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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago. PDF

36 Pages·2015·0.44 MB·English
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As folias fesceninas1 do ‗vampiro de Curitiba‘. Sobre as ―ministórias‖ de Dalton Trevisan Sérgio Guimarães de SOUSA2 RESUMO: Cada vez mais reconhecido como um dos expoentes máximos da literatura em língua portuguesa, Dalton Trevisan, recentemente galardoado com o Prémio camões, é, como sabemos, um autor absolutamente incontornável na arte do contos breves. Socorrendo-nos de vários Foi nosso intuito neste texto, oferecer uma leitura panorâmica de boa porção das ―ministñrias‖ do escritor de Curitiba, enfatizando, por uma parte, os principais eixos-temáticos por que se caracterizam as suas micronarrativas; e, por outra, parte chamando a atenção para os processos técnico-retóricos a que o escritor recorre, no sentido de assegurar uma narrativa tão minimalista quanto possível das histórias e dos cenários que põe em cena através do género micro-ficcional. Deste modo, foi-nos possível o quanto e de que modo, Dalton Trevisan se compraz em representar existências alienadas pelo crime ou, no melhor dos casos (e isso no quadro familiar), por relações sentimentais onde a felicidade conjugal e o amor idealizado, se alguma vez existiram segundo o cânone da mitologia romântica e tardo-romântica, cederam rapidamente lugar à danação antropofágica. PALAVRAS-CHAVE: microficção; violência; crime; sexualidade. I Triângulos amorosos, adultérios, seduções, assassinatos, espancamentos, estupros. Amor e ódio. O mundo de Dalton. [...]. Com seu estilo guerrilheiro de diálogos certeiros, de elipses alucinantes, de imagens inesperadas que visam à 1 Tomo de empréstimo a expressão ―folias fesceninas‖, referidas a Dalton Trevisan, a Berta Waldman (2007). 2 UM – Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Braga, Minho, Portugal, [email protected]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 3 3 8 razão e à emoção dos leitores, esses pobres fantoches manipulados pelo mefistofélico e mirabolante autor. Com tais artes e mágicas, para que Dalton precisa ainda de um velho vampiro? Geraldo Galvão Ferraz Assaz conhecido pela muito sugestiva e indisputável alcunha de ‗vampiro de Curitiba‘, Dalton Jérson Trevisan constitui indubitavelmente um caso bem atípico no panorama literário brasileiro. Um resumo suficiente da discrepância do escritor com os seus colegas de ofício (mesmo sabendo-se que cada autor se define por crenças, gostos, manias, enfim, por todo um conjunto específico de idiossincrasias) seria este: Trevisan é um escritor votado privilegiadamente à expressão, com intransigência e coerência inabaláveis, de um imaginário tenebroso. Imaginário cuja singularidade provém de enfatizar existências alienadas, grotescas, libertinas e macabras, violências gratuitas, brutalidades sexuais, contextualizadas em geral por uma atmosfera lasciva e libidinosa, assentes no gozo instintivo, sadomasoquista e animalesco. Por essa razão, os textos do autor não carecem de relações sentimentais onde a felicidade conjugal e o amor idealizado, se alguma vez existiram segundo o cânone da mitologia romântica e tardo-romântica, deram lugar à devastadora espiral de um círculo infernal de desentendimentos crónicos e de brutalidades inclementes. Círculo esse circunscrito essencialmente à representação de personagens – anti-heróis –, entre as quais abunda a perversão e todo o tipo de distúrbios provocados pela frustração e pelo ódio insanável, pautadas pela irrelevância social (embora não faltem protagonistas oriundos da classe média, note-se; uns e outros, refira-se, não desafinam do estereótipo que os circunscreve). Portanto, Trevisan vem dar- nos conta de um estado de coisas sociológico: aquele que, em nome do pudor literário (ou de um certo pudor literário, cultivado nos bancos das escolas em textos apetrechados com essa marca maior da compostura