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FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World PDF

14 Pages·2014·0.17 MB·Portuguese
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TROCAS CULTURAIS NO “RIO ATLÂNTICO”: ANGOLA NO AUGE DO TRATO DE ESCRAVOS FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. 262 p. (cid:1)(cid:2) Atlântico como rio: o símile, do ses de mestrado e doutorado.2 Como historiador Alberto da Costa e Sil- os trabalhos anteriores, o novo texto va, ressalta o quanto o oceano uniu impressiona, tanto pela densidade a África e o Brasil, facilitando sua da pesquisa em arquivos variados — comunicação na época moderna.1 angolanos, portugueses e brasileiros Em Cross-Cultural Exchange in the —, quanto pela inovação metodoló- Atlantic World, Roquinaldo Amaral gica e temática. Faz jus ao padrão Ferreira, professor da Brown Uni- de excelência da prestigiosa série da versity, EUA, aprofunda o tema. O qual faz parte, a “African Studies” enfoque é no intercâmbio entre An- (iniciada em 1968) da Editora da gola e Brasil, mais especificamente Universidade de Cambridge. Com nas trocas culturais efetivadas, na ele, e com suas duas teses inéditas, margem angolana do “rio”, entre o brasileiro Ferreira se projeta para africanos, portugueses e brasileiros o primeiro time internacional de his- durante o período-auge do comércio toriadores da África. de escravos (c. 1680-1850). Como indica no título da obra, O livro é a primeira monografia Ferreira dialoga com o conceito de publicada de Ferreira, mas o terceiro trabalho de fôlego dele sobre as liga- 2 Roquinaldo Amaral Ferreira, “Dos sertões ções entre Angola e o mundo luso- (cid:1)(cid:2)(cid:3)(cid:4)(cid:5)(cid:6)(cid:7)(cid:8)(cid:5)(cid:9)(cid:10)(cid:2)(cid:11)(cid:3)(cid:5)(cid:12)(cid:13)(cid:14)(cid:10)(cid:2)(cid:3)(cid:9)(cid:6)(cid:15)(cid:16)(cid:1)(cid:6)(cid:3)(cid:17)(cid:15)(cid:3)(cid:15)(cid:18)(cid:10)(cid:12)(cid:1)(cid:19)(cid:2)(cid:18)(cid:3)(cid:15)(cid:3) -brasileiro no período escravista. O comércio lícito em Angola, 1830-1860” atual estudo vai na esteira de suas te- (Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996); Roquinaldo Amaral Ferreira, “Transforming Atlantic Slaving: Trade, 1 Alberto da Costa e Silva, Um rio chamado Warfare and Territorial Control in Angola, atlântico: a África no Brasil e o Brasil na 1650-1800 (Tese de Doutorado, University África, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, of California, Los Angeles, 2003). 2003. Afro-Ásia, 49 (2014), 365-378 365 afro 49.indb 365 5/6/2014 16:40:55 “mundo atlântico”. Embora ele co- negociações com chefes africanos e nheça a fundo a bibliografia sobre encontrava limites em reinos interio- o atlântico anglo-americano, onde ranos militarmente fortes (o de Cas- o conceito se originou, seu ponto de sanje, por exemplo). Como resultado, partida é um ensaio de Robin Law [...] a costa angolana e algumas par- e Kristin Mann a respeito de outra tes do interior eram caracterizadas região do atlântico luso, aquela que por uma dinâmica cultural e social engloba o Recôncavo da Bahia e o altamente amalgamada. De um golfo de Benim.3 Segundo Ferreira lado, os africanos se apossavam de (p.10), para Law e Mann elementos da cultura européia para [...] o trato de escravos entre Bahia e reforçar as hierarquias sociais entre a África ocidental era caracterizado eles. De outro, algumas partes do por comunidades [atlânticas] trans- aparelho legal da colônia e do tecido culturais altamente fluidas, cujas cultural e religioso da “Angola por- origens estavam no papel-chave tuguesa” eram baseadas em institui- desempenhado por indivíduos de ções africanas (p. 12). cultura mista [...] [que eram] predo- A segunda observação de Fer- minantemente negociantes (p. 10). reira é que, no caso de Angola, as Ferreira encampa a idéia de “co- trocas transculturais e mesmo as munidade atlântica”, porém faz duas transoceânicas não envolviam, pre- observações importantes ao transpor dominantemente, negociantes; gran- o conceito ao estudo dos elos entre de diversidade de gente participava Brasil e Angola. desses intercâmbios, inclusive es- Primeiro, ele rejeita a noção de cravos e ex-escravos retornados do Law e Mann de