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Carlos Sandroni Feitiço Decente Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933) SUMÁRIO Nota do autor Prefácio, por Walnice Nogueira Galvão Agradecimentos Abreviaturas empregadas INTRODUÇÃO PREMISSAS MUSICAIS A síncope brasileira O paradigma do tresillo O paradigma do Estácio PARTE I • DO LUNDU AO SAMBA 1. “Doces lundus, pra nhonhô sonhar...” 2. O maxixe e suas fontes 3. Da Bahia ao Rio 4. Da sala de jantar à sala de visitas 5. “Pelo telefone” PARTE II • DE UM SAMBA AO OUTRO 1. Desde quando o samba é samba? 2. O passarinho e a mercadoria 3. De malandro a compositor 4. O feitiço decente 5. Pelo gramofone CONCLUSÃO ANEXO • VÍDEO INFELIZ Notas Referências bibliográficas NOTA DO AUTOR Quando da primeira edição de Feitiço decente, pensou-se em incluir no livro um CD como anexo. Isso permitiria aos leitores apreciar diretamente alguns dos repertórios musicais tratados aqui — e também, para os mais especializados, verificar a validade de transcrições propostas e eventualmente corrigi-las. A ideia original acabou não acontecendo. De lá pra cá, no entanto, o Instituto Moreira Salles passou a disponibilizar em seu site a audição de parte significativa da música popular gravada no Brasil na primeira metade do século XX. Assim, vim a descobrir que no banco de dados on-line do IMS estavam disponíveis praticamente todas as gravações a partir das quais eu havia feito transcrições. Graças ao apoio de Bia Paes Leme, coordenadora da área de música do IMS, a quem agradeço, foi possível criar um hot-site reunindo numa mesma página as gravações referidas no livro. A partir desta edição, portanto, os leitores passam a contar com um importante recurso adicional para escutar os sambas gravados entre 1917 e 1933 (além de alguns outros), nos quais se baseiam as análises propostas. Recomendo vivamente a escuta ao longo da leitura: o assunto e as análises ficarão mais interessantes assim. Embora nesses últimos dez anos a bibliografia sobre samba e outros temas discutidos nesta obra tenha se enriquecido consideravelmente, optei por não mexer no texto original. Apenas foi acrescentado, em apêndice, um artigo que publiquei na internet em 2008, tratando de polêmicas sobre a questão racial nos sambas de Noel Rosa, em estreita relação com temas abordados no livro, e com seu próprio título. Carlos Sandroni PREFÁCIO Este livro, cujo título homenageia Noel Rosa, é obra de um autor consagrado à musicologia, área do saber em que defendeu a tese de doutoramento com cuja versão modificada ora nos brinda. E tem o mérito de resgatar os estudos de samba de um patamar meramente descritivo para comprová-los enquanto notação musical. Vale lembrar que o samba da primeira fase, aquele que recebeu as gravações pioneiras, inclusive a de “Pelo telefone” em 1917, se distingue do samba da segunda fase, o do Estácio, do início dos anos 30, destinado ao desfile de escola. A saga da primeira fase conta com personagens (digamos assim) heroicas, como a fabulosa Tia Ciata, que mantinha uma roda de samba em sua casa, além de sair no carnaval no rancho Rosa Branca e no bloco de sujos O Macaco é Outro. Tão benquista era ela que, quando impedida de desfilar, o cortejo alterava seu percurso só para passar diante de suas janelas. As janelas de Tia Ciata, abrindo-se para a rua Visconde de Itaúna, na Cidade Nova, bairro integrante do recorte urbano que Heitor dos Prazeres chamou de “a pequena África” do Rio de Janeiro, davam para a Praça Onze, legendário lugar de memória do carnaval carioca. Nem por ter desaparecido, arrasada que foi pela abertura da Avenida Presidente Vargas nos anos 40, a praça deixa de ser até hoje cultuada pelos fiéis. Frequentavam essa casa ninguém menos que o grande Pixinguinha, Donga, que se apressou a registrar como de sua autoria exclusiva um samba que resultara de uma criação coletiva — sendo publicamente contestado por Tia Ciata e outros —, Sinhô, João da Baiana e todos os sambistas de destaque das décadas iniciais do século XX. A darmos crédito a Macunaíma, a casa atraiu igualmente os escritores modernistas, que tampouco desdenharam de lá ir parar, entre eles o próprio Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Jaime Ovalle, Ascenso Ferreira, Raul Bopp e até mesmo um estrangeiro, o suíço Blaise Cendrars. A propósito dos dois estilos, a encantadora anedota contada por Sérgio Cabral, o grande especialista em escolas de samba, ao entabular esse debate, ilustra bem a questão. Que no fundo pode ser entendida como