estética que é a linguagem cuidada), suporíamos acantonado em lugares onde mesmo a literatura não se atreveria a penetrar. Com a ressalva de que esses são, muito provavelmente, os lugares da literatura enquanto tal. Mas o merecimento estético-literário de Trevisan, aquilo que fará dele porventura um escritor imprescritível, é sobretudo tributário da sua admirável capacidade de dar corpo a este universo assombroso manuseando-o em prol da máxima contenção, a tal ponto que não é abusivo dizer, com Maria Leonor Nunes, que «a arte de Trevisan cruza o limiar do GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 3 3 9 expressionismo» (NUNES, p. 2012: 6). O autor compraz-se, pois, em expressar, sem hipóteses de redenção, toda esta danação antropofágica, em que as personagens «passionately clash with each other, revealing excessively erotic and violent natures that in turn pit them against the all- consuming powers of Sex and Death» (VIEIRA, p. 1986: 45), pelo viés de esmeradas narrativas breves (ou brevíssimas).3 Se a narrativa, por maioria de razão enquanto prosa, é o modo ideal de encenar todo esse mundo violento e as suas gentes, diga-se, todavia, que a forma breve extrai toda a sua eficácia, por força das elipses de que se nutre, de ser menos do que aquilo que representa. Isto é, o que está em causa nesta prosa é, não sofre dúvida, o poder evocativo alcançado espartanamente com o mínimo possível. A suficiência da forma breve não impede, com as remoções acarretadas, a expressão da nitidez do real, em pequenas histórias, por assim dizer, (des)dobradas num contínuo reenvio, na medida em que «Trevisan é um escritor programático e obsessivo que traça o itinerário de uma busca incessante, manifestada na repetição de situações, de personagens, de um tema que se multiplica em voltas infindáveis» (WALDMAN, 2007, p. 255)4. 3 A opção, note-se, pelo culto de uma linguagem radicalmente diminuta dá-se por volta de 1974, isto é, a partir de O Pássaro de Cinco Asas onde, afora os contos ou pequenos contos, surgem claramente micronarrativas agrupadas sob a tutela de um título unificador (é o caso de «O defunto bonito» e de «O gatinho perneta», cf. TREVISAN, 1996, p. 24-27 e 42-47), processo presente, com facilidade, noutros livros, como em Meu Querido Assassino ou em Essas Malditas Mulheres. Note-se, a propósito, que a prosa longa do autor não é sem afinidade com a microficção. Porque nessa prosa extensa, como muito bem mostrou Edner Morelli (cf. 2007, p. 80-81), em O vampiro de Curitiba, cada parágrafo tende a dispor de autonomia radicada num fôlego narrativo próprio. Deste modo, os parágrafos não entram forçosamente em diálogo uns com os outros, consubstanciam-se antes como mini- episódios em cadeia; e em cada um é visível a saliência de uma espécie de mini- clímax. Ou seja, dir-se-ia que nos textos mais alongados, Dalton Trevisan já, em bom rigor, praticava a arte da microficção, só que aferível numa dimensão de maior fôlego. 4 Com efeito, de microficção para microficção repetem-se, por exemplo, nomes, repetição destinada a des-individualizar protagonistas, universalizando-os enquanto indivíduos; deste modo, o nome vem, muito tipicamente, suplementar a condição dos protagonistas, reforçando-lhes socialmente a pertença e, nessa medida, ganha a tonalidade de um estigma social. Por vezes, é usado no sentido da caricatura arquetípica. Sobre este assunto da retoma dos nomes, assinala Nelson H. Vieira o seguinte: «The penchant for regulary identifying his later heroes as João and Maria undoubtedly contributes to Dalton Trevisan‘s creation of short stories that telegraph a compelling sense of ―everyman‖. In so doing, he repeatedly inflicts upon the GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 3 4 0 Uma nitidez, refira-se, brutal e, por isso, sem nenhum tipo de condescendências. Dalton Trevisan revela, com efeito, como muito bem nota um dos seus críticos, «to the reader the grotesque, horrific underside of the