que uma tal “co- Brasil, alguns fazendo a viagem de munidade” não teria se desenvovido ida e volta mais de uma vez. nas regiões de Luanda e Benguela Como veremos, no entanto, as porque Portugal efetivamente se im- duas observações, baseadas na aná- pusera lá como potência colonial, ao lise empírica desenvolvida no livro, contrário do que acontecera no Gol- não levam o autor a concordar com fo de Benim, onde havia um relativo uma ideia que vem ganhando força vácuo de poder político europeu. Na na bibliografia, a de que a Angola verdade, pondera Ferreira, o controle sob influência portuguesa era uma de Portugal sobre Angola estava lon- “sociedade crioula”. ge de ser absoluto, mesmo no século No que tange a questões de mé- XVIII e início do XIX; dependia de todo, a perspectiva de Ferreira é a da história social. Ele se afilia explici- (cid:5)(cid:1)(cid:20)(cid:15)(cid:8)(cid:5)(cid:15)(cid:3)(cid:21)(cid:3)(cid:20)(cid:9)(cid:10)(cid:12)(cid:2)(cid:22)(cid:23)(cid:9)(cid:18)(cid:5)(cid:24)(cid:12)(cid:9)(cid:1)(cid:25)(cid:3)(cid:1)(cid:3)(cid:15)(cid:18)(cid:5)(cid:12)(cid:1)(cid:5)(cid:26)- 3 Robin Law e Kristin Mann, “West Africa in the Atlantic Community: the Case of the gia de reduzir a escala de observação Slave Coast”, William and Mary Quarterly, visando a reconstituir as relações e v. 56, n. 2 (1999), 307-31. 366 Afro-Ásia, 49 (2014), 365-378 afro 49.indb 366 5/6/2014 16:40:55 redes socais ao rés do chão para po- canos (o de Cassanje, por exemplo). der pensar de forma consequente o Em muitas ocasiões, Ferreira conse- quadro macro. Inspira-se, em parte, gue fazer uma ligação nominativa na vertente italiana dessa aborda- de fontes que permite seguir indiví- gem, com sua ênfase no “excepcio- duos entre séries documentais. nal normal” (a exceção que revela O especialista brasileiro pode es- a norma), porém prioriza a micro- tranhar o contexto específico, ango- -história “do ordinário” ou da “vida lano, das histórias que surgem dessa cotidiana”. Propõe, para essa finali- documentação, mas se sentirá em dade, uma abordagem “biográfica” casa ao ver a semelhança tipológi- que “coloque os africanos e seus ca entre boa parte das fontes usadas descendentes no centro de suas pró- e aquelas do historiador social na prias histórias” (p. 5). Para ponderar margem de cá do “rio” — um refle- criticamente o sentido de histórias xo, evidentemente, da presença do de vida que são quase sempre frag- mesmo arcabouço institucional do mentárias, dada a natureza lacunar império luso nos dois lados. Aliás, da documentação, Ferreira procura, não há dúvida de que a formação (cid:21)(cid:3)(cid:20)(cid:1)(cid:8)(cid:15)(cid:9)(cid:12)(cid:1)(cid:3)(cid:17)(cid:2)(cid:3)(cid:1)(cid:8)(cid:5)(cid:12)(cid:2)(cid:27)(cid:24)(cid:6)(cid:2)(cid:16)(cid:2)(cid:3)(cid:28)(cid:6)(cid:9)(cid:29)(cid:29)(cid:2)(cid:12)(cid:17)(cid:3) brasileira do autor como também a Geertz, abordagem biográfica com ligação de fontes, que vem sendo cultivada [...] elaborar descrições densas de já faz tempo por historiadores do indivíduos baseadas em análises de- Brasil (e do Brasil no mundo atlânti- talhadas de uma vasta e eclética va- co), lhe abriram caminhos. Isso fica riedade de fontes primárias, muitas claro nas citações em notas, mas te- das quais raramente — ou até nunca ria sido interessante (especialmente — usadas antes por estudiosos da para o leitor anglófono, para quem Africa e do mundo atlântico (p. 6). esta edição é destinada) uma refle- (cid:4)(cid:3)(cid:12)(cid:15)(cid:29)(cid:15)(cid:12)(cid:30)(cid:8)(cid:10)(cid:9)(cid:1)(cid:3)(cid:1)(cid:31)!(cid:9)(cid:3)(cid:26)(cid:3)(cid:21)(cid:3)(cid:17)(cid:2)(cid:10)!