. Natalidade empreender a adequada inclusão dos recém- é a categoria central do pensamento político chegados num mundo que lhes antecede, que porque é a raiz ontológica da ação e, portanto, lhes é estranho e que, ademais, deve perdurar também da liberdade e da novidade, que são após a sua morte. Para Arendt (2005), o que intrínsecos ao aparecimento dos homens no caracteriza a educação em relação a outras mundo (Arendt, 1995). formas de inserção dos seres vivos em um Assim, embora o conceito arendtiano de ambiente já existente é exatamente a relação natalidade mantenha relação com o fato da ge- privilegiada que a vida humana (bios) mantém ração da mera vida (em grego, zoe, a qualidade com o mundo: comum a todo vivente), o aspecto realmente im- portante a ser ressaltado é a relação entre vida Se a criança não fosse um recém-chegado humana e mundo. Em certo sentido, plantas e nesse mundo humano, porém simplesmen- animais também “nascem” em um determinado te uma criatura viva ainda não concluída, a habitat, mas deles não se pode dizer que ve- educação seria apenas uma função da vida Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n.3, p. 823-837, set./dez. 2010 825 e não teria que consistir em nada além da que vivem. Sem ser intrinsecamente política, a preocupação para com a preservação da vida educação possui um papel político fundamen- e do treinamento e na prática do viver que tal: trata-se aí da formação para o cultivo e o todos os animais assumem em relação a seus cuidado futuro para com o mundo comum, o filhos. (p. 235) qual, para poder ser transformado, também deve estar sujeito à conservação: A relação humana com o mundo, me- diada pela educação, também é uma relação Parece-me que o conservadorismo, no sentido privilegiada no sentido de que nunca está dada de conservação, faz parte da essência da ativi- de antemão, mas tem de ser tecida novamente a dade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar cada novo nascimento, no qual vem ao mundo e proteger alguma coisa – a criança contra um ser inteiramente novo e distinto de todos os o mundo, o mundo contra a criança, o novo demais (Arendt, 1995). Por isso, a educação não contra o velho, o velho contra o novo. (p. 242) pode jamais ser entendida como algo dado e pronto, acabado, mas tem de ser continuamente Em sentido geral, portanto, se a educação repensada em função das transformações do no mundo contemporâneo passa por uma crise mundo no qual vêm à luz novos seres humanos. aguda e sem precedentes, então é preciso com- Justamente porque o mundo está conti- preender tal fenômeno situando-o no contexto nuamente sujeito à novidade e à instabilidade da crise política do próprio mundo moderno. provocada pela ação dos recém-chegados, assu- Para Arendt (2005), vivemos numa “sociedade de mir responsabilidade pelo mundo – aquilo que massas” que prioriza as atividades do trabalho e Arendt denominava de amor mundi – significa do consumo; que deseja avidamente a novidade contribuir para que o conjunto de instituições pela novidade, orientando-se apenas pelo futuro políticas e leis que nos foram legados não seja imediato; e que nada quer conservar do passado, continuamente transformado ou destruído ao consumando-se aí a perda da autoridade e da tra- sabor das circunstâncias e dos interesses pri- dição. Para a autora, vivemos num mundo em que vados e imediatos de alguns poucos. Quem qualidades como distinção e excelência cederam educa não assume responsabilidade apenas pelo lugar à homogeneização e à recusa de qualquer “desenvolvimento da criança”, mas também hierarquia, aspectos que se refletem imediatamente pela própria “continuidade do mundo” (Arendt, nos projetos educacionais contemporâneos. À pri- 2005, p. 235). Responsabilidade pelo mundo é, meira vista, estas considerações parecem assumir portanto, responsabilidade por sua continuação um caráter elitista, quando não reacionário. Mas e conservação, aspecto que não se confunde não se trata disso. O aspecto para o qual Arendt com o conservadorismo tout court, pois Arendt chama a atenção em sua reflexão sobre a crise (2005) ressalta que somente aquilo que é está- da educação contemporânea diz respeito ao fato vel pode sofrer transformação. Para