uma alegoria do conflito de gerações, aqui respectivamente encarnadas em duas figuras simbólicas, como Donga, autor registrado de “Pelo telefone”, portanto já venerável à época, versus Ismael Silva, legítimo representante do samba do Estácio. Postos a dialogar, Donga acusa Ismael Silva de não compor samba, mas marcha. Ao que este retruca que Donga não compõe samba, mas maxixe. Dessas réplicas tão reveladoras pode-se extrair a ilação empírica de que, se o samba do estilo antigo ou pré-30 é mais dançante porque adequado aos giros de um par enlaçado num salão, o do estilo novo ou pós-30 é mais marchado porque compatível com a procissão linear ao longo de uma rua definida pelas paralelas das calçadas. Embora fossem semelhantes, e tudo afinal fosse samba, as síncopas típicas já não eram exatamente as mesmas. Sim, é o que nossos ouvidos acusam, quando ouvimos os dois estilos. Mas como é que se comprova essa diferença, ao soar dos instrumentos ou lendo uma partitura? Somadas as durações das notas e de seus intervalos, o que é que caracteriza a ambos? Esta é uma das questões para as quais Carlos Sandroni oferece resposta: é que obedecem a paradigmas diversos. O primeiro é aquele que chama de “paradigma do tresillo”, em homenagem à musicologia cubana que assim o batizou, em sua mônada de três valores, ou três colcheias das quais as duas primeiras pontuadas, introduzindo a síncopa, em compasso de 2/4. Um tal paradigma preside à música popular latino-americana do século XIX e da virada de século, até o limiar dos anos 30. Incluem-se nesse arco de tempo nosso samba do período, em suas mais variadas formas, bem como o lundu, o maxixe, a habanera, e as muitas modalidades que o rótulo “tango” recobriu — basta pensar em Ernesto Nazareth. O segundo, por ele mesmo batizado como “paradigma do Estácio”, é um pouco mais complexo, em sua combinação de semicolcheias e colcheias, pontuadas ou não. Em todo caso, ambos os paradigmas são marcadamente contramétricos. A discussão com outros musicólogos, do passado e do presente, que Carlos Sandroni entabula neste passo, vem a ser portanto das mais estimulantes. O contraste entre os dois paradigmas forma o arcabouço do livro, permitindo ao autor desdobrar sua erudição em matéria de música popular brasileira e latino-americana, bem como vastos conhecimentos sobre seus intérpretes instrumentais e vocais, ou ainda sobre seus pesquisadores e teóricos. Tudo isso a partir de um achado fundamental, que é a eleição do violão como o medium popular por excelência, com base no que seu ouvido de violonista lhe dizia a respeito da batida que escutava nas gravações. A reivindicação que opera da relevância e da primazia da batida quanto ao que vem depois, isto é, a música propriamente dita, é das mais pertinentes. Daí, até se debruçar sobre uma pesquisa de fôlego que se desenrolou no tempo e no espaço, absorvendo vários anos e percorrendo muito chão, ao efetuar-se em mais de um continente: tal é a trajetória deste livro, doravante leitura obrigatória tanto para quem se interessa pelo assunto sem maiores compromissos, quanto para os estudiosos que almejem um aprofundamento. Walnice Nogueira Galvão AGRADECIMENTOS Este livro é uma versão resumida e modificada da tese de doutorado que defendi em janeiro de 1997 na Universidade François Rabelais de Tours, França, sob o título: Transformations de la samba à Rio de Janeiro, 1917-1933. (A tese foi escrita originalmente em português; portanto, mesmo nos trechos que foram mantidos sem mudanças, o que o leitor tem em mãos não é uma tradução.) Muitas pessoas me ajudaram durante a realização da pesquisa e durante toda minha estada na França. Devo a todos um grande obrigado. Gostaria de mencionar aqui, em particular, Jairo Severiano e Ary Vasconcelos, que no Rio de Janeiro puseram à minha disposição suas preciosas coleções de gravações antigas; meus pais Laura e Cícero, que me apoiaram por todos os meios durante os anos fora do Brasil (além dos outros...); minha “família” francobrasileira, Lúcia e Albert Laborde, pais adotivos, e Violeta Corrêa de Azevedo, avó adotiva; Chiara Ruffinengo, bem mais que tradutora; Stéphanie Morvant e Philipe Lesage, bem mais que revisores; o saudoso Jean-Michel Vaccaro pela confiança e apoio que me deu desde minha chegada a Paris em 1991; meu orientador Jean-Michel Beaudet pelo interesse, as sugestões, as críticas... e por me iniciar na etnomusicologia; Patrick Régnier, Dominique Dreyfus, Ralph Waddey, Marco Antônio Lavigne, Guy Farelle, João Máximo, Jean-Pierre