(cid:20)(cid:15)(cid:8)- xão metodológica a respeito do as- tação compulsada pelo autor em sunto — por exemplo, sobre as afi- diversos arquivos em Luanda e nidades e eventuais diferenças entre Benguela, além dos fundos pesqui- a sua abordagem biográfica e as de sados em Lisboa e no Rio de Janei- Regina Xavier, João Reis, o mesmo ro. Destacam-se, no rol das fontes, Reis com Flávio Gomes e Marcus de processos judiciais diversos, corres- Carvalho, James Sweet, e outros.4 pondência da Câmara Municipal de Luanda, inventários post-mortem e 4 Regina Célia Lima Xavier, A conquista da testamentos, documentação notarial, liberdade: libertos em Campinas na segunda ofícios entre governadores, chefes metade do século XIX, Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1996; João José Reis, africanos, autoridades de presídios Domingos Sodré, um sacerdote africano: (fortes) no interior e representantes escravidão, liberdade e candomblé na Bahia (capitães-mores) junto a reinos afri- do século XIX, São Paulo: Companhia das Letras, 2008; João José Reis, Flávio dos Afro-Ásia, 49 (2014), 365-378 367 afro 49.indb 367 5/6/2014 16:40:56 I negreiro, proveniente da Bahia. Em Cross-Cultural Exchange se meados do XVIII, esse personagem divide em seis capítulos. O autor se torna negociante sertanejo, em explicita que os três primeiros têm seguida, representante do governa- uma certa unidade temática: enfo- dor em Luanda junto ao reino de cam questões em torno do cresci- Holo (reino ambundo), com a mis- mento do comércio de escravos den- são — frustrada — de contornar o tro da área de influência portuguesa monopólio de Matamba e Cassanje e suas consequências sociais e jurí- sobre o trato sertão adentro, e, fi- dicas. Da mesma forma, os últimos nalmente, capitão-mor de Caconda três capítulos tratam de aspectos (presídio no interior de Benguela), iterligados de história sociocultural, posto que lhe facilita engajamento religiosa e política, e o enfoque ain- intenso no comércio de cativos. Ao da recai sobre a área “portuguesa” recontar a história desse homem, — principalmente Luanda e seu in- Ferreira apresenta — seguindo uma terior, embora também inclua Ben- estratégia narrativa usada na maio- guela e seu sertão. ria dos capítulos do livro — frag- O primeiro capítulo aborda o mentos de biografias paralelas de crescimento da atividade de serta- outros sujeitos (nesse caso, também nejos e pumbeiros, pequenos ne- mercadores), para traçar um quadro gociantes no trato de escravos na denso e ao mesmo tempo amplo da hinterlândia “portuguesa” (ou seja, “geopolítica do comércio na hinter- entre o mar e os reinos ambundo, lândia de Luanda” (pp. 16-7). Ele especialmente Matamba e Cassan- esclarece, por exemplo, as tensões je, que bloqueavam o acesso dire- entre a comunidade de negociantes to desses mercadores ao comércio em Luanda (“moradores”) e os mer- de escravos no interior profundo). cadores “estrangeiros” (brasileiros). O contexto é o do grande aumento E demonstra o grande crescimento da demanda brasileira por cativos do tráfico na região dominada por (entre final do século XVII e pri- Portugal. meira metade do XIX). A narrati- O segundo capítulo examina as va aqui se estrutura em torno da consequências sociais desse aumen- carreira em Angola de um homem to no comércio itinerante dos serta- branco e ex-proprietário de navio nejos/pumbeiros, [...] particularmente com respeito Santos Gomes e Marcus de Carvalho, (cid:1)(cid:2)(cid:3)(cid:4)(cid:5)(cid:6)(cid:7)(cid:2) aos vassalos africanos, indivíduos (cid:8)(cid:5)(cid:9)(cid:10)(cid:11)(cid:12)(cid:2)(cid:13)(cid:14)(cid:7)(cid:9)(cid:15)(cid:11)(cid:16)(cid:2)(cid:17)(cid:18)(cid:15)(cid:14)(cid:3)(cid:19)(cid:20)(cid:21)(cid:22)(cid:11)(cid:2)(cid:17)(cid:2)(cid:4)(cid:20)(cid:23)(cid:17)(cid:14)(cid:21)(cid:3)(cid:21)(cid:17)(cid:2)(cid:10)(cid:11)(cid:2) (cid:24)(cid:13)(cid:4)(cid:25)(cid:10)(cid:13)(cid:20)(cid:15)(cid:11)(cid:2)(cid:10)(cid:17)(cid:26)(cid:14)(cid:11)(cid:2)(cid:27)(cid:15)(cid:28)(cid:2)(cid:29)(cid:30)(cid:31)(cid:31)!(cid:15)(cid:28)(cid:2)(cid:29)(cid:30)"#$, São Paulo: que viviam em territórios controla- Companhia das Letras, 2010; James Sweet, dos por chefes autóctones aliados a Domingos Álvares, African Healing, and the Portugal (p. 52). Intellectual History of the Atlantic World, Chapel Hill: University of North Carolina A narrativa, dessa vez, recons- Press, 2010. 