daily existence within modern Brazilian society» (GORDUS, 1998, p. 13). Tudo isto que estabelece a originalidade do escritor assenta, dissemos, na forma breve. Cabe perguntar: com que traços se define essa forma breve? Afora o que permite eliminar o supérfluo (e o menos supérfluo) da linguagem (como sejam: verbos, conjunções, articulações hipotáticas, pronomes, adjetivos) e descarná-la o mais possível (orações nominais), com os traços de uma irredutível especificidade compositiva. Especificidade presente nas microficções mas não menos exemplarmente evidente em narrativas de maior fôlego, e que passa (i) pelo uso sem parcimónia de uma linguagem oralizante e não raramente vulgar, isto é, estilisticamente não tratada, descambando, por vezes, sem concessões para o obsceno5; (ii) pelo reader an uncomfortable sense of familarity vis-à-vis the clandestine minds and hearts of the depraved Brazilian souls depicted in his fictions. For the comitted Trevisan reader the deliberate and magnified use of these names in recente stories becomes cumulative and thus enhances this familiarity, but above all, suggests more than just a stereotypical portrayal of Brazil‘s middle and lower class mores, passions and depravities. By presenting a gallery of Joões and Marias, Trevisan appears to be building his narrations ―upon names‖ or ―eponyms‖ that become related to a continuous pedigree of behavior or ethology. With each new narrative Trevisan approaches with keener observation a corpus of similar acts and situations wherein he slowly unfolds and incisively dissects one more facet, or version of a complex and often social and psychological human paradigma» (VIEIRA, 1986, p. 45). 5 Se, na sua dimensão estética, as microficções de Trevisan são a expressão de uma visão que se nutre assaz do que de repugnante a sociedade, ou parte dela, a que vive lado a lado com a violência, comporta, não é surpreendente que a prosa dessas microficções não recue perante a representação das múltiplas faces, incluindo as mais abjetas, dessa violência e, como tal, seja uma prosa passível de desassossegar um certo tipo de leitor. Especialmente aquele que, sensível à chamada função poética da linguagem, entende a literatura, mesmo sendo, como neste caso é, uma literatura em formato mínimo, como a ocasião de sofisticados jogos estilísticos a bem de uma excelência fraseológica. Ora, Dalton Trevisan acha-se a léguas do esplendor retórico-estilístico herdado do Formalismo Russo e segundo o qual a linguagem literária seria muito caracteristicamente a que fosse capaz de merecer contemplação em virtude do seu valor desfamiliarizante. A tais leitores, cumpriria responder que a literatura dispõe, e ainda bem, de variadíssimos modos e graus de realização; e que se há coisa que nela é uma evidência, essa coisa é a de que o ―estilístico‖ surge inseparável do ―temático‖. Nessa medida, forçoso é concluir que GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 3 4 1 predomínio de diálogos6 que solicitam ao leitor uma ativa cooperação interpretativa no sentido de completar o pouco que neles se diz; (iii) por descrições, no caso de existirem, curtas e incisivas; (iv) pelo predomínio, em consequência, da ação sobre a descrição (e sobre experiências, sentidos, explicações); (v) pelo recurso não a personagens singularizadas antes a personagens prototípicas ou caricaturais, o que, em termos de economia textual, se revela útil por dispensar descrições psicológicas; (vi) por histórias (já que falamos em economia textual) confinadas em certos casos a pouco mais do que duas ou três palavras; (vii) por uma narração de tipo omnisciente e que não hesita em lançar mão de monólogos interiores; (viii) pela dispensa de introduções descritivo-explicativas (isto é, narração in media res); (ix) por finais trágicos ou então patéticos; (x) pela notória ironia; (xi) por algum cinismo; (xii) por uma boa dose de humor negro (e paródico, sem esquecer a ênfase no grotesco da realidade), que