a autora, de que as fronteiras entre adultos e crianças vêm a educação cumpre um papel determinante no se tornando cada vez mais tênues, problema sentido da conservação do mundo, pois se trata que, por sua vez, põe em destaque a falta de de apresentar aos jovens o conjunto de estru- responsabilidade e o despreparo dos adultos para turas racionais, científicas, políticas, históricas, introduzir os recém-chegados no mundo. Afinal, linguísticas, sociais e econômicas que consti- como proceder criteriosamente nessa introdução tuem o mundo no qual eles vivem. Se um dia, educacional ao mundo quando a velocidade das quando forem adultos, lhes couber transformar transformações desse mundo é de tal monta que e modificar radicalmente este mundo por meio ele permanece desconhecido e estranho mesmo da ação política, isto pressuporá terem apren- para os adultos que nele habitam e que, portanto, dido a conhecer a complexidade do mundo em deveriam conhecê-lo? 826 Maria Rita CÉSAR e André DUARTE. Hannah Arendt: pensar a crise da educação no mundo... É como se os pais dissessem todos os dias: – toda crise é destruída uma parte do mundo, Nesse mundo, mesmo nós não estamos muito alguma coisa comum a todos nós. (p. 227) a salvo em casa; como se movimentar nele, o que saber, quais habilidades dominar, tudo Nesse contexto determinado, a política isso também são mistérios para nós. Vocês se reduz à administração das coisas em nome devem tentar entender isso do jeito que pu- de um suposto bem comum, isto é, a felicidade derem. (p. 243) do animal laborans, e qualquer consideração pela preservação e estabilidade do mundo se Em sua reflexão filosófico-política, Arendt vê preterida em nome daquele ideal. Quando (1995) assumiu a perspectiva teórica do cuidado regida exclusivamente pela lógica do trabalho para com o mundo, em claro confronto à atitu- e do consumo, a política deixa de se ocupar de intelectual que ela julgava predominante na com a liberdade e a espontaneidade envolvidas modernidade, isto é, a “alienação do homem” na ação e no discurso coletivos que visam a em relação ao mundo compartilhado, origem do renovação e manutenção da estabilidade do moderno subjetivismo filosófico e das tendências mundo público compartilhado, vendo-se lança- psicologistas do pensamento social e educacional da em um perpétuo movimento análogo ao dos contemporâneo. Foi a partir dessa perspectiva anti- grandes ciclos naturais (Arendt, 1995; Duarte, humanista e antissubjetivista que Arendt detectou 2004; 2006). o caráter instável e inóspito de um mundo quase A crise contemporânea da educação é, inteiramente regido pela lógica do trabalho (labor) pois, o correlato de uma crise de estabilidade e do consumo, isto é, pela lógica da produção e da de todas as instituições políticas e sociais de destruição em escala global e em ritmo cada vez nosso tempo. Para Arendt (2005), a escola é a mais acelerado. Em vista do predomínio dessas “instituição que interpomos entre o domínio duas atividades conexas no mundo contemporâneo, privado do lar e o mundo, com o fito de fazer o homem passa a se compreender e a se comportar com que seja possível a transição, de alguma quase exclusivamente como um animal laborans, forma, da família para o mundo” (p. 238). Deste um ser vivo atado ao ciclo ininterrupto do trabalho modo, sua crise contemporânea tem que ver e do consumo, tendo como interesse principal sua com a incapacidade da escola e da educação sobrevivência e felicidade imediata. Em A condi- em desempenhar sua função mediadora entre ção humana, a autora questionou a mentalidade aqueles espaços, relacionando-se diretamente reinante nas sociedades de massa, segundo a qual à incapacidade do homem contemporâneo para toda e qualquer atividade humana é considerada cuidar, conservar e transformar o mundo. Para em termos da reprodução do ciclo vital da socie- Arendt (1995), dade e da espécie humana. Para ela, nas modernas sociedades de trabalho e consumo, as barreiras que [...] a tarefa educacional é intrinsecamente protegem o mundo em relação aos grandes ciclos complexa, pois educar é simultaneamente da natureza vão sendo constantemente derrubadas proteger a criança das pressões do mundo e em nome