368 Afro-Ásia, 49 (2014), 365-378 afro 49.indb 368 5/6/2014 16:40:56 trói diversas histórias miúdas, para o comércio vindo da “fronteira de traçar um quadro detalhado das re- escravização” no interior profundo, lações entre negociantes em Luanda [...] tornaram os vassalos africanos e Benguela e sertanejos, e entre eles [na região portuguesa] vulneráveis e chefes africanos no interior. Exa- (cid:21)(cid:3)(cid:15)(cid:18)(cid:10)(cid:12)(cid:1)(cid:19)(cid:9)"(cid:1)#$(cid:2)%(cid:3)&(cid:18)(cid:5)(cid:15)(cid:3)(cid:27)(cid:12)(cid:2)(cid:10)(cid:15)(cid:18)(cid:18)(cid:2)(cid:3)(cid:5)(cid:1)(cid:20)- mina, também, os vários tipos de bém foi impulsionado pela demanda mercadores envolvidos no comércio por bens nos sertões [tanto na região sertanejo. Finalmente, demonstra portuguesa quanto na fronteira de os esforços de alguns governadores escravização], que moldaram a dinâ- (preocupados em manter as alianças mica social e legal de maneira a per- politicas estabelecidas) para proteger mitir que negociantes litorâneos, au- vassalos livres de uma “escravização toridades internas, e principalmente injusta”. Vale a pena citar por extenso mercadores itinerantes, pudessem algumas das conclusões de Ferreira mover demandas judiciais contra a respeito das origens dos africanos sobas [chefes locais] e pessoas co- comercializados e das maneiras pelas muns. Demandas que resultaram em quais foram escravizados, pois, como escravização de legalidade duvidosa veremos mais adiante, são contribui- — através de dívidas, acusações de ções incisivas ao debate atual sobre a feitiçaria e raptos endêmicos. Este configuração do comércio de escra- ciclo vicioso transformou a institui- vos dentro da África Central: ção de penhora de gente numa má- Os estudiosos têm presumido que a quina de produzir escravos (p. 87). chamada fronteira de escravização No terceiro capítulo, Ferreira en- [slaving frontier: termo cunhado pelo foca as iniciativas de africanos arre- historiador Joseph Miller] de Angola batados por esse vendaval crescente movia-se continuamente para o leste de escravizaçao. E dá continuidade ao longo do século XVIII, e que a (cid:21)(cid:3)(cid:23)(cid:9)(cid:18)(cid:5)(cid:24)(cid:12)(cid:9)(cid:1)(cid:3)(cid:17)(cid:1)(cid:3)(cid:27)(cid:12)(cid:15)(cid:2)(cid:10)!(cid:27)(cid:1)#$(cid:2)(cid:3)(cid:17)(cid:2)(cid:3)(cid:16)(cid:2)(cid:19)(cid:15)(cid:12)- maioria dos africanos escravizados e no português com o cativeiro ilegal, embarcados para a América veio de perpetrado frequentemente por seus regiões fora da influência portugue- próprios agentes e visto como amea- sa. Este capítulo demonstrou que as ça ao domínio da Coroa. Novamen- redes oportunistas criadas por serta- te, a narrativa se estrutura em torno nejos e pumbeiros também afetaram de uma biografia: a de uma mulher profundamente vassalos africanos liberta, cujo filho, nascido livre, é que viviam em regiões sob influência levado cativo para o Brasil, mas portuguesa (p. 87). consegue acionar a Justiça lusa para O aumento da demanda brasilei- retornar, e que, em momento pos- ra por escravos, junto com o contro- terior, é ameaçada, ela mesma, de le exercido pelos reinos de Matam- escravização. Adensando a história ba e, especialmente, Cassanje sobre com outras experiências semelhan- Afro-Ásia, 49 (2014), 365-378 369 afro 49.indb 369 5/6/2014 16:40:56 tes e contrastantes, o autor demonstra iniciativa dos africanos afetados — a “fluidez” da fronteira entre escravi- e viraram o principal tipo de litígio dão e liberdade vivenciada por mui- julgado. Este capítulo, junto com o tos cativos “ladinos” (nascidos em anterior, de certa forma dá continui- Luanda), que com certa frequência (cid:17)(cid:1)(cid:17)(cid:15)(cid:25)(cid:3)(cid:8)(cid:2)(cid:3)(cid:18)(cid:26)(cid:10)!(cid:6)(cid:2)(cid:3)’*+++(cid:25)(cid:3)(cid:21)(cid:3)(cid:23)(cid:9)(cid:18)(cid:5)(cid:24)(cid:12)(cid:9)(cid:1)(cid:3)(cid:17)(cid:1)(cid:3) conseguiam mobilizar pessoas e ins- conturbada relação entre a Coroa e tituições poderosas dentro de suas re- seus funcionários em Angola no sé- des sociais (por exemplo: padres e a culo XVI e XVII, contada por Linda Irmandade do Rosário), para se pro- Heywood e John K. Thornton.5 Aci- teger contra a ameaça do cativeiro. ma de tudo, é uma impressionante O enfoque principal do capítulo, história social de lutas africanas pela no entanto, é o “Tribunal dos muca- liberdade, travadas numa instituiçao nos” (mucano significa “litígio” em em que práticas jurídicas autóctones quimbundo, a língua dos ambundos, e portuguesas se imbricavam. da região de Luanda e seu interior). II Trata-se de uma encruzilhada — Parece-me