não destoa das vicissitudes escabrosas que a prosa de Trevisan, com as suas frases «como que a explodir de tensão» (CARVALHO, 2012, p. 7), exibe sem pudor7; (xiii) pela minudência do detalhe, de tal maneira que «há [nos seus micro-contos] uma monumentalidade derivada da concisão e do registo dos detalhes» (COELHO, 2012, p. 20); e ainda, o que tipifica os dispositivos ficcionais da sua escrita, (xiv) por uma contaminação cinematográfica não raro ostensiva (o chamado ―camera eye style‖). Veja-se o que nota, com inteira justeza, um dos mais sagazes críticos do escritor: Dalton Trevisan constructs narratives that are designed to pull the reader intimately into the a legibilidade que nos propõe Dalton Trevisan é outra: a de uma prosa que se modela, como nenhuma, às convenções semântico-pragmáticas dos contextos representados, ao incorporar a linguagem corrente mais banal, sem a qual impossível lhe seria representar as personagens que representa: «characters [who] are trapped in an immutable human condition of vice and sin where the common denominator is man‘s incorrigibility» (VIEIRA, 1986, p. 46). Assim sendo, a linguagem vulgar de Trevisan é, pode dizer-se, a topografia de um espaço: aquele, localizado em Curitiba, que (sócio-esteticamente) sobrepõe o submundo (e algum mundo médio) aos ambientes requintados das classes altas. 6 Diálogos cujas «falas são dessubjetivadas, não se ligam a um corpo, correm as na boca» (WALDMAN, 2007, p. 258) de arquétipos (falas e pensamentos soltos, diga- se). 7 Se a sua «linguagem é incisiva, licenciosa, compacta, [ela] tem a precisão» – como observa Berta Waldman (2007, p. 258) – «de um tiro à queima-roupa, que não prescinde de boa dose de humor». GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 3 4 2 experience with a close-up angle that can swiftly shift to the neat long-short, so necessary for the desired double perspective. This cinematographic approach is not only efficient in a nonsustained genre as the short story, but is most effective in the portrayel of dramatized action and thought, the essential elements of a Trevisan story. (VIEIRA, 1984, p. 11.) Não se faria justiça à qualidade das microficções de Trevisan se não se enfatizasse o lugar que neles ocupa a lição do cinema8. É, de resto, pela força de efeitos de visualidade afins da sétima arte, e que apresentam o mérito nada despiciendo de subtrair a narrativa à tentação da explícita aferição moral do que nela é representado9, que o autor persegue sem tréguas 8 «As fragmented instances of life quickly or unexpectely snapped by some unknow photographer, these narratives are not unlike the many covers or jackets of a Trevisan publication where old photos or daguerreotypes are used to stimulate our experience of perussing our old family albums. In the short stories themselves this close up, instamatic effect is achieved by the extensive use of dialogue, interspesed with brief interior monologues, and a ocasional monologue – all against a very sparce backround of omnisciente narration sometimes in the form of a character‘s alter ego, thus providing the illusion of an objective, impersonal narrative. The result is a camera-eye view of life, a Human Comedy of conflicts, sins and passions depicted in short stories [...].» (VIEIRA, 1986, p. 46.) 9 «In the creation and tecnical shaping of this perverted world, Dalton Trevisan reveals, as mentioned earlier, no overt moral tone in his stories. In fact, one as the feeling that his stories exist in spite of the author, particularly so with the later collections. This mock absence is a reflection of Trevisan‘s craft, which relies upon minimal description and the use of self-sufficient scenes and characters to dramatize the action. As a result, the reader has the sense of watching rather than Reading about the characters. The proverbial verisimilitud thus becomes even sharper with the unobstrusive narrator or author. This visual effect is maintained by a steady