do ideal da abundância, o qual traz con- proteger o mundo contra as pressões e trans- sigo, como consequência, uma forte instabilidade formações que advêm da capacidade humana institucional e a perda do sentido de realidade. Não para a ação e para o discurso em comum, por acaso, ela aponta a perda do senso comum e própria dos recém-chegados. (p. 190) da capacidade de julgar como males endêmicos de nosso tempo: Por esse motivo, ela pensa que a edu- cação ocupa um lugar difícil, instável, e talvez O desaparecimento do senso comum nos dias até mesmo paradoxal: afinal, a educação deve atuais é o sinal mais seguro da crise atual. Em ser responsável pela capacidade humana de Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n.3, p. 823-837, set./dez. 2010 827 conservar e transformar o mundo, protegendo A educação não pode desempenhar papel ne- o desenvolvimento da criança contra as pres- nhum na política, pois na política lidamos com sões do mundo, ao mesmo tempo em que deve aqueles que já estão educados. [...] Mas mesmo preparar a criança para conservar e transformar às crianças que se quer educar para que sejam o próprio mundo futuramente. De maneira pers- cidadãos de um amanhã utópico é negado, picaz, Arendt (2005) observa que de fato, seu próprio papel futuro no organis- mo político, pois, do ponto de vista dos mais […] essas duas responsabilidades de modo novos, o que quer que o mundo adulto possa algum coincidem; com efeito, podem entrar propor de novo é necessariamente mais ve- em mútuo conflito. A responsabilidade pelo lho do que eles mesmos. Pertence à condição desenvolvimento da criança volta-se em cer- humana o fato de que cada geração se trans- to sentido contra o mundo: a criança requer forma em um mundo antigo, de tal modo que cuidado e proteção especiais para que nada de preparar uma nova geração para um mundo destrutivo lhe aconteça da parte do mundo. novo só pode significar o desejo de arrancar Porém também o mundo necessita de prote- das mãos dos recém-chegados sua própria ção, para que não seja derrubado e destruído oportunidade face ao novo. (p. 225-226) pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração. (p. 235) Não compreender esta diferença entre educação e atividade política implica infanti- Assim, por um lado, a educação não deve lizar a educação e a própria política. Por isso, estar totalmente exposta à luz e às pressões da Arendt (2005) é crítica em relação aos proje- esfera pública, resguardando um espaço de inde- tos educacionais progressistas, que politizam pendência e autonomia em relação ao mundo tal excessivamente a educação, considerando-os como ele já existe. Por outro lado, é necessário autoritários e contraditórios, já que toda ten- que a educação não se feche totalmente no es- tativa de “produzir o novo como um fait ac- paço privado e, deste modo, exclua as crianças compli, isto é, como se o novo já existisse” do mundo público dos adultos, pelo qual elas (p. 225), impede ditatorialmente sua efetiva devem se tornar gradativamente responsáveis aparição. Esse tema é central para uma crítica como futuros preservadores e inovadores. Donde dos projetos contemporâneos de politização da a conclusão arendtiana: em nome da preservação educação, tal como recentemente proposto pelos da possibilidade de que os homens possam trazer Parâmetros Curriculares Nacionais, os quais, ao a novidade ao mundo, é preciso que a educação pretenderem politizar todas as dimensões do não pretenda formar e produzir tal novidade, programa educacional, acabam, na verdade, ou seja, é preciso que ela não se transforme em por despolitizar a própria linguagem política: instrumento autoritário de antecipação e controle quando todas as dimensões da vida e da edu- de toda renovação possível do mundo. Em outras cação estão submetidas à ideia de cidadania, é palavras, não cabe à educação trazer a novidade o próprio exercício político ativo da cidadania ao mundo, pois ela deve voltar-se para o conhe- que perdeu seu sentido e quase já não é mais cimento daquilo já é, ou seja, do presente e do exercitado, definindo-se aí algo como uma passado. Como Arendt (2005) não se cansou de politização despolitizadora (César, 2004). Por afirmar em suas obras, o novo somente advém outro lado, contudo, uma educação excessiva- ao mundo por meio da atividade política coletiva, mente psicologizada e centrada na “natureza mediada pela discussão entre adultos que aceitam íntima da criança e suas necessidades” (Arendt, a exigência da persuasão e da troca de opiniões. 