oportuno me estender institucional e documental — entre um pouco sobre a importância dos a escravização ilegal e as tentativas três primeiros capítulos para o co- dos africanos e da Coroa portuguesa nhecimento dos fluxos do comércio de combater esse abuso. Original- centro-africano de escravos, den- mente uma instância jurídica afri- tro do continente e em direção ao cana de âmbito local, subordinada Brasil. Ferreira não se alonga com ao soba, a instituição se verticalizou respeito ao debate historiográfico com o tempo; os tribunais locais, nas sobre o assunto, além de resumir e regiões de maior influência portugue- relativizar a contribuição de Joseph sa, acabaram sendo subordinados aos Miller. Possivelmente, ele presume capitães-mores. Por causa dos abusos que os especialistas em história cen- destes últimos, que amiúde lucravam tro-africana do período já estão por com a condenação e venda de afri- dentro do assunto. Para outros afri- canos que reclamavam sua liberda- canistas, no entanto, e especialmen- de, criaram-se tribunais de última te para historiadores da diáspora, instância em Luanda e Benguela, para os quais o tema é de grande in- subordinados, em alguns momen- teresse mas a bibliografia especifica tos, aos governadores e, em outros, não tão conhecida, é útil adensar a a autoridades diversas, com a es- discussão. E mesmo para a história perança de que uns combatessem a social da região enfocada por Ferrei- corrupção de outros. No contexto de uma enorme expansão do comércio de cativos, as “ações de liberdade” 5 Linda Heywood e John K. Thornton, Central levadas a esses tribunais também Africans, Atlantic Creoles and the Founda- aumentaram em número — devido, tion of the Americas, 1585-1660, Nova York: (cid:15)(cid:20)(cid:3)(cid:27)(cid:1)(cid:12)(cid:5)(cid:15)(cid:25)(cid:3)(cid:18)(cid:15)(cid:16)!(cid:8)(cid:17)(cid:2)(cid:3)(cid:2)(cid:3)(cid:1)!(cid:5)(cid:2)(cid:12)(cid:25)(cid:3)(cid:21)(cid:3)(cid:27)(cid:12)(cid:24)(cid:27)(cid:12)(cid:9)(cid:1)(cid:3) Cambridge University Press, 2008. 370 Afro-Ásia, 49 (2014), 365-378 afro 49.indb 370 5/6/2014 16:40:56 ra, um balanço do “estado da arte”, para isso com os fornecedores de (cid:8)(cid:2)(cid:3)(cid:31)!(cid:15)(cid:3)(cid:17)(cid:9)"(cid:3)(cid:12)(cid:15)(cid:18)(cid:27)(cid:15)(cid:9)(cid:5)(cid:2)(cid:3)(cid:21)(cid:18)(cid:3)(cid:2)(cid:12)(cid:9)(cid:16)(cid:15)(cid:8)(cid:18)(cid:3)(cid:17)(cid:1)(cid:18)(cid:3) mercadorias em demanda no inte- pessoas traficadas, pode jogar nova rior. São então forçados a vender luz sobre as trocas transculturais, es- muitos dos dependentes — cativos pecialmente aquelas entre africanos. comprados ou seus filhos — para Em Way of Death, Miller com- saldar dívidas; eventualmente, tam- para a “fronteira de escravização” bém penhoram dependentes livres na África Central ocidental a uma que depois não conseguem resgatar onda, que vai avançando continen- e acabam escravizados. Miller argu- te adentro, até chegar praticamente menta, enfim, que tanto a fronteira aos grandes lagos no período 1830- escravista quanto a Zona Atlântica 1850. Nessa fronteira, a escraviza- fornecem cativos (sobretudo ho- ção acontece principalmente como mens) para as Américas. Entretanto, resultado de guerras provocadas salvo engano, ele não se arrisca a pela demanda por cativos na Amé- calcular o tamanho relativo dos dois rica e também (como consequência) grupos de procedência. Na verdade, na “Zona Atlântica” da África. Esta (cid:27)(cid:15)(cid:6)(cid:1)(cid:3)(cid:30)(cid:8)(cid:29)(cid:1)(cid:18)(cid:15)(cid:3)(cid:17)(cid:1)(cid:17)(cid:1)(cid:3)(cid:8)(cid:1)(cid:3)(cid:8)(cid:1)(cid:12)(cid:12)(cid:1)(cid:5)(cid:9)(cid:19)(cid:1)(cid:3)(cid:21)(cid:3)(cid:29)(cid:12)(cid:2)(cid:8)- última é uma região “móvel”, cons- teira de escravização, o leitor fica tituída pela área deixada atrás pelo com a impressão de que essa área avanço da onda da fronteira de escra- é a principal fornecedora de cativos vização. Nela, se restabelece a “paz” para o comércio oceânico. De fato, em torno de sociedades caracteriza- em trabalhos posteriores, Miller vol- das agora como “escravistas”, ou ta ao tema, para frisar que a propor- seja, com percentagem significativa ção vinda da fronteira, junto