focus upon the point of view, either within interior monologue, dialogue or first-person, often depends upon direct flow to, or contact with, the character. In other words, how close we can get to the voice or voices without being interrupted? As if peeping throught a key hole, these narratives resemble the position of an invisible observer, or better still, the camera eye which is directed and mainly concerned with point of view. The illusion of an absent narrative voice is further perfected by the complex and ingenious use of shifting points of view or perspectives» (VIEIRA, 1984, p. 15-16.) GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 3 4 3 o intuito de pôr a nu o abismo da condição humana, no que dela sobressai de mais miserável, através das pulsões primitivas de que se sustenta. Ou, como diria, a propósito de Abismo de rosas, um dos seus leitores, «to strip away society‘s bourgeois [e a dos de baixa extração social, acrescente-se] trappings and expose man and women in their most primitive, vulnerable and unflattering condition» (SILVERMAN, 1977, p. 604)10. O que confere eventualmente à prosa de Trevisan uma esteticização filiável no chamado realismo sujo (cultivado, entre outros, pelo cubano Pedro Juan Gutiérrez) ou bruto. Seja como for, e no tocante ao espaço do escritor de Curitiba na literatura do Brasil, [...] fica evidente que a grande contribuição de Dalton Trevisan, para a evolução da literatura brasileira, reside no desnudamento de um mundo descaracterizado e amorfo, cujos seres se alienam, conduzidos por clichês que lhe são imputados por toda uma estrutura, voltada apenas para o consumismo e para o imediatismo existencial, embora lhes acene exatamente com o contrário: o amor idealizado, a felicidade conjugal, etc. Acresce que Dalton não se compraz com a linguagem enganadora de uma certa literatura, que faz do sentimental o instrumento que aliena o leitor, sob o pretexto de defender justas causas sociais. Nele, tudo é contundente: as meias-tintas são abolidas, a piedade é sempre filtrada pela ironia e a concisão estrangula a grandiloquência. (GOMES & VECHI in TREVISAN, 1981, p. 101.) Acresce o facto de pouco se saber sobre Dalton Trevisan, exceto uns escassos dados biográficos de fundo11, o que não é sem despoletar uma 10 A propósito da técnica compositiva de Dalton Trevisan, vide também Karen Burrell, «Social Prejudice Examined in Dalton Trevisan‘s ―O ciclista‖» (BURELL, 1982, p. 111-118). 11 Se Trevisan tem habilmente sabido, à conta desta estratégia de ocultação total, ou quase, da sua pessoa, preservar-se da vampirização do que lhe é privado, ainda que à custa do que suporíamos devesse nele ser público (a concessão de entrevistas, por exemplo), o certo é que à brevidade dos textos, é caso para dizer, parece corresponder uma existência empírica minimalista. Tanto mais que o que sabemos GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 3 4 4 intrigante aura de mistério em torno do autor; e esta predileção pelo anonimato, ou melhor, pelo enigmático, há de notar-se, também não é, nesta época de marketing literário-cultural e de indústria livreira, de molde a emparelhá-lo com outros escritores, contribuindo, contudo, creio, decisivamente para o seu estatuto de autor de culto. Significa isto que se Trevisan existe à margem das estratégias de promoção editorial, a indiferença pelos mecanismos mais elementares de difusão, e que corresponde desde logo a uma manifesta resistência do escritor em ceder a sua prosa a uma definição de obra enquanto valor de mercado por intermédio da sua presença na condição de promotor dessa obra, a indiferença pelos mecanismos mais do trajeto do autor remonta, em boa verdade, aos tempos em que ainda não enveredara pela microficção. E o que se sabe de Trevisan não anda muito afastado do seguinte: nasceu em Curitiba no ano de 1925, trabalhou, ainda jovem, numa fábrica de vidros e, mais tarde, forma-se em advocacia (Faculdade de Direito do Paraná). Entre 