2005, p. 237), isto é, uma educação apartada do Tal atividade política pressupõe a educação e não mundo adulto, leva à infantilização dos alunos é, pois, coisa para jovens e crianças: e à consequente perda de responsabilidade 828 Maria Rita CÉSAR e André DUARTE. Hannah Arendt: pensar a crise da educação no mundo... pelo mundo. A tarefa da educação é, portanto, [...] se espalhado em áreas pré-políticas tais difícil e crítica. Em suma, Arendt pensa que a como a criação dos filhos e a educação, onde educação está continuamente sujeita à crise e à a autoridade no sentido mais lato sempre exigência de se repensar, sendo um campo em fora aceita como uma necessidade natural, permanente tensão, assunto ao qual retornare- requerida obviamente tanto por necessidades mos na terceira seção deste artigo. naturais, o desamparo da criança, como por Arendt foi absolutamente perspicaz na necessidade política, a continuidade de uma detecção dos males que hoje afligem as relações civilização estabelecida que somente pode entre pais e filhos e entre professores e alunos: ser garantida se os que são recém-chegados em ambos casos, o que se observa é a perda de por nascimento forem guiados através de um responsabilidade pelo mundo, tanto no sentido mundo preestabelecido no qual nasceram da perda das garantias de sua conservação, como estrangeiros. (p. 128) quanto no sentido da perda das condições para a sua efetiva transformação política. Tal respon- Após considerar que a genuína autorida- sabilidade pelo mundo torna-se problemática de teria desaparecido de nosso mundo moderno na ausência de relações de autoridade, como e contemporâneo, Arendt (2005) pergunta-se acontece atualmente, de modo que ninguém por aquilo em que a autoridade teria se trans- mais parece apto a assumir responsabilidade formado em nosso tempo. Em outras palavras, pelo mundo diante das crianças. Para Arendt, ela empreende uma genealogia da noção de portanto, o problema educacional é um proble- autoridade, ao distinguir entre a autoridade le- ma político de primeira grandeza e não simples- gítima, que teria desaparecido do nosso mundo mente uma questão pedagógica. Ele se refere ao político, e o autoritarismo, isto é, a ausência de problema da perda do espaço público no mundo autoridade em seu caráter legítimo. Quanto a contemporâneo, o qual traz consigo uma perda esse aspecto, os ensaios “A crise na educação” de responsabilidade para com o mundo e, assim, e “Que é autoridade?” convergem e permitem também uma crise generalizada da educação. pensar que a crise na educação é também uma crise da autoridade legítima, isto é, uma crise A crise da educação no contexto da perda de estabilidade, tanto do conhecimento das pedagogias “psi” quanto do próprio sentido de responsabilidade dos professores e dos adultos pelo mundo em Embora tenham sido escritos há meio que vivem: século, “Que é autoridade?” e “A crise na edu- cação” são textos que conservam o frescor pró- A autoridade foi rejeitada pelos adultos e prio da obra dos grandes pensadores, que não isso somente pode significar uma coisa: que envelhecem jamais. Em ambos os textos, Arendt os adultos se recusam a assumir a responsa- fornece pistas importantes para pensarmos a bilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crise contemporânea na educação e, principal- crianças. (p. 240) mente, a crise das instituições escolares. Lendo os textos em conjunto, compreendemos que a Contudo, o problema da crise da edu- crise na educação possui profunda relação com cação contemporânea também envolve a con- a perda de autoridade no mundo moderno, pro- sideração de aspectos mais especificamente blema político que se espalhou para áreas pré- educacionais. Escrito em 1958, “A crise na edu- políticas como a criação dos filhos e a própria cação” é o texto no qual Arendt (2005) chama a educação. Arendt (2005) ressalta que o sintoma atenção para a crise