com a de sua população reduzida ao cati- variedade dos povos atingidos, au- veiro. Entre elas estão os reinos de menta consideravelmente no final Matamba e Cassanje, cujo poder de do século XVIII e permanece nesse manter o monopólio sobre os cativos patamar, ou até cresce mais ainda, vindo do interior profundo provém, até o final do trato.7 em última análise, de sua “riqueza” Fica evidente, portanto, que Fer- em dependentes escravizados.6 reira comprova, com mais densidade No modelo de Miller, outros reis e sobas da Zona Atlântica, procu- 7 Joseph C. Miller, “Central Africa During rando aumentar o número de seus the Era of the Slave Trade, 1490s-1850s”, in dependentes, compram escravos — Linda M. Heywood (org.), Central Africans principalmente mulheres — oriun- and Cultural Transformations in the Ame- dos da fronteira, endividando-se rican Diaspora (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), pp. 21-69, esp. pp. 54-63. Ver também Joseph C. Miller, 6 Joseph Miller, Way of Death: Merchant “Restauração, reinvenção e recordação: re- Capitalism and the Angolan Slave Trade, cuperando identidades sobre a escravização 1730-1830, Madison: University of Wis- (cid:8)(cid:1)(cid:3)<(cid:29)(cid:12)(cid:9)(cid:10)(cid:1)(cid:3)(cid:15)(cid:3)(cid:29)(cid:1)(cid:10)(cid:15)(cid:3)(cid:21)(cid:3)(cid:15)(cid:18)(cid:10)(cid:12)(cid:1)(cid:19)(cid:9)(cid:17)$(cid:2)(cid:3)(cid:8)(cid:2)(cid:3)=(cid:12)(cid:1)(cid:18)(cid:9)(cid:6)>(cid:25)(cid:3) consin Press, 1988. Revista de História, n. 164 (2011), pp. 17-64. Afro-Ásia, 49 (2014), 365-378 371 afro 49.indb 371 5/6/2014 16:40:56 empírica, a tese de Miller a respeito ticamente a totalidade deles se teria do ciclo de endividamento de chefes originado no planalto de Benguela na Zona Atlântica de influência por- (dos grupos posteriormente cha- tuguesa, especialmente na hinterlân- mados de ovimbundos), ou seja, da dia de Luanda, e, portanto, a cres- região sob influência portuguesa.9 cente dinâmica do trato de escravos Thornton e Candido colocam em dessa região. Isso o leva a relativi- dúvida a idéia de Miller de que o zar a outra parte da tese de Miller “recrutamento” de escravos na Zona a respeito do predomínio, no trato Atlântica para o comércio america- atlântico, de cativos vindos do inte- no resultou quase inteiramente de rior profundo, embora não ao ponto processos sociais “pacíficos”. Tanto de rejeitá-lo por completo, pois seus no antigo reino do Congo, quanto dados não permitem uma quantifi- em Benguela, um grande número de cação precisa das duas correntes do pessoas foi escravizado por meio de tráfico. Ora, Thornton e Heywood guerras ou razias. Ferreira conhece têm contribuições semelhantes com esses trabalhos (os cita nas notas), (cid:12)(cid:15)(cid:6)(cid:1)#$(cid:2)(cid:3)(cid:21)(cid:3)(cid:17)(cid:9)(cid:8)(cid:7)(cid:20)(cid:9)(cid:10)(cid:1)(cid:3)(cid:17)(cid:2)(cid:3)(cid:10)(cid:2)(cid:20)(cid:26)(cid:12)(cid:10)(cid:9)(cid:2)(cid:3)(cid:17)(cid:15)(cid:3) mas não os discute em seu texto. Se escravos na Zona Atlântica que vai tivesse integrado seus resultados aos da embocadura do Rio Zaire para dos outros estudiosos, poderia ter pontos na costa mais para cima, en- levantado dúvidas mais consistentes tre o início do século XVIII e mea- sobre o modelo de procedências dos dos do XIX. Além disso, Thornton escravos de Miller. calcula (utilizando dados dos anos A pesquisa continua, em todo 1780) em quase 50% a participação caso, e agora há um trabalho sobre do antigo reino do Congo (ou seja, (cid:1)(cid:29)(cid:12)(cid:9)(cid:10)(cid:1)(cid:8)(cid:2)(cid:18)(cid:3)(cid:10)(cid:23)(cid:15)(cid:16)(cid:1)(cid:17)(cid:2)(cid:18)(cid:3)(cid:21)(cid:3)(cid:20)(cid:1)(cid:12)(cid:16)(cid:15)(cid:20)(cid:3)@(cid:12)(cid:1)- em mais de 50% a proporção prove- sileira do Atlântico que reforça, e niente da região cultural congo, que muito, o conjunto de pesquisas men- ia além das fronteiras do reino).8 cionado. Em dissertação de mestra- Recentemente, também Mariana do, Marcos Abreu Leitão de Almei- Candido chegou a conclusões seme- da estudou os etnônimos fornecidos lhantes, de fato mais contundentes, pelos escravos em navios negreiros com relação aos cativos saídos de interceptados e trazidos ao Rio