46 e 48, é a figura de proa de um grupo literário cujo órgão de expressão foi, em homenagem a todos os joaquins do Brasil, a revista modernista curitibana Joaquim, revista de assinalável notoriedade, se tivermos presente o elenco sonante de colaboradores: António Cândido, Mario de Andrade ou ainda Carlos Drummond de Andrade; mas também se considerarmos a ênfase que a revista concedeu a traduções de nomes canónicos como Joyce, Proust, Kafka, Sartre ou Gide. Em 1959, surge a público Novelas nada exemplares, título de referencia na obra do Vampiro de Curitiba e que mereceu na altura dois prémios de prestígio: o do Instituto Nacional do Livro e o Jabuti. Novelas Exemplares é ainda relevante por ter sido o primeiro texto traduzido para outras línguas, o que permitiu, a partir daí, internacionalizar a sua restante obra (eis alguns exemplos: De Koning der Aarde [O Rei da Terra], trad. de August Willemsen, Amsterdão, 1975; The Vampire of Curitiba and Others Stories, trad. de Gregory Rabassa, Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1972; El Vampiro de Curitiba, trad. de Haydée M. J. Barroso, Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1976; De Vijvfvleugelige Vogel [O Pássaro de Cinco Asas], trad. de August Willemsen, Amsterdão, 1977; etc.). Afora as traduções, a proporção do prestígio crescente do escritor pode aferir-se, igualmente, pelo facto de o seu nome começar a surgir recorrentemente em antologias de diversos países. Outros títulos emblemáticos maiores vieram consolidar o autor como um dos nomes cimeiros da literatura brasileira, como é o caso de Cemitério de Elefantes (1964) e O Vampiro de Curitiba (1965). Em 1969, refira-se ainda, A Guerra Conjugal é transposta para o cinema pela câmara de Joaquim Pedro de Andrade (com diálogos de Dalton). Finalmente, é de referir que Trevisan obteve este ano o Prémio Camões, o que significa uma consagração ímpar da sua obra, como é evidente. Antes disso, em 2003, o seu merecimento estético-literário tinha sido reconhecido com o Prémio Portugal Telecom (ex aequo com esse outro grande escritor brasileiro que dá pelo nome de Bernardo Carvalho). GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 3 4 5 elementares de difusão, dizíamos, está longe de o condenar à despromoção, antes pelo contrário. De outro modo: o anonimato, ao fim e ao resto, pela curiosidade que instiga, constitui uma das razões pelas quais certamente se lê (ou se deseja ler) Trevisan; e, mais, pelas quais se tende a convertê-lo num mito. O que, aliás, condiz com a literatura enquanto dispositivo mitológico. Não por acaso, a alcunha do escritor provém de um dos seus mais emblemáticos títulos, o que diz bem da ficcionalização da sua figura; ou seja: à falta de elementos do foro biográfico, a caracterização do autor faz-se pelo que dele existe, a obra, que se torna assim como que indispensável para qualificar um autor propenso à rasura da sua condição empírica. Por conseguinte, se a invisibilidade do escritor é de molde a resistir ao alinhamento dos seus textos em termos comerciais (ou puramente comerciais), não é menos certo que é justamente a ocultação da figura do autor, pela primazia que concede à obra, a começar pela dimensão intrigante que lhe confere (que obra é essa, a de um autor que persiste em não aparecer?), que lhe outorga, no fim de contas, também visibilidade e uma devoção apreciável. Quanto mais, dir-se-ia, o autor se esconde, menos escapa a tornar-se numa figura incontornável, a do Autor. Eis o que dele diz um crítico: «Ninguém sabe onde ele mora, ninguém o vê. Sabemos que ele existe porque publicou alguns livros e porque – eis o principal – de tempos a tempos alguns privilegiados recebem pelo correio um folheto rústico, onde se contém a melhor literatura escrita no Brasil» (CUNHA in TREVISAN, 1994b, p. 3). Descontando o juízo crítico por certo um tanto hiperbólico, sem, como é lógico, com isso desconsiderar o merecimento estético do autor, tanto parece