generalizada que acomete mais significativo da crise da autoridade no não apenas a educação norte-americana, mas mundo moderno é o fato dessa crise ter a educação no mundo ocidental: Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n.3, p. 823-837, set./dez. 2010 829 A crise geral que acometeu o mundo moderno futuramente preservá-lo e transformá-lo. Não em toda parte e em quase toda esfera da vida casualmente, foi em meio à proliferação do dis- se manifesta diversamente em cada país, en- curso psicopedagógico que se “inventou” a pró- volvendo áreas e assumindo formas diversas. pria figura histórica da adolescência, entendida Na América, um de seus aspectos mais caracte- como uma idade-problema a ser continuamente rísticos e sugestivos é a crise periódica na edu- vigiada, analisada e disciplinada (César, 2008). cação, que se tornou, no transcurso da última Arendt refere-se criticamente às pedagogias e década pelo menos, um problema político de aos métodos pedagógicos oriundos da psicolo- primeira grandeza, aparecendo quase diaria- gia do desenvolvimento, centrados na ideia de mente no noticiário jornalístico. Certamente indivíduo e de individualidade, pois pensa que não é preciso grande imaginação para detectar as abordagens educacionais “psi” deixam de lado os perigos de um declínio sempre crescente nos o vínculo indissociável entre homem e mundo e, padrões elementares na totalidade do sistema portanto, desconsideram o princípio educacional escolar, e a seriedade do problema tem sido do cuidado e da responsabilidade para com o sublinhada apropriadamente pelos inúmeros mundo. Para a autora, a estreita comunhão entre esforços baldados das autoridades educacionais psicologia e educação tende a ser perniciosa para para deter a maré. (p. 221-222) a educação e sua finalidade, isto é, proporcionar aos jovens e crianças um adequado deslocamen- Se a crise da educação é parte do pro- to do espaço privado da família para o espaço blema político da modernidade, entendido como público do bem comum. uma crise do mundo público, da autoridade e da Quanto a esse aspecto, o texto arendtia- tradição em meio à “sociedade de massas” e suas no assume caráter profético, pois denuncia um demandas ininterruptas, por outro lado também processo de alienação em relação ao mundo que é preciso observar que essa crise educacional se continua em curso no campo da educação. De viu agravada com a associação entre educação e fato, as práticas educacionais orientadas pelas psicologia, a qual originou inúmeros projetos de abordagens “psi” tiveram origem no repúdio a “educação progressista”, promovendo uma “radical todos os tipos de desmandos, castigos, punições revolução em todo o sistema educacional” (p. 227). e violências físicas e psíquicas contra jovens e Vejamos como esses dois problemas se relacionam. crianças no interior dos muros escolares. Em Ao longo de seu texto, Arendt argumenta consonância com a nova atmosfera de liber- que o fracasso da função mediadora que a escola dade que então soprava nos Estados Unidos e a educação deveriam cumprir entre o ambiente nos anos cinquenta, proliferaram discursos familiar e o mundo adulto vem se agravando pedagógicos europeus oriundos do século XIX em função de certas escolhas pedagógicas que e das primeiras décadas do século XX, como têm orientado os projetos educacionais no oci- as pedagogias libertárias dos anarcossindica- dente durante o século XX, em especial desde listas, a Escola Nova dos franco-genebrinos, a os primeiros anos da década de cinquenta. Em escola democrática de John Dewey, além das vez de se estabelecer enquanto lugar funda- novas descobertas dos estudos de psicologia mental de formação e preparação de jovens e do desenvolvimento infantil (Best et al., 1972; crianças para o mundo público dos adultos, o Cousinet, 1968). Por certo, Hannah Arendt não campo educacional viu surgir métodos peda- era contrária ao repúdio da violência e do auto- gógicos e psicológicos centrados na criança e ritarismo no ambiente escolar. O aspecto central no adolescente, os quais, ao serem entendidos e iluminador de sua argumentação é o de que como substratos psíquicos naturais, não his- tais discursos e práticas pedagógicos