de Benguela no mesmo período. Pra- Janeiro nos anos 1834-1839, para serem julgados pela comissão mista Brasil-Inglaterra. Plotando essas pa- 8 John Thornton, “As guerras civis no Con- trias chicas no mapa, Almeida pôde (cid:16)(cid:2)(cid:3)(cid:15)(cid:3)(cid:2)(cid:3)(cid:5)(cid:12)(cid:13)(cid:14)(cid:10)(cid:2)(cid:3)(cid:17)(cid:15)(cid:3)(cid:15)(cid:18)(cid:10)(cid:12)(cid:1)(cid:19)(cid:2)(cid:18)(cid:11)(cid:3)(cid:1)(cid:3)(cid:23)(cid:9)(cid:18)(cid:5)(cid:24)(cid:12)(cid:9)(cid:1)(cid:3)(cid:15)(cid:3)(cid:1)(cid:3) (cid:17)(cid:15)(cid:20)(cid:2)(cid:16)(cid:12)(cid:1)(cid:14)(cid:1)(cid:3)(cid:17)(cid:15)(cid:3)Q\Q^(cid:3)(cid:1)(cid:3)Q^__(cid:3)(cid:12)(cid:15)(cid:19)(cid:9)(cid:18)(cid:9)(cid:5)(cid:1)(cid:17)(cid:1)(cid:18)>(cid:25)(cid:3) Estudos Afro-Asiáticos, n. 32 (1997), pp. 55-74, esp. 66-7; Linda Heywood, “Slavery 9 Mariana Pinho Candido, “Enslaving and its Transformation in the Kingdom of Frontiers: Slaving, Trade and Identity in Kongo: 1491-1800”, The Journal of African Benguela, 1780-1850” (Tese de Doutorado History, v. 50, n. 1 (2009), pp. 1-22. em História, York University, 2006). 372 Afro-Ásia, 49 (2014), 365-378 afro 49.indb 372 5/6/2014 16:40:57 demonstrar que a grande maioria maioria desses grupos tivesse sofri- dessas pessoas veio da Zona Atlân- do transculturações significativas no tica mais antiga, que abarcava a período, pelo forte afluxo de gente região de influência portuguesa em interiorana.11 Angola e o reino do Congo, como III também as terras de alguns povos Voltemos ao livro em revista. O vizinhos ao leste.10 Isso não quer quarto capítulo passeia por Luanda dizer que o interior profundo não com visitas a Benguela. Flagra o dia tenha destinado um grande número a dia de cativos e senhores, dando de escravos para as sociedades da (cid:17)(cid:15)(cid:18)(cid:5)(cid:1)(cid:31)!(cid:15)(cid:3)(cid:21)(cid:3)‘(cid:27)(cid:1)(cid:9)(cid:18)(cid:1)(cid:16)(cid:15)(cid:20)(cid:3)(cid:6)(cid:9)(cid:8)(cid:16)!{(cid:18)(cid:5)(cid:9)(cid:10)(cid:1)>(cid:25)(cid:3) Zona Atlântica ou, pelo menos, para (cid:21)(cid:18)(cid:3)‘(cid:5)(cid:1)@(cid:15)(cid:12)(cid:8)(cid:1)(cid:18)>(cid:25)(cid:3)(cid:15)(cid:3)(cid:21)(cid:3)‘(cid:18)(cid:15)(cid:16)!(cid:12)(cid:1)(cid:8)#(cid:1)(cid:3)(cid:27)|@(cid:6)(cid:9)- a região dos congos e ambundos. O ca e controle social”. Incluída neste que indica é que a grande maioria último tema é a prática de deportar dos egressos dessas sociedades para escravos e libertos malcomportados a América havia sido parcialmente para o Brasil — um terror para os socializada na área litorânea (o caso dois grupos, pois, segundo o gover- de migrantes “em trânsito”, alguns nador em 1800, por bastante tempo) ou completa- mente socializada nela (o caso dos [os africanos de] algumas nações filhos de escravas provenientes da [...] estão convencidos de que nós os fronteira de escravização, ou dos fi- compramos para fritá-los e extrair lhos de vassalos e escravos nascidos óleo de seus corpos [p. 158]. naquelas sociedades). Enfim, a tese O quadro desenhado é semelhan- de Miller sobre a pulverização das te ao do Rio de Janeiro na primeira origens das pessoas da África Cen- metade do século XIX. Há escravos tral ocidental (em suas palavras, a por toda parte, em todo o tipo de predominância de gente banto “ge- serviço e dominando certos ofícios, nérica”) no Brasil a partir do final do como o de barbeiro. Eles desfrutam século XVIII, provavelmente não é de grande mobilidade, os homens mais sustentável. Tudo indica que a (cid:15)(cid:20)(cid:3)@(cid:1)(cid:12)(cid:15)(cid:18)(cid:3)(cid:21)(cid:18)(cid:3)(cid:5)!(cid:12)(cid:12)(cid:1)(cid:18)(cid:3)(cid:10)(cid:2)(cid:20)(cid:3)(cid:16)(cid:15)(cid:8)(cid:5)(cid:15)(cid:3)(cid:6)(cid:9)(cid:19)(cid:12)(cid:15)(cid:25)(cid:3) senzala do Brasil sudeste — e talvez as mulheres muitas vezes agindo a de Luanda e Benguela — foi ha- como quitandeiras ou empregadas bitada sobretudo por gente linguís- tica e culturalmente muito próxima (congo, ambundo, ovimbundo e vi- 11 Ver também: Robert W. Slenes, “‘Eu venho zinhos) — mesmo que a cultura da de muito longe, eu venho cavando’: jon- gueiros cumba na senzala centro-africana”, in Silvia Hunold Lara e Gustavo Pacheco 10 Marcos Abreu Leitão de Almeida, “Ladinos (orgs.), %(cid:17)&’(cid:14)(cid:20)(cid:3)(cid:2)(cid:21)(cid:11)(cid:2)((cid:11)(cid:10)(cid:26)(cid:11)(cid:12)(cid:2)(cid:3)(cid:18)(cid:2)(cid:26)(cid:14)(cid:3)(cid:19)(cid:3))*(cid:17)(cid:18)(cid:2) e boçais: o regime de línguas do contraban- históricas de Stanley J. Stein. Vassouras, do de africanos (1831-c. 1850)” (Disserta- 1949 (Rio de Janeiro/Campinas: Folha ção de Mestrado em História, Universidade Seca/CECULT, 2007), pp. 109-56, esp. pp. Estadual de Campinas, 2012). 