singular a sua invisibilidade como o cuidado que põe em enviar por via tradicional «um folheto rústico» a um conjunto restrito de eleitos. De resto, Trevisan, sabe-se, começou, na década de 50, a publicar os primeiros contos justamente em cadernos de papel-jornal; e, depois, enviava-os precisamente a amigos. Enquanto arte, se a prosa do escritor não escapará neste circuito de difusão esporádico a ser valor de mercado (é de crer que os «folhetos rústicos», pela sua raridade, alcancem, pois, a invejável condição de peças de coleção e, com tal, um valor de mercado considerável), não é ocioso sublinhar um certo apreço de Trevisan por folhas volantes, que é como quem diz: a literatura de cordel. O apreço é condizente com o nítido pendor folhetinesco que especifica muito do que escreve o autor. O que lemos nas narrativas breves (e em especial nas menos breves) são melodramas que não destoam com os que acharíamos sem dificuldade de maior em trechos folhetinescos (de faca e alguidar, apetece acrescentar). Esta consideração não é despicienda, na medida em que explica o porquê de a obra de Trevisan não GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 3 4 6 recuar perante o que noutros micro-ficcionistas se afiguraria decerto improvável ou então seria quiçá usado com extrema parcimónia (pelo menos): linguagem popular e coloquialidade, sem o mínimo receio da obscenidade, Kitsch, clichés, abundância (ou mesmo exclusividade) do diálogo. Mas também não é despiciendo, refira-se, correlacionar as folhas volantes que Trevisan fazia chegar a certos privilegiados como um sintoma decerto inequívoco da invisibilidade do autor atrás assinalada, e isso essencialmente a dois níveis. A) Em primeiro lugar, a escassez de folhas volantes endereçadas a um grupo restrito de amigos e conhecidos, a sinalizarem uma fuga ao circuito das editoras e de um entendimento da criação como trabalho oficinal, não alcançam o estatuto de um volume composto, como se sabe; isto é, parece ter havido, pelo menos a certo ponto da carreira do escritor, a renitência à constituição de uma obra enquanto tal, correspondendo, assim, a invisibilidade da figura do autor à quase invisibilidade da sua produção: textos avulsos escassa e clandestinamente distribuídos e que, em consequência, dificilmente circunscrevem o espaço de uma obra. Deste modo, se o autor ao refugiar-se nas trevas, digamo-lo assim, não ganha vida além da obra, o mesmo dizer, não ganha vida senão através da obra, não é impertinente dizer que, semelhantemente, pelo menos antes de se constituir em volumes compostos, esta tendia a não ganhar forma, ou se quisermos, autonomia além do autor. B) Em segundo lugar, ao fazer uso de uma linguagem que, sem dificuldade, ouviríamos perfeitamente em qualquer zona pobre de Curitiba (e do Brasil), o Autor desaparece naquilo que, em literatura, mais enfatiza a singularidade de um escritor: a linguagem. Trevisan como que perde voz (o seu idioleto, se preferirmos) ao mimetizar as vozes perdidas das favelas de Curitiba (socioleto), já que a fidelidade ao linguajar das suas personagens obsta à individuação autoral. Dito de outro modo: a individuação de Trevisan enquanto autor tende a desaparecer em proveito de uma linguagem que, por tão empenhada e ostensivamente espelhar as camadas desfavorecidas e subalternizadas da população12, é da ordem do comum e do trivial. Acantonada nos ambientes que põe em cena, abdicou dos artifícios do estilo a bem de uma fidelidade sociológica: a que lhe faculta representar com 12 Um tanto como Georges Simenon se esforçava por cultivar o que chamava o estilo il pleut nos seus policiais, isto é, um estilo desprovido de estilo, suficientemente cinzento para ser capaz de representar a realidade corriqueira na sua mais pura banalidade (e, desde logo, com a figura banalíssima, a não ser talvez no instinto, de Maîgret). GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 3 4 7

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