acabaram tóricos, viram-se alienados do mundo em que por fornecer elementos para a criação de novos habitam e que precisam conhecer para poderem métodos pedagógicos que tomaram a criança e 830 Maria Rita CÉSAR e André DUARTE. Hannah Arendt: pensar a crise da educação no mundo... o mundo infantil do brinquedo e da brincadeira crianças ficaram sujeitas à tirania da maioria, o como o centro e o foco praticamente exclusivos que, para a autora, representou um importante das ações pedagógicas e de educação. No caso aspecto da violência cotidiana no século XX: norte-americano, a autora aponta duas vertentes principais, a psicologia moderna e o pragmatis- [...] ao emancipar-se da autoridade dos adul- mo, como responsáveis por parte significativa tos, a criança não foi libertada, e sim sujei- da crise na educação daquele país. Arendt ar- ta a uma autoridade muito mais terrível e gumenta que a fusão entre pedagogia, prag- verdadeiramente tirânica, que é a tirania da matismo e psicologia transformou a educação maioria. Em todo caso, o resultado foi se- em um campo de conhecimento sobre o ensino, rem as crianças, por assim dizer, banidas do transformando-a em ciência da aprendizagem. mundo dos adultos. São elas, ou jogadas a si Quanto a esse aspecto, ela lamenta a perda da mesmas, ou entregues à tirania do seu próprio importância do conteúdo a ser ensinado. grupo, contra o qual, por sua superioridade Para Arendt (2005), ademais, ao con- numérica, elas não podem escapar para ne- trário de formarem crianças e jovens para a nhum outro mundo, por lhes ter sido barrado ação futura no mundo público, tais abordagens o mundo dos adultos. A reação das crianças psicopedagógicas, na medida em que recusam tende a ser o conformismo ou a delinqüência o papel e a figura da autoridade do professor juvenil, e freqüentemente é uma mistura de no processo educacional, deixam os sujeitos da ambos. (p. 230-231) educação imersos num processo de “infantili- zação” generalizada que se estende até a idade Ao questionar as deficiências das pe- adulta. Temos aí o pressuposto perigoso de que dagogias “psi”, Arendt (2005) não se limita a apontar seus problemas do ponto de vista dos [...] existe um mundo da criança e uma socie- alunos, mas também os aborda do ponto de dade formada entre crianças, os quais são au- vista dos próprios educadores. Estes também tônomos e, na medida do possível, devem ser se encontram abandonados à própria sorte, governados pelas crianças. Os adultos aí estão pois, com sua formação deficiente do ponto apenas para auxiliar esse governo. (p. 229-230, de vista dos conteúdos, não mais representam tradução modificada) uma autoridade legítima diante das crianças e, frequentemente, recorrem ao autoritarismo A este respeito, a autora adverte enfati- ou à “retórica moral e emocional” (p. 247). camente quanto aos riscos de uma educação que Temos aí o problema de que, “sob a influência deixa os jovens e crianças entregues à própria da Psicologia moderna e dos princípios do sorte, ou, pior ainda, à mercê do próprio grupo. Pragmatismo, a Pedagogia transformou-se em Com a introdução das pedagogias “psi”, a crian- uma ciência do ensino em geral a ponto de se ça e o jovem viram-se libertos da autoridade emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser dos adultos, que deixaram conscientemente de ensinada” (p. 231). A partir do momento em querer intervir ou exercer qualquer autoridade que a pedagogia se concebe como uma ciência sobre os sujeitos da educação. Segundo tal do ensinar a ensinar, surge a concepção de que concepção educacional, o adulto pode apenas o professor pode “ensinar qualquer coisa; sua dizer à criança “que faça aquilo que lhe agrada formação é no ensino, e não no domínio de e depois evitar que o pior aconteça” (p. 230). qualquer assunto particular” (p. 231). Assim, jovens e crianças viram-se subjugados A esses dois problemas se agrega um ter- a uma autoridade ainda mais cruel e terrível, a ceiro, o pragmatismo e seu pressuposto de que autoridade tirânica do grupo infantil ou ado- só é possível conhecer e compreender aquilo lescente. Deixadas à própria sorte na escola, as que nós mesmos fazemos. Para Arendt (2005), Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n.3, p. 