Título original: PHÉNOMÉNOLOGIE DE LA PERCEPTION. Copyright © Éditions Gailimard, 1945. Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, 1994, para a presente edição. 2a edição abril de 1999 Preparação do original Silvaria Cobucci Leite Revisão gráfica Renato da Rocha Carlos Maurício Balthazar Leal Produção gráfica Geraldo Alves Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil i Merleau-Ponty, Maurice, 1908-1961. Fenomenologia da percepção / Maurice Merleau-Ponty ; [tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura]. - 2- ed. - São Paulo : Martins Fontes, 1999. - (Tópicos) Título original: Phénoménologie de Ia perception. Bibliografia. ISBN 85-336-1033-5 * 1. Percepção I. Título. II. Série. 99-1476 „___, _____ CDD-153.7 índices para catálogo sistemático: 1. Desenvolvimento perceptivo : Psicologia 153.7 2. Percepção : Psicologia 153.7 3. Processos perceptivos 153.7 Todos os direitos para o Brasil reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (OU) 239-3677 Fax (OU) 3105-6867 e-mail: [email protected] http Jlwww.martinsfontes. com INTRODUÇÃO OS PREJUÍZOS CLÁSSICOS E O RETORNO AOS FENÔMENOS I. A "sensação" 23 II. A "associação" e a "projeção das recordações" ... 35 III. A "atenção" e o "juízo" 53 IV. O campo fenomenal 83 V. O corpo como ser sexuado 213 VI. O corpo como expressão e a fala 237 ?> & O que é a fenomenologia? Pode parecer estranho que ain- |. Ç da se precise colocar essa questão meio século depois dos pri- «, S. meiros trabalhos de Husserl. Todavia, ela está longe de estar -» § resolvida. A fenomenologia é o estudo das essências, e todos TO C os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências: ã a essência da percepção, a essência da consciência, por exem- § pio. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreen- der o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua "facticidade". É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre "ali", antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um esta- tuto filosófico. É a ambição de uma filosofia que seja uma ' 'ciência exata'', mas é também um relato do espaço, do tem- po, do mundo "vividos". É a tentativa de uma descrição di- reta de nossa experiência tal como ela é, e sem nenhuma de- ferência à sua gênese psicológica e às explicações causais que 2 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO o cientista, o historiador ou o sociólogo dela possam fornecer, e todavia Husserl, em seus últimos trabalhos, menciona uma "fenomenologia genética"1 e mesmo uma "fenomenologia construtiva"2. Desejar-se-ia remover essas contradições distin- guindo entre a fenomenologia de Husserl e a de Heidegger? Mas todo Sein undZeit nasceu de uma indicação de Husserl, e em su- ma é apenas uma explicitação do '' natürlichen WeltbegrifF' ou do "Lebenswelt'' que Husserl, no final de sua vida, apresenta- va como o tema primeiro da fenomenologia, de forma que a con- tradição reaparece na filosofia do próprio Husserl. O leitor apres- sado renunciará a circunscrever uma doutrina que falou de tu- do e perguntar-se-á se uma filosofia que não consegue definir-se merece todo o ruído que se faz em torno dela, e se não se trata antes de um mito e de uma moda. Mesmo se fosse assim, restaria compreender o prestígio des- se mito e a origem dessa moda, e a seriedade filosófica traduzirá essa situação dizendo que afenomenologia se deixa praticar e reconhe- cer como maneira ou como estilo; ela existe como movimento antes de ter chegado a uma inteira consciência filosófica. Ela está a caminho desde muito tempo; seus discípulos a reencontram em todas as partes, em Hegel e em Kierkegaard, seguramente, mas também em Marx, em Nietzsche, em Freud. Um comentário filológico dos textos não produziria nada: só encontramos nos textos aquilo que nós colocamos ali, e, se alguma vez a história exigiu nossa interpretação, é exatamente a história da filosofia. É em nós mes- mos que encontramos a unidade da fenomenologia e seu verda- deiro sentido. A questão não é tanto a de enumerar citações quan- to a de fixar e objetivar esta. fenomenologia para nós que faz com que, lendo Husserl ou Heidegger, vários de nossos contempo- râneos tenham tido o sentimento muito menos de encontrar uma filosofia nova do que de reconhecer aquilo que eles esperavam. A fenomenologia só é acessível a um método fenomenológico. Tentemos portanto ligar deliberadamente os famosos temas feno- Trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar. Essa primeira ordem que Husserl dava à fenomenologia ini- ciante de ser uma "psicologia descritiva" ou de retornar "às coisas mesmas" é antes de tudo a desaprovação da ciência. Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo ou meu "psiquis- mo", eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, [»»• como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociolo- g- gia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo §. que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de ^ uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a ° qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo a o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exa- tamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramen- te despertar essa experiência do mundo da qual ela é a ex- pressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mes- mo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples ra- zão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele. Eu sou não um "ser vivo" ou mesmo um "homem" ou mes- mo "uma consciência", com todos os caracteres que a zoo- logia, a anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem a esses produtos da natureza ou da história — eu sou a fonte absoluta; minha experiência não provém de meus anteceden- tes, de meu ambiente físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta, pois sou eu quem faz ser para mim (e portanto ser no único sentido que a palavra possa ter para mim) essa tradição que escolho retomar, ou este horizonte 4 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO cuja distância em relação a mim desmoronaria, visto que ela não lhe pertence como uma propriedade, se eu não estivesse lá para percorrê-la com o olhar. As representações científicas segundo as quais eu sou um momento do mundo são sempre ingênuas e hipócritas, porque elas subentendem, sem men- cioná-la, essa outra visão, aquela da consciência, pela qual antes de tudo um mundo se dispõe em torno de mim e come- ça a existir para mim. Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conheci- mento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geo- grafia em relação à paisagem — primeiramente nós apren- demos o que é uma floresta, um prado ou um riacho. Este movimento é absolutamente distinto do retorno idealista à consciência, e a exigência de uma descrição pura exclui tanto o procedimento da análise reflexiva quanto o da explicação científica. Descartes e sobretudo Kant desligaram o sujeito ou a consciência, fazendo ver que eu não poderia apreender nenhuma coisa como existente se primeiramente eu não me experimentasse existente no ato de apreendê-la; eles fizeram aparecer a consciência, a absoluta certeza de mim para mim, como a condição sem a qual não haveria absolu- tamente nada, e o ato de ligação como o fundamento do liga- do. Sem dúvida, o ato de ligação não é nada sem o espetácu- lo do mundo que ele liga; a unidade da consciência, em Kant, é exatamente contemporânea da unidade do mundo e, em Descartes, a dúvida metódica não nos faz perder nada, visto que o mundo inteiro, pelo menos a título de experiência nos- sa, é reintegrado ao Cogito, certo com ele, e apenas afetado pelo índice "pensamento de...". Mas as relações entre o su- jeito e o mundo não são rigorosamente bilaterais: se elas o fossem, a certeza do mundo, em Descartes, seria imediata- mente dada com a certeza do Cogito, e Kant não falaria de "inversão copernicana". A análise reflexiva, a partir de nos- PREFACIO 5 sa experiência do mundo, remonta ao sujeito como a uma condição de possibilidade distinta dela, e mostra a síntese uni- versal como aquilo sem o que não haveria mundo. Nessa me- dida, ela deixa de aderir à nossa experiência, ela substitui a um relato uma reconstrução. Compreende-se através disso que Husserl tenha podido censurar em Kant um "psicolo- gismo das faculdades da alma"3 e opor a uma análise noéti- ca que faz o mundo repousar na atividade sintética do sujei- to a sua "reflexão noemática", que reside no objeto e explicita sua unidade primordial em lugar de engendrá-la. O mundo está ali antes de qualquer análise que eu pos- sa fazer dele, e seria artificial fazê-lo derivar de uma série de sínteses que ligariam as sensações, depois os aspectos pers- pectivos do objeto, quando ambos são justamente produtos da análise e não devem ser realizados antes dela. A análise reflexiva acredita seguir em sentido inverso o caminho de uma constituição prévia, e atingir no "homem interior", como diz santo Agostinho, um poder constituinte que ele sempre foi. Assim a reflexão arrebata-se a si mesma e se recoloca em uma subjetividade invulnerável, para aquém do ser e do tempo. Mas isso é uma ingenuidade ou, se se preferir, uma reflexão incompleta que perde a consciência de seu próprio começo. Eu comecei a refletir, minha reflexão é reflexão sobre um ir- refletido, ela não pode ignorar-se a si mesma como aconteci- mento, logo ela se manifesta como uma verdadeira criação, como uma mudança de estrutura da consciência, e cabe-lhe reconhecer, para aquém de suas próprias operações, o mun- do que é dado ao sujeito, porque o sujeito é dado a si mesmo. O real deve ser descrito, não construído ou constituído. Isso quer dizer que não posso assimilar a percepção às sínteses que são da ordem do juízo, dos atos ou da predicação. A cada momento, meu campo perceptivo é preenchido de reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu 6 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO situo imediatamente no mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações. A cada instante também eu fantasio acerca de coisas, imagino objetos ou pessoas cuja presença aqui não é incompatível com o contexto, e todavia eles não se mistu- ram ao mundo, eles estão adiante do mundo, no teatro do imaginário. Se a realidade de minha percepção só estivesse fundada na coerência intrínseca das "representações", ela de- veria ser sempre hesitante e, abandonado às minhas conjec- turas prováveis, eu deveria a cada momento desfazer sínte- ses ilusórias e reintegrar ao real fenômenos aberrantes que primeiramente eu teria excluído dele. Não é nada disso. O real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para ane- xar a si os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar nos- sas imaginações mais verossímeis. A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não "habi- ta" apenas o "homem interior"4, ou, antes, não existe ho- mem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo. Através disso, vê-se o sentido verdadeiro da célebre re- dução fenomenológica. Sem dúvida, não existe questão em relação à qual Husserl tenha despendido mais tempo em compreender-se a si mesmo — também não existe questão à qual ele tenha mais freqüentemente retornado, já que a "problemática da redução" ocupa nos inéditos um lugar im-