Estival, Ricardo Canzio, pelos livros, as fitas cassete, as sugestões; e todos os violonistas cariocas que entrevistei em 1994, na pessoa de Luís Otávio Braga. Agradeço também ao CNPq, sem cujo apoio econômico eu não teria podido realizar este trabalho. Entre os amigos que fiz na França e que me apoiaram em momentos difíceis gostaria de agradecer a Teca Calazans, Yves Pérreal, Brigitte Moreau, Bertrand e Nathalie Loiseau, Didier Biven, Guillermo Carbo, Elena de Renzio e Manoel Nunes. Agradeço também a Laura Sandroni pela revisão acurada a que submeteu o manuscrito da tese, e a Clarinha Teixeira, amiga de longa data, pelo apoio decisivo para a inserção de exemplos musicais no texto. Para a transformação da tese em livro, foram valiosos o interesse e as sugestões de Cristina Zahar, André Telles e Ana Paula Tavares, a quem agradeço. Finalmente agradeço a Juliana Freire pelo paciente trabalho editorial na realização desta segunda edição. Este livro é dedicado a Nonai e a Elisa ABREVIATURAS EMPREGADAS Aurélio • Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa BNRJ • Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro DB-78rpm • Discografia brasileira 78rpm DFB • Dicionário do folclore brasileiro DMB • Dicionário musical brasileiro EMB • Enciclopédia da música brasileira Ms. • Manuscrito RBM • Revista Brasileira de Música INTRODUÇÃO Existe um lugar-comum nas letras de samba que faz do violão o confidente do compositor. Em “Cordas de aço”, por exemplo, o grande Cartola canta: Só você, violão, Compreende por que Perdi toda a alegria. Assim, o compositor em mal de amor humaniza o instrumento, fazendo dele um ouvinte compreensivo que lhe permite expressar suas queixas. O violão é no entanto um confidente indiscreto. Primeiro porque, é claro, não guarda para si os segredos que lhe são confiados: ao contrário, ele é literalmente uma caixa de ressonância, através da qual as confidências do compositor se amplificam, se transfiguram e vão encontrar eco nos lábios e corações de milhões de ouvintes. Por outro lado, é possível que o violão seja um instrumento ainda mais indiscreto do que deixa supor seu papel de portador de queixas amorosas: é possível que os compositores lhe confiem também alguns segredos de seu ofício. Explico-me. No Rio de Janeiro, o mesmo samba pode ser interpretado, na época do carnaval, por 300 ritmistas e outros tantos cantores; e em qualquer época do ano, numa versão de câmara, por um cantor que se acompanha ao violão. Isto leva a pensar que este instrumento se reveste, na cultura em questão, de extraordinário poder de síntese. Se tal ideia se confirma, a indiscrição do violão — coisa útil ao compositor, que pode assim dar à sua intimidade uma dimensão coletiva — seria algo útil ao musicólogo também, que encontraria graças a ela, em versão condensada, certas características decisivas deste fenômeno múltiplo que é o samba. De fato, o ponto de partida do presente trabalho foi a constatação de uma diferença entre estilos violonísticos. Como tantos outros violonistas brasileiros, aprendi, na adolescência, a tocar o que chamamos de “batida” de samba: um modelo rítmico de acompanhamento, suscetível de certo grau de variação, utilizado quando a canção a ser acompanhada pertence ao gênero “samba”. Ora, quando meu interesse pela música popular me levou a escutar gravações de samba em discos 78rpm feitas no Rio de Janeiro a partir de 1917, qual não foi minha surpresa ao constatar que os violonistas não empregavam ali a batida tão familiar a mim e a meus contemporâneos, mas outro modelo de acompanhamento. Este, segundo os critérios musicais em vigor hoje em dia no Brasil, seria considerado totalmente inadequado ao samba. Mas a batida não é simples fundo neutro sobre o qual a canção viria passear com indiferença. Ao contrário, a primeira nos diz muito sobre o conteúdo da segunda. A batida é de fato, na música popular brasileira, um dos principais elementos pelos quais os ouvintes reconhecem os gêneros. Neste país, e certamente em outros também, quando escutamos uma canção, a melodia, a letra ou o estilo do cantor permitem classificá-la num gênero dado. Mas antes mesmo que tudo isso chegue a nossos ouvidos, tal classificação já terá sido feita graças à batida que, precedendo o canto, nos fez mergulhar no sentido da canção e a ela literalmente deu o tom. É por isso que a existência de outra batida nos sambas mais antigos me pareceu desde o início questão digna de interesse: tal questão foi o nó em torno do qual o trabalho se construiu. Acreditei