823-837, set./dez. 2010 831 a aplicação do pragmatismo à educação con- [...] aquilo que, por excelência, deveria pre- sistiu em substituir o aprendizado pelo fazer parar a criança para o mundo dos adultos, o ou, ainda, pela concepção do aprender fazendo, hábito gradualmente adquirido de trabalhar e muito comum às pedagogias que vaticinam a não brincar, é extinto a favor da autonomia necessidade da construção do conhecimento. A do mundo da infância. (p. 233) intenção consciente desse pragmatismo educa- cional não era a de ensinar conhecimentos, mas Ademais, pensar a educação como pro- sim inculcar uma habilidade, de modo que, nos cesso de fabricação pode ter implicações autori- Estados Unidos, o resultado foi a transformação tárias, pois exige a antevisão pronta e acabada das instituições de ensino em instituições vo- do fim a ser alcançado no futuro, bem como cacionais. Para a autora, o pragmatismo como o emprego de meios violentos, ortopédicos, a método educacional é problemático em função partir dos quais o fim será forjado. do seu pressuposto básico, isto é, Para a autora, esses três pressupostos – o abandono da infância à própria sorte, a precária […] o de que só é possível conhecer e com- formação dos professores e o pragmatismo edu- preender aquilo que nós mesmos fizemos, cacional –, constituem os elementos decisivos e sua aplicação à educação é tão primária e especificamente pedagógicos para compre- quanto óbvia: consiste em substituir, na me- endermos a crise da educação no presente. O dida do possível, o aprendizado pelo fazer corolário desses três pressupostos é a irrespon- […]. A intenção consciente não era a de ensi- sabilidade dos educadores para com o mundo e nar conhecimentos, mas sim de inculcar uma sua consequente perda de autoridade no campo habilidade, e o resultado foi uma espécie de educacional, visto que a autoridade do educador transformação de instituições de ensino em se “assenta na responsabilidade que ele assume instituições vocacionais que tiveram tanto por este mundo” (p. 239). Os problemas decor- êxito em ensinar a dirigir um automóvel ou a rentes daqueles três pressupostos são usualmente utilizar uma máquina de escrever, ou o que é reconhecidos, em especial a má formação dos mais importante para a “arte” de viver, como professores. Entretanto, a despeito da ânsia re- ter êxito com outras pessoas e ser popular, formista que sempre esteve presente no discurso quanto foram incapazes de fazer com que a educacional do século XX, numa “desesperada criança adquirisse os pré-requisitos normais tentativa de reformar todo o sistema educacio- de um currículo padrão. (p. 232) nal” (p. 233), até hoje o discurso pedagógico tem mantido o fundamental, isto é: a retenção Arendt desconfia do pressuposto prag- artificial da criança e do jovem em seus mun- mático de que todo aprendizado é uma forma dos supostamente autônomos; a concepção da especial do fazer, do jogar e do brincar, como infância e da adolescência como substratos na- se o conhecimento dependesse exclusivamente turais alheios ao mundo e à história; bem como daquelas habilidades, tornando-se a criança, ela a concepção da pedagogia como um método e própria, a responsável pela geração do conheci- um saber científico animado pela psicologia do mento. Percebe-se aí um abandono da respon- desenvolvimento, aliada ao pragmatismo. sabilidade educacional que, para a autora, nada mais reflete senão a perda de responsabilidade Da educação em “crise” à dos adultos para com o próprio mundo, visto educação “crítica” que eles próprios já não se arrogam o papel de autoridade, recusando-se a conduzir as crianças Por certo, o discurso sobre a crise na até o mundo, suas regras e suas instituições. educação não data apenas dos últimos cinquen- Numa palavra, diz Arendt (2005) ta anos, nem se configura como exclusividade 832 Maria Rita CÉSAR e André DUARTE. Hannah Arendt: pensar a crise da educação no mundo...

Description:
Hannah Arendt: pensar a crise da educação no mundo contemporâneo. Maria Rita de Assis César. André Duarte. Universidade Federal do Paraná.
See more

The list of books you might like

Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.