115-21. Afro-Ásia, 49 (2014), 365-378 373 afro 49.indb 373 5/6/2014 16:40:57 como prostitutas. Há um número quele outro lado do “rio” indicam (cid:18)!@(cid:18)(cid:5)(cid:1)(cid:8)(cid:10)(cid:9)(cid:1)(cid:6)(cid:3)(cid:17)(cid:15)(cid:3)(cid:6)(cid:9)@(cid:15)(cid:12)(cid:5)(cid:2)(cid:18)(cid:3)(cid:21)(cid:3)(cid:19)(cid:9)(cid:18)(cid:5)(cid:1)(cid:25)(cid:3)(cid:10)(cid:2)(cid:20)(cid:3) por que a história podia parecer ve- proporcionalmente mais mestiços rossímil. entre eles do que entre os escravos. A viga mestra do capítulo se- Há senhoras da elite que não sabem guinte é a história de uma africana escrever; e assim por diante. acusada em Luanda, em 1726, de Mas existem, também, contras- ser ganga (“feitiçeira”, para a Igreja tes grandes com o Rio de Jneiro. Católica; “sacerdotisa, curandeira, Por exemplo, há muitos africanos intermediária entre o mundo dos ladinos empregados como caixei- mortos e o dos vivos”, para o povo ros nas lojas de negociantes e tam- ambundo). Ferreira explora a fun- bém no interior como amanuenses do a fonte principal sobre o caso, e secretários dos sobas. Há muitos um processo da Inquisição, mas tripulantes (escravizados) de navios vai muito além dela, reconstruindo, negreiros, mais visíveis em Luanda com a ajuda de outra documentação, (cidade menor) do que no Rio de as biografias da mulher e de dois de Janeiro, forçados a fazer a carreira seus amantes. Um deles é um padre entre Angola e Brasil, frequente- católico mestiço, ex-contrabandista mente como “línguas” (tradutores). de escravos em Benguela, de gran- Encontram-se senhoras de elite que de influência política em Luanda; o falam português (muitas com sota- outro é um brasileiro branco, degre- que brasileiro) quando em família, (cid:16)(cid:1)(cid:17)(cid:2)(cid:3)(cid:21)(cid:3)(cid:4)(cid:8)(cid:16)(cid:2)(cid:6)(cid:1)(cid:3)(cid:27)(cid:15)(cid:6)(cid:2)(cid:3)(cid:10)(cid:12)(cid:9)(cid:20)(cid:15)(cid:3)(cid:17)(cid:15)(cid:3)(cid:1)(cid:18)(cid:18)(cid:1)(cid:18)- mas usam quimbundo — a língua sinato, que, posteriormente, chega mais falada em Luanda — para li- a ser o representante do governa- dar com as escravas. Há autoridades dor de Angola em Cassanje. Lá, ele preocupadas em “importar” mulatos exerce o papel de ganga; preside do Brasil para aumentar o núme- rituais de juramento para determi- ro de falantes de português. Como nar a culpabilidade de réus em con- nos capítulos anteriores, Ferreira tendas jurídicas (ficando com uma conta uma história que serve como parte dos escravos e outros bens princípio organizador do texto: a de dos condenados, como pagamento). um escravo africano, recém-liberto Contextualizando essa história mi- em Angola, preso por suspeita de rabolante, Ferreira examina outros furto. O homem consegue driblar a casos de gangas em Luanda e Ben- polícia por um tempo, alegando que guela, para construir um perfil delas retornara do Brasil, para onde re- (e deles), seu papel na comunidade metia (ao irmão, aínda escravizado africana, as ocasiões em que eram lá) pequenos artigos para venda; era chamadas a agir (por africanos e eu- daí, dizia, que provinha seu dinhei- ropeus), seus rituais e cosmologia. ro. Tudo se revela uma farsa; mas os Da mesma forma, discorre sobre as vários casos, contados por Ferreira, características e carreiras do con- de escravos que voltaram, sim, da- junto de degregados portugueses e 374 Afro-Ásia, 49 (2014), 365-378 afro 49.indb 374 5/6/2014 16:40:58

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2Atlântico como rio: o símile, do historiador Alberto da Costa e Sil- va, ressalta o quanto o oceano